SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

VALEI-ME DEUS, E AGORA!? (Crônica)

VALEI-ME DEUS, E AGORA!?

Rangel Alves da Costa*


Valei-me Deus, e agora!? Soou gritante o espanto, vindo do assombro de todas as bocas e todos os olhares logo ao alvorecer. O que teria acontecido para o povo amanhecer em polvorosa, tendo gente de pijama pela rua, mulher que levantou quase nua, pessoas saindo apressadas de onde não deveriam sair?
Valei-me Deus, e agora!?
Filipa se benzia na janela, a beata Mocinha fazia fervorosas orações ajoelhada pelos cantos, menino-flor deu um gritinho e depois se apoiou no vento para desmaiar, Miraldino ficava cabisbaixo sem querer acreditar, Juca do Inhame emudeceu, Dagô chorava pra se acabar, Sulane correu maluca pelo meio dos matos.
Seu Nitinho, que estava por cima da Zinha no instante do ocorrido, viu tudo murchar e irremediavelmente para sempre. Mas que coisa inexplicável, pois o ceguinho enxergou só pra cegar novamente pelo susto que teve pelo que viu. Já Maria dos olhos de mel cegou de não dar nem mais um passo à frente sem a ajuda de um dos tantos amantes.
E por todos os recantos do lugar era um espanto só: Valei-me Deus, e agora!?
Dentre os menos abalados emocionalmente, e que ainda podiam contar com a razão, começou a se comentar da necessidade de intervenção das forças armadas norte-americanas, da vinda urgente do padre que se achava ausente, do clamor para que o papa se fizesse presente, de avisar com rapidez todos os canais de televisão do mundo, enviar um comunicado a ONU, fazer com que o prefeito aparecesse no lugar, chamar o governador e o presidente.
Teve gente que afirmou que somente Deus. Se Deus não resolvesse o problema então tudo estaria perdido. Começaram a discutir como chegar até ele, mas a conclusão que chegaram não dava muito certo. Não havia no lugar quem morresse e fosse direto pro céu para avisar ao homem. Muito pelo contrário, o caminho de todos ali parecia que era mais pra baixo.
E quanto mais se discutia mais se repetia: Valei-me Deus, e agora!?
Verdade é que todos acordaram com algo diferente no meio da praça, logo em frente à matriz que vivia fechada como se ali fosse um povo sem fé. E era mesmo, pois o padre chegava ali, rezava missa com meia porta aberta e para apenas duas beatas e depois ia embora pela porta dos fundos, dizendo que jamais olharia na cara de um povo que um dia havia excomungado, amaldiçoado.
O padre sempre achou que tinha razão no que tinha feito, sempre achou ser para o bem da religião ter amaldiçoado um povo que não seguia os ensinamentos divinos, contradizia pecaminosamente todas as boas condutas cristãs, parecia ter feito pacto para tornar o lugar mais impuro que Sodoma e Gomorra juntas.
Ninguém era amigo de ninguém; sorriso era coisa que não se conhecia mais; respeito aos pais e aos mais velhos soava como brincadeira de mau gosto; ajuda ao próximo, compartilhamento e respeito à dignidade e integridade do outro eram coisas totalmente em desuso; família era cada um por si e todos se tratando como inimigos; o amor, essa coisa diferente e doce que deveria existir nos corações das pessoas, não prevalecia mais diante de tanta pedra bruta e navalha afiada. Nem coração parecia existir mais naquele povo.
Foi por isso que, naquela manhã, quando apareceu uma flor majestosa no jardim, com cada pétala com uma cor mais bonita e mais brilhante do que a outra, o mundo virou de cabeça pra baixo.
Um povo que não mais reconhece uma flor nem a sua beleza, e nem traduz para si o seu significado, certamente gritará diante do jardim: Valei-me Deus, e agora!?




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Alberto Magalhães disse...

Os escritos de Rangel significam, para mim, a demonstração da mais fina sensibilidade só encontrada nos poetas, cronistas e romancistas que têm a marca da profundidade, da insatisfação pelo cotidiano mesquinho e pela banalidade que fazem dos valores reais da vida. Pungente o seu amor pela vida e pelo próximo que a detém.

A leitura de "A noite do cego" - bem como dos outros escritos - me impregnou de humanidade, aquela que por momentos adormecem dentro da gente.