SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

ESPELHO SUJO DE SANGUE (Crônica)

ESPELHO SUJO DE SANGUE

Rangel Alves da Costa*


Ainda não se derrama pelo vidro, sujando a moldura, respingando pelo chão e pela parede, mas é meu esse sangue no espelho. Tem o meu cheiro, tem a minha veia, tem a minha lágrima, tem o meu suor, tem o meu sangue. Tem a minha vida! Por isso é meu esse sangue no espelho.
Pedi que ouvisse a música de Beto Guedes e você nem deu atenção: "(...) Quando eu falava dessas cores mórbidas/ Quando eu falava desses homens sórdidos/ Quando eu falava desse temporal/ Você não escutou/ Você não quis acreditar, mas isso é tão normal/ Você não quis acreditar e eu apenas era/ Cavaleiro marginal lavado em ribeirão/ Cavaleiro negro que viveu mistérios/ Cavaleiro e senhor de casa e árvores/ Sem querer descanso nem dominical/ Cavaleiro marginal banhado em ribeirão/ Conheci as torres e os cemitérios/ Conheci os homens e os seus velórios/ Eu olhava da janela lateral/ Do quarto de dormir/ Você não quis acreditar, mas isso é tão normal/ Você não quis acreditar, mas isso é tão normal/ Um cavaleiro marginal banhado em ribeirão/ Você não quis acreditar que eu apenas era...".
Pedi a você, mas você não quis acreditar. Agora não adianta pranto nem lágrima, se o momento de pavor já passou, se a dor já passou e só resta um espelho sujo de sangue. Se fosse possível colocar outro vidro, comprar outro espelho e colocar no mesmo local e assim tudo voltar a ser como antes, até que seria menos sofrimento. Mas você não poderá colocar novamente minha fotografia no espelho, o meu sorriso triste nem aquele que pensava que era sem jamais ter sido. Um dia eu disse que isso poderia acontecer, mas você não quis acreditar...
Pedi a você que ouvisse Titãs para me entender, para mais tarde não reclamar, mas você não quis acreditar: "Devia ter amado mais/ Ter chorado mais/ Ter visto o sol nascer/ Devia ter arriscado mais/ E até errado mais/ Ter feito o que eu queria fazer.../ Queria ter aceitado/ As pessoas como elas são/ Cada um sabe a alegria/ E a dor que traz no coração.../ Devia ter complicado menos/ Trabalhado menos/ Ter visto o sol se pôr/ Devia ter me importado menos/ Com problemas pequenos/ Ter morrido de amor.../ Queria ter aceitado/ A vida como ela é/ A cada um cabe a alegria/ E a tristeza que vier... (...)".
Tudo isso pedi a você, mas você não quis acreditar. Você não me escutou. Ainda bem que você não ouviu nenhum barulho, pois o tempo, ao menos esse tempo triste e de nuvens carregadas sempre era meu amigo. E há um temporal lá fora, há tempestade destruindo tudo, há um vendaval levando o que encontrar, há uma escuridão de sangue no meio da noite, e há também a vida e a morte nos escombros e aqui nesta sala. A natureza está em fúria, mas satisfeita pelo dote que não há de herdar.
Mais tarde, depois, daqui alguns dias ou nunca, se um dia o sol voltar a brilhar abra um baú que certamente será encontrado em qualquer lugar e leve para sua estante algumas coisas escritas que tanto li e aprendi a gostar. Leve Goethe e "Os sofrimentos do jovem Werther", leve Salinger e "O apanhador no campo de centeio", leve Baudelaire e "As flores do mal", leve James Joyce e "Ulisses", Dostoievski e "Crime e castigo". Lembre de queimar os demais livros, principalmente aqueles de poesia.
Coloque-os todos numa fogueira e depois leia o meu testamento: "O verso é afiado, e mata; a palavra é punhal, e mata; a rima é cortante, e mata; a métrica é armadilha, e mata; a verdade dói, e mata; a palavra erguida, vivente e ameaçadora, é inimiga, e mata; os personagens, todos os personagens sou eu, e morro".



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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