SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

UMA RADIOLA AO LUAR (Crônica)

UMA RADIOLA AO LUAR

Rangel Alves da Costa*


Sorte teve o meu pai, que lá pelos tantos idos de 1940 nasceu num sertão ainda virgem, matuto mesmo, de inocência cabocla e de infinito prazer da vivência na terra árida e cativante.
Naquela época certamente a natureza sertaneja ainda estava com o seu corpo imaculado, sem ter sofrido quaisquer desses abusos que hoje em dia nos faz entristecidos. Havia a sequidão pelos campos e matarias sim, pois sem as secas sertão não é sertão. Havia a pobreza grassando de palmo e palmo sim, pois a miséria parece ser filha do lugar e parente de todo mundo.
Mas havia muito mais, muito mais coisas encantadoras que amenizavam os sofrimentos e faziam o sertanejo viver na felicidade que somente ele sabe possuir, pois agradecido demais a Deus pelo galo cantando no alvorecer, pelo cuscuz e o leite tirado do peito da vaca, pelo café quentinho e pelo olhar que encontra sempre um dia bonito para viver.
Sertão é assim mesmo, seu moço! Bicho e poesia, cantiga e lamentação, bom dia e inté mais se ver, boa sorte e que Deus lhe ajude! E pelos caminhos que cortam a vida, os barracos se espalhando feito galinha no terreiro, bicho no berreiro, qualquer coisa no cercadinho e o prazer imenso de dizer isso é meu. Não tem nada não, seu moço, mas tudo é dele. É dele porque o sertão é dele e ele é o sertão em pessoa.
Meu pai nasceu num lugar assim, nessa vastidão sertaneja onde tudo mundo era feliz e não sabia. Somente mais tarde, quando o filho de Dona Emeliana e Seu Ermerindo ouviu pela primeira vez uma autêntica cantiga sertaneja, um legítimo violar caipira, é que começou a juntar a letra da moda de viola com a terra que pisava e a realidade vivida e decisivamente concluiu que as belezas do sertão são melodias de se caminhar e pegar com a mão.
Foi nesse momento que a viola caipira de Tonico e Tinoco entrou melodiosamente no coração de Alcino. Aquele rapaz, já político e prefeito do lugar, logo ao amanhecer escurecido ligava seu velho e potente rádio Philips, de quase meio metro de diâmetro, e sintonizava nas emissoras paulistanas onde sabia que não demoraria muito para ouvir a voz inconfundível da dupla coração do Brasil.
Sou filho - e por isso mesmo posso falar - que o rapaz já casado ainda assim era um inveterado namorador. Todo mundo sabe disso até hoje. Assim, quando um dia um primo seu chegado do sul lhe trouxe de presente uma radiola portátil novinha, pequenininha e azul, todas as noites, e sempre já em altas horas, Alcino seguia em direção à praça da matriz, colocava seu toca-discos em cima de um banco e ia escolhendo a dedo as músicas de Tonico e Tinoco.
Muitos dizem que ele fazia serenata louvando as belezas do luarar sertanejo, outros afirmam que era serenata mesmo, mas com outras motivações apaixonadas. De qualquer sorte, invariavelmente se ouvia todas as noites “Tristeza do Jeca”, “Eu e a lua” e “Pé de ipê” nas doces e inconfundíveis vozes de Tonico e Tinoco.
E se ouvia na “Tristeza do Jeca”: “Nestes verso tão singelo/ minha bela, meu amor/ pra você quero contar/ o meu sofrer e a minha dor/ Eu sô igual a um sabiá/ quando canta é só tristeza/ desde um galho onde ele está/ nesta viola eu canto e gemo de verdade/ cada toada representa uma saudade...”.
Na “Eu e a lua”: “Eu me desperto em arta madrugada/ Em arvorada ponho-me a cantar/ Em tom profundo lamento em meu pinho/ Triste sozinho vivo a recordar/ Vem ouvir ingrata quem deixou de amar/ Somente a lua no céu estrelado/ Está a meu lado, surgiu num clarão/ E tu querida nem abre a janela/ Vem ouvir donzela a minha canção/ Tu foi aquela muié sem coração...”.
E “Pé de ipê”: “Eu bem sei que adivinhava/ quando as veiz eu ti chamava/ de muié sem coração/ Minha vóiz assim queixosa/ vancê é a mais formosa/ das cobocra do sertão/ Certa veiz tive um desejo/ de prová ao meno um beijo/ da boquinha de vancê/ Lá no trio da baixada/ pertinho da encruziada/ debaixo de um pé de ipê...”.
Até hoje, já aos 70 anos, Alcino continua ainda mais apaixonado pela autêntica música caipira. Naqueles idos suas paixões eram muitas e até dizem que muitas eram as mocinhas que choravam nos travesseiros ou pertinho das janelas, com os apertos nos corações que sempre chegam altas horas da noite e com a serenata sertaneja de Alcino.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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