SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 31 de agosto de 2013

UM COITO DE ACHADOS TANTOS


Rangel Alves da Costa*


Como acontecia nos tempos cangaceiros, onde o coito era o local de descanso dos homens do sol para a jornada seguinte, também tenho meu coito, ambiente de repouso do pensamento e de enveredamento nas trilhas da escrita. E muito mais.
É coito e escritório, é baú e folha seca, é memória e página em branco, é vereda e alcance do mundo mágico dos rabiscados pulsantes ou já adormecidos pelo tempo. No meu coito é onde me encontro e viajo, onde permaneço e de repente já estou dialogando com a justiça ou com os cabras de Lampião.
Do meu coito, um pequeno escritório de três também pequeninos ambientes e junto à moradia, avisto o passado e encontro o presente, proseio com o existente e a fantasia, saio catando restos daquilo que esqueceram pelos caminhos. Encontro o mandacaru e o xiquexique, a cabaça e a enxada, o tamborete e a moringa, o sol ardente e a lua plangente de romantismo e solidão
No meu coito me divido entre as leis e a história, entre os brocardos e os proseados matutos, entre petições e textos de amorimorte. Num instante, requeiro a absolvição de um e no outro já estou trilhando as veredas escaldantes do meu sertão ou de outro rincão qualquer. Num instante me dirijo aos tribunais, no outro já estou correndo atrás do destemido calango sertanejo.
Às vezes estendo o olhar até a balança da justiça na estante e ali avisto as tantas injustiças pendendo de lado a outro, num mundo onde as leis são interpretadas pelas conveniências. Acabo sendo uma exegese do poder corrompendo tudo. Assim foi num tempo distante e também no dia de ontem, e inevitavelmente assim será amanhã. Tudo isso me interessa como objeto de escrita.
Sento diante do birô como o sertanejo faz no tronco de pau diante de seu casebre. O matuto, mesmo amargurado e cheio de desesperança, aprecia e se encanta com o seu mundo, com a natureza ao redor, com tudo aquilo que possui - que é quase nada. E faço o mesmo, me sinto do mesmo jeito, também fico extasiado com as pequenas coisas que tenho e posso dispor no dia a dia do meu coito.
De um lado, bem defronte aonde me sento, um grande mostruário envidraçado contendo os meus livros e os de meu pai. São mais de vinte, sendo seis escritos por ele. Um armário com documentos e material de escritório, tendo por cima uma cabeça-de-frade que continua verdejante como no sertão. Ao lado do birô uma parede com desenhos emoldurados de minha autoria. Todos com motivos sertanejos.
Na mesma parede há ainda dois quadros com textos jornalísticos de minha autoria. O primeiro é sobre o filme Sargento Getúlio como patrimônio cultural de Poço Redondo (pois filmado por lá na década de 80); o segundo acerca de Zé de Julião, ou cangaceiro Cajazeira, o mais valente de todos os meus conterrâneos poço-redondenses. Os textos são ladeados por fotografias de igual dimensão.
No outro lado, acima da parte azulejada da parede outros desenhos emoldurados, também com cenas e motivos sertanejos, e uma pintura a óleo, todos de minha lavra e dos meus instantes de aprendiz. Mais duas pinturas fazem parte de outro pavimento do coito. E já estou providenciando outros desenhos, dessa vez reproduções a verniz e guache de xilogravuras, para dar maior vivacidade ao ambiente, que numa estante já conta com objetos de barro e madeira retratando figuras do meu sertão. Ali Lampião e Maria Bonita, cactos, animais de cargas, utensílios da cozinha sertaneja e outros objetos do meu mundo interiorano.

Ainda na parte central do meu coito, dessa vez na estante principal, alguns livros que sempre coloco ao meu alcance. Códigos, doutrinas e outras publicações jurídicas, mas também obras sobre o cangaço, poesias e romances famosos. E duas Bíblias, uma pequenina, aberta num Salmo qualquer, e outra maior, sempre à espera que eu releia suas lições. E ainda pequenos objetos artesanais, fotografias e uma igrejinha de madeira adornada por rosários e fitas. Dois cavalinhos de barro acima da estante, e um pouco mais alto, na parede, um quadro com fotografia e texto sobre o legado cultural de Alcino Alves Costa.
E eu no meio disso tudo. Pensando, rememorando, escrevendo. É capital, mas é como estivesse noutro lugar, nas distâncias sertanejas, pois ladeado por um mundo muito diferente do portão da frente em diante. Assim é que desperto ainda nas madrugadas para encontrar esse coito, encontrar a natureza e a história que ali dispus, e depois colher as flores e os espinhos dos escritos cheirando a chão, a terra sertaneja.


Poeta e cronista
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O meu amor (Poesia)


O meu amor


Nunca mais o meu amor
beijou a minha boca
nem tirou a minha roupa
nem bebeu cálice vermelho
e não sei porque nunca mais
o meu amor apagou a luz
espalhou incenso e perfume
e depois declamou poesia
para eu repetir em silêncio
não sei porque nunca mais
nunca mais nunca mais

o amor se foi e fiquei assim
sem nudez nem beijo na boca
sem verso nem vinho derramado
sem adormecer ao seu lado
sem aquele sonho acordado
e também sem o meu amor
não dói nem a falta nem o que faltou
mas é insuportável sem o meu amor.



Rangel Alves da Costa


PALAVRAS SILENCIOSAS – 361


Rangel Alves da Costa*


“Ontem ouvi uma voz...”.
“Hoje ouvi outra voz...”.
“Certamente hoje ouvirei novamente essa voz...”.
“Essa voz me chega sempre...”.
“Mas não sei de onde vem...”.
“Não sei de quem é a voz...”.
“Nem sei quando silenciará...”.
“Chega baixinho, quase num murmúrio...”.
“Como um sussurro de brisa...”.
“Apenas entrando na minha mente...”.
“Silenciosa como o orvalho caindo...”.
“Murmurejante como trigal soprado...”.
“Não lembro tudo...”.
“Pois muito já me foi dito...”.
“Muito já me foi soprado por essa voz...”.
“Mas não posso esquecer...”.
“Jamais poderei esquecer...”.
“De palavras e frases assim...”.
“O Senhor é teu pastor, nada lhe faltará...”.
“Olhai os lírios dos campos...”.
“Vaidade das vaidades, tudo é vaidade...”.
“És de tez escurecida, mas tão formosa feição...”.
“Faça-se a luz dentro de ti...”.
“Um adia passa, o outro vem...”.
“Estreita a porta, apertado o caminho...”.
“Pai Nosso, santificado seja o vosso nome...”.
“Senhor, em ti se encontra o perdão...”.
“Porque Deus é amor, quem ama nele permanecerá...”.
“Perseverai na oração...”.
“Alegrai-vos sempre no Senhor...”.
“Filho, porque tens a fé, os teus pecados serão perdoados...”.
“Faça-se conforme a vossa fé...”.
“Só em Deus repousa a tua alma...”.
“O homem vê a aparência, o Senhor vê o coração...”.
“Cristo não veio para ser servido, mas para servir...”.
“Os pássaros do céu fazem ninhos nos ramos do Senhor...”.
“Jamais temas, pois te ajudarei...”.
“Tudo contribui para o bem daqueles que amam...”.
“A tua fé moverá a mais alta montanha...”.
“O que é da vontade de Deus deve ser da vontade do homem...”.
“Erga um templo no teu coração...”.
“Há um tempo de benção, há um tempo de colheita boa...”.
“Os semeadores colhem os frutos que para si desejaram...”.
“Nem toda estrada reta possui final...”.
“Que tua alma bendiga o Senhor...”.
“Orai constantemente no Espírito...”.
“Fixa teus pensamentos nos preceitos de Deus...”.
“Amai-vos uns aos outros como Deus vos tem amado...”.
“Há tempo para tudo, tempo de nascer e tempo de morrer...”.
“Felizes os que procedem com retidão, caminham na lei do Senhor...”.
“Quem em Deus crê terá vida eterna...”.
“Há um sopro de vida em cada prece...”.
“Abra a tua janela para a Criação e encontrará a face de Deus...”.
“Tudo isso ouvi na voz...”.
“Na voz que silenciosamente me chega...”.
“E como brada no meu coração essa voz...”.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 30 de agosto de 2013

CANGACEIRO


Rangel Alves da Costa*


Homem que carrega a canga. Mas canga não no sentido de tronco atravessado às costas, mas levando por cima dos ombros o peso da opressão, o fardo da exploração, a carga da submissão humana aos ditames das injustiças sociais e dos mandos governamentais e coronelistas. Mas nem de todos os coronéis, que se diga.
Sertanejo das brenhas do mundo. Sofrido até dizer chega, explorado até dizer basta, subjugado pelo poder político e econômico, esquecido de tudo, com serventia apenas para mostrar sua coragem para lutar. E foi assim que fez. Um dia foi chamado à luta e enveredou pelas caatingas construindo o seu próprio destino.
As motivações? Todas e muitos mais. Um Nordeste de latifúndios, de poder político encanecido pelas velhas e desumanas práticas, onde o pobre sertanejo era tido muito mais como objeto do que qualquer outra coisa. E por cima do matuto as imposições tributárias, as injustiças sombreando os mais fracos, a escravização sem precisar de chibata e grilhão.
Eis um homem desencantado com o seu meio, fugindo das perseguições, sendo ferido na sua honra, sendo aviltado pelos abusos policiais e das autoridades. E também as rixas pessoais, os desejos de vingança, as promessas e ilusões de um meio onde só cabia os mais valentes e destemidos. Tudo isso, e muito mais, motivou o passo na vida cangaceira.
Homem rude, iletrado, do mato, da mataria, das distâncias de tudo. Mas nem sempre assim. Muito cangaceiro sabia ler e escrever, tinha tino no juízo, sabia o que queria, possuía uma ideologia e conhecia bem o significado de sua vida e de sua luta. Um ou outro, como Cajazeira, era de família abastada. Percorrer as caatingas e viver debaixo de lua e sol, desafiando autoridades e enfrentado constantes perigos, eis a sina deliberada no mundo injusto e cruel.
Homem da terra, cheirando a sol, a suor, a sangue estancado da luta, a bicho do mato, a fumaça do fogo do coito, a chumbo do cano quente e enfumaçado. Mas também um destemido vaidoso, perfumado de qualquer loção, cheio de adornos e ornamentos dourados, com uma trova na língua e uma canção dolente cortando o silêncio das noites sertanejas enluaradas. E tantos amores embrenhados na cama da terra espinhenta.
Sertanejo de longa história, do passo catingueiro lá desde séculos passados. Desde o século XIX que começou a fazer história até sua saga ter fim já no século passado, depois da bala certeira dada em Corisco, lá pelos idos de 1940. Cangaceiro de bandos primitivos, como os de Lucas Evangelista, o Lucas da Feira; Jesuíno Alves Calado, o Jesuíno Brilhante; Antônio Silvino; e Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. E também o bando desgarrado de Corisco, o Diabo Louro.
De características inconfundíveis, vestia seu manto encourado, sua calça lonada, sua preferência azulada, seu brim desgastado na passarela de urtiga e cansanção, ponta de pau e espinho traiçoeira, vereda encoberta e mataria fechada. Dia e noite na luta e sempre no porte altaneiro, ainda que o brilho das joias e o colorido das roupas estivessem ofuscados pela poeira da lide.
Cabra valente de estética desafiadora para a vida difícil que levava. Chapéu de couro estendido, ovalado e com estrelas estilizadas ou medalhões de metal na porta frontal da aba. Um ou outro usava a jabiraca, que era um lenço envolvendo e descendo pelo pescoço. Encontrar um cabra assim nas caatingas já sabia o que era. Cangaceiro, seu moço, cabra valente sim.
Alpercata de couro cru, mais conhecida como “apracata de rabicho”, possuía a leveza apropriada para cortar os tantos caminhos difíceis e subir e descer as trilhas mais íngremes. E também mais fácil de virar a frente pra trás para enganar a volante sempre no encalço. Cartucheira cortando o peito, também cruzava o couro do embornal do ombro até a cintura. Um cantil também enfeitado, estilizado. Era tudo pesado, desde a roupa e adereços até chegar aos mantimentos que carregava. Falam em mais de vinte quilos.
Anéis adornando os dedos, alianças enfeitando o chapéu, cabelos mais alongados, muitas vezes repuxados na brilhantina ou óleo de coco. Costumava carregar peças de ouro e moedas no embornal. Não esquecia o perfume, a gaita ou qualquer outro instrumento. Armado até os dentes, o peso maior se dava por conta das armas e da farta munição que levava.
O armamento se diversificava, podendo ser revólver, pistola, mosquetão ou fuzil, sem falar no velho rifle Winchester, também conhecido como “papo amarelo”, mas sempre acompanhado da faca ou punhal. E tudo de marca famosa: Revólver Colt, Pistola Luger, Pistola Browning, Fuzil Mauser, Mosquetão Mauser, Winchester, Bergmann. Onde conseguia? Quase tudo trazido pelo coiteiro, a mando do coronel amigo e protetor. E logicamente protegido.
Uma vez aceito no bando, o nome de batismo dava lugar a um apelido. Dali em diante seria conhecido e chamado por nome de bicho, de pássaro, de elemento da natureza ou de qualquer outra denominação que mais parecesse com o alcunhado. E assim Jararaca, Zabelê, Corisco, Diferente, Mergulhão, dentre muitos outros. As mulheres geralmente mantinham seus nomes. Alguns cangaceiros continuaram com os seus nomes originais.
Mas falar em cangaceiro é falar principalmente naquele cabra, e também mulher bonita, que serviu ao bando do Capitão Lampião, o mais famoso de todos que enveredaram pelos caminhos nordestinos revirados de trincheiras e respingados de sangue. Até hoje é o bando de Lampião que sintetiza toda a história cangaceira e sua luta. Virgulino foi o maior dos cangaceiros e o seu bando o mais famoso e destemido.
Mas afinal, o que era mesmo esse tal de cangaceiro, era gente ou bicho do mato, pessoa ou desatinado, ser de carne e osso ou uma besta humana em busca da próxima vítima? Cangaceiro vivia com cega maldade, jogando criancinha para o alto e a recebendo na ponta do punhal, estuprando aonde chegava, ferrando quem encontrasse, alastrando todo tipo de terror por onde passasse?
Pelo não se encontra o sim, pela negação se encontra a verdade, pelo que o cangaceiro não era é possível conhecer o que ele foi. E o que ele foi, por mais que se atreva em dizer, sempre estará distante da crueza daquela realidade. Por isso que todo dizer ainda falta alguma coisa a ser dita.
Mas algumas coisas sopraram no vento da verdade e cimentaram na história. Não pela certeza, mas pela lógica do acontecido e hoje tão analisado e lido. Disso decorre não ter sido o cangaceiro um pistoleiro, um jagunço, um celerado bandido, um assassino a sangue frio, um matador de aluguel, um delinqüente qualquer, uma bestialidade desordeira. Contudo, muitos, no exagero e na ignorância, procuram maculá-lo com as maiores infâmias do mundo.
Não, e não. A verdade só quer um pouco de luz. E não porque não assassinava por empreitada, não tocaiava desafeto de um mandante, não dava cabo de ninguém a troco de conto de réis. Não era um bandido qualquer que assaltava ou salteava à mão armada, não era um frio homicida que empunhava a arma na testa de um e apertava o gatilho, não se desgarrava do bando para praticar vilezas e atrocidades.
Também não era salteador, pois não se escondia pelas beiradas das estradas para assaltar quem passasse. Do mesmo modo, jamais agiu aos modos da jagunçada, fazendo serviços para os coronéis em troca de vintém e proteção. O pacto de proteção ao coronel era muito diferente. Era coisa de bicho grande, de coronel a coronel. Nesse meio se envolvia para atemorizar um dos lados. Também nunca foi um sicário, contratado para cometer qualquer espécie de crime.
Guardando as proporções, pode-se dizer, isto sim, que não se distanciava muito do bandoleiro, do facínora, do malfeitor, do errante, do justiceiro, do indignado. Bandoleiro porque vivia em bando e agia segundo os ditames deste, mas sem a intenção de praticar crimes comuns.
Facínora porque muitas vezes agiu com extrema maldade e perversidade. Ora, a situação exigia. Malfeitor porque contradizendo a lei de então, afrontando autoridades e confrontando policiais. Justiceiro errante pela cega ilusão de que sua luta inglória iria combater as injustiças que à época imperavam.
Mas como é normal acontecer nos grupamentos humanos, verdade é que nem todos possuíam uma índole aproximada. Alguns tentaram contradizer até mesmo as ordens do Capitão. E estes, por bebedeira ou nos instantes de maior liberdade de ação, certamente extravasaram, praticaram desmedidas atrocidades até com inocentes. Por isso que não é mentira o ferro abrasado de Zé Baiano no rosto da donzela canindeense. O JB fumegou na face da bela sertaneja.
Nem todos foram assim. A grande maioria certamente que não. Na vida que levava, fugindo de palmo em palmo, sendo caçado com fera perversa, tendo seus dias e suas noites tomados de sobressaltos, não lhe restava outra coisa senão reagir, confrontar, para continuar sobrevivendo. E quem não está disposto a ter morte certa, logicamente que mata. Por isso que muito gatilho foi apertado, daí que muita gente rolou de ribanceira abaixo.
Meu parente cangaceiro, irmão de minha avó Emeliana, simplesmente voou para não morrer naquele dia 28 de julho de 38, lá na Gruta do Angico. Com nome de passarinho, Zabelê bateu asas que ninguém mais teve notícias. Não sei se um dia alcançou o céu, mais que voou ele voou.

  
Poeta e cronista
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Sei (Poesia)


Sei


Amei
bem sei
fui amado?
não sei
só sei
que amei
fui amado?
jamais saberei
apenas sei
que amei
um amor
tanto
e tudo
e todo
me dei
que não sei
se ela
encontrou
o amor
para amar
e se amou
o que
lhe restou
de amor.



Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 360


Rangel Alves da Costa*


“Do nascer, a necessidade...”.
“O desejo de companhia...”.
“Do crescimento, a busca...”.
“A procura de companhia...”.
“Da caminhada, o encontro...”.
“O desejo por alguém...”.
“Do desejo, o encantamento...”.
“Um coração enamorado...”.
“Do querer, a busca de realização...”.
“Tudo através do olhar, do encontro...”.
“Da palavra, da busca de aceitação...”.
“Da aceitação, o começo da estrada...”.
“O toque, o abraço, o beijo...”.
“Do namoro, o fortalecimento...”.
“Os sonhos e planos...”.
“As intimidades e os afloramentos...”.
“Da constante presença, outras buscas...”.
“Outros desejos, permitidos ou não...”.
“A nudez, a luz apagada, o beijo cego...”.
“A procura, o encontro, o querer...”.
“O gozo, o prazer... Ou não...”.
“Não porque pode ser cedo demais...”.
“Não porque o sexo deve ser resguardado...”.
“Não porque o corpo se contenta em amar...”.
“E espera outros prazeres noutros momentos...”.
“Pois outros momentos virão...”.
“Para alguns, a simples junção conjugal...”.
“Para outros, ainda o compromisso...”.
“Ainda o noivado com anuência dos pais...”.
“Ainda a espera por dias melhores...”.
“Ainda um tempo de amadurecimento entre os dois...”.
“Ainda a espera da certeza absoluta...”.
“E somente depois as núpcias serão planejadas...”.
“Com igreja enfeitada de flores...”.
“Vestido belíssimo, véu e grinalda...”.
“A linda e comovente marcha nupcial...”.
“O juramento e o beijo selando a união...”.
“O buquê jogado em meio aos grãos de arroz...”.
“A plena felicidade, o grande selo conjugal...”.
“E os dias seguintes, os dias futuros...”.
“O amor semeado não se desconhece...”.
“O amor colhido jamais apodrece...”.
“E depende dos dois que tudo assim permaneça...”.
“Pois virão outros planos...”.
“Os filhos virão...”.
“A família crescida...”.
“O microcosmo do mundo num lar...”.
“Entremeado por dissabores e angústias...”.
“Por alegrias, prazeres e contentamentos...”.
“Pois tudo assim, entre a tristeza e o sorriso...”.
“Enquanto as folhas do calendário vão passando...”.
“Os retratos amarelando...”.
“Os anos apressados em tudo...”.
“Até que tudo, que é infinito enquanto dure...”.
“Tenha prazo de duração...”.
“E chegue o outono com sua ventania...”.
“Para levar as folhas muito além...”.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 29 de agosto de 2013

NO BREU


Rangel Alves da Costa*


Ontem, dia 28 de agosto, por volta das três horas da tarde, eu estava elaborando uma petição judicial quando, de repente, tudo apagou. À minha frente, os escritos, brocardos e leis sumiram num passe de mágica. Como não havia salvado nada, acabei perdendo tudo. Que negligente que sou. Tinha de recomeçar tudo de novo. E eis o maior problema.
Problema mesmo, e dos grandes. Nada mais desencorajador do que a pessoa ver sumir num instante aquilo a que se voltava com tanto afinco. Mas não apenas isto. Estava apressado e a energia só foi restabelecida faltando uns dez minutos para as cinco horas. Sentei diante do computador e recomecei. E nada recomeça e segue o mesmo estilo daquilo que foi bruscamente interrompido.
Mas não havia saída. Além da petição tinha outros escritos a desenvolver, coisas do meu cotidiano de invencionices e proseados. Algo assim como você lê agora. Contudo, uns vinte minutos após e tudo aconteceu novamente. Já passando das cinco, com tempo nublado, tudo pareceu escurecido demais. Tudo estranho e certamente motivado pelo costume da claridade em todos os instantes do dia e da noite.
Fazer o que, pensei. Esquentei um café (sempre forte e sem açúcar), acendi um cigarro, caminhei de lado a outro, peguei da caneta e papel, então poesiei. Versos escurecidos como o instante, cheios de negrumes e solidão, com sentimentos de luzes apagadas. Ora, estava imerso naquele instante de sombras forçadas e às portas da escuridão, do breu da noite. Mas poesiei. Não proseei, mas poesiei numa réstia de luz ainda encontrada.
Pelas ruas, e antes mesmo das seis, o comércio já estava fechando as portas. Casas com interiores escurecidos, pessoas nas calçadas, nas janelas, reunidas e conversando sobre o súbito apagão. Fui até a padaria e antes mesmo de entrar o dono já estava gritando para todo mundo que o estoque de velas já havia acabado. Mas meu problema ali era mesmo um bolo de macaxeira, pois velas nunca faltam num cantinho do meu oratório.
Aliás, não há apagão nem problema energético qualquer que faça o meu oratório ficar na escuridão. Noite fechada, negrume total, e ele é avistado iluminado pela chama da vela ao lado. E vela votiva de sete dias que á para durar mais, e tendo outra logo ao redor. Assim que a cera se vai, o pavio se esvai e a chama apaga, imediatamente outra vela é colocada naquele lugar.
E foi exatamente ao oratório para onde me dirigi assim que voltei com o delicioso bolo de macaxeira. O escritório e a casa já estavam escuros demais, num negrume de caminhar batendo em ponta de mesa. De lá trouxe umas três velas pequenas, mas enquanto acendia a primeira me veio à mente a recordação de outros tempos sertanejos, onde as noites de breu tinham de se contentar com as chamas das velas, candeeiros e lamparinas ou lampiões.
Noites sertanejas mais escurecidas do que todas as noites. Grilos zunindo nos ocos dos paus, vaga-lumes acendendo distantes, o murmurejar da natureza no seu adormecimento. E nos casebres, nas casinhas de sapé, nas choupanas e em todos os humildes lares matutos, o amarelado quebradiço das luzes iluminando famílias, amigos e toda uma vida apertada em frágeis paredes.
Mas não apenas nas distâncias, nas fazendas e casas espalhadas pelos descampados e beiras de estradas, pois também nas cidades e arredores, naqueles grotões de mais pobreza e sofrimentos. Hoje a grande maioria das moradias possui iluminação elétrica, mas noutros tempos as noites chegavam mais cedo e depois das seis somente as chamas iluminado as vidas se preparando para o descanso da labuta tanta.
O pequeno candeeiro de lata com pavio de algodão, a lamparina com sua frágil camisa, a vela com sua serventia para iluminar por fora e por dentro. Enquanto a chama da vela bailava ao sabor da aragem, a velha senhora se mantinha ajoelhada pedindo luz para todos. Não de lâmpada, de poste, de abajur, mas luz dentro de cada um e iluminando os passos na dura sobrevivência.
Era o breu do sertão, e de certa forma ainda existente em muitos lugares. Mas também era a luz sertaneja, pois na chama da vela ou do candeeiro a face douradamente iluminada daquele que se valia de outra chama para sobreviver. A divina.


Poeta e cronista
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Desejo (Poesia)


Desejo


Quem dera a manhã em mim
e eu chegando assim
como sol na tua face
como a beleza sem disfarce
como uma janela aberta
do amor a descoberta

quem dera o dia em mim
e eu ao teu lado assim
como pensamento e ação
como desejo e realização
como necessidade de amar
e eu poder te abraçar

quem dera a noite em mim
e eu te envolvendo enfim
como misterioso luar
um vaga-lume a passear
como estrela no espaço
e no teu corpo o meu abraço.



Rangel Alves da Costa


PALAVRAS SILENCIOSAS – 359


Rangel Alves da Costa*


“Tudo tão simples...”.
“Humildade e singeleza...”.
“Uma casinha...”.
“Uma distância...”.
“Uma família...”.
“Um João...”.
“Uma Maria...”.
“Uma tristeza...”.
“Uma alegria...”.
“Uma panela no fogo...”.
“Uma panela vazia...”.
“Um cachorro magro...”.
“Um papagaio falante...”.
“Um pote...”.
“Uma moringa...”.
“Uma janela...”.
“Uma fé infinita...”.
“Uma religiosidade bonita...”.
“Um oratório...”.
“Uma vela acesa...”.
“Uma sagrada fita...”.
“Um prato de estanho...”.
“Um pão...”.
“Um fogo de lenha...”.
“Um feixe de lenha...”.
“Uma cabaça...”.
“Uma cumbuca...”.
“Uma foice...”.
“Uma enxada...”.
“Um chinelo de pé...”.
“Uma porta sem porta...”.
“Um prato de estanho...”.
“Uma caneca amassada...”.
“Uma gaiola vazia...”.
“Uma mesa de madeira...”.
“Um tamborete...”.
“Um jarro...”.
“Uma flor de plástico...”.
“Uma flor do campo...”.
“Uma toalha de renda...”.
“Uma toalha rasgada...”.
“Uma noite de lua...”.
“Um proseado...”.
“Uma cantiga antiga...”.
“Uma madrugada...”.
“Um sonho...”.
“Um alvorecer...”.
“Uma manhã...”.
“Um levantar para a vida...”.
“Um gole de café...”.
“Um sol pelo telhado...”.
“Um zunido da natureza...”.
“Um bicho correndo ao redor...”.
“Um campo...”.
“Um descampado...”.
“Uma pobreza...”.
“Uma riqueza...”.
“Um sertanejo...”.
“Um sertão...”.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 28 de agosto de 2013

SERTANEJA, A CIVILIZAÇÃO DECAPITADA


Rangel Alves da Costa*


Tomei de empréstimo, em parte, a C. W. Ceram o título acima consignado. Num dos capítulos do famoso livro “Deuses, túmulos e sábios”, o arqueólogo e escritor alemão cuida exatamente de uma civilização decapitada, mas a asteca, a partir das investidas de Hernán Cortez, denominado por ele de Fernando Cortês, no novo mundo.
Abordando acerca da conquista do México a partir da destruição do grande império asteca, diz Ceram, citando o filósofo Splengler sobre o abrupto e violento desaparecimento daquela civilização: “Este é o único exemplo de uma civilização que teve morte violenta. Não definhou, não foi sufocada ou detida em sua marcha de progresso: foi assassinada em plena floração do seu desenvolvimento, destruída como um girassol cuja flor é cortada por um homem que passa!”.
E por que comparar a civilização sertaneja à civilização asteca, considerando que esta desapareceu, enquanto império, diante da violência e da cobiça do conquistador, e aquela continua persistindo, entre solavancos e recuos, nas vastidões semiáridas nordestinas? Ora, inegavelmente que pelo aspecto sociológico, onde se analisa a evolução de um povo e o freio de desenvolvimento a ela imposta, não há que duvidar que a civilização sertaneja também foi decapitada.
Afirmo ser uma civilização a sertaneja, ou a sociedade que floresceu desde os primeiros desbravamentos dos sertões nordestinos, com base no próprio conceito de civilização. Ora, tem-se esta como um processo evolutivo de uma sociedade, desde o nascimento ao desenvolvimento cultural, político e econômico, dentre outros aspectos. Assim, uma civilização engloba o estágio alcançado por determinado povo na acumulação de riquezas e conhecimentos.
Tomando por base a divisão feita por alguns antropólogos, a civilização sertaneja seria um tipo de civilização regional, ou seja, formada dentro do contexto preexistente, que é o nordestino, e considerando que o sertão é apenas uma parte da região nordestina. Neste sentido, já dizia o historiador Capistrano de Abreu que no Nordeste floresceu uma civilização do couro, e esta assente na região sertaneja e sua formação baseada na pecuária e aonde quase tudo vinha ou dependia do couro.
Ademais, é sabido que a povoação nordestina se deu principalmente por meio do caminho das águas, através do São Francisco, também conhecido como Rio dos Currais por ter sido o responsável pelo transporte de animais no seu leito e das inúmeras fazendas que foram surgindo nas suas margens. Espaço ainda hostil, sem dono, serviu como curral para os primeiros rebanhos. O passo seguinte foi adentrar a mataria interior para ali estabelecer criatórios e dar início ao povoamento propriamente dito.
Civilização com raça própria, a sertaneja, caracterizada pelo apego a terra enquanto meio de produção, primeiro fez surgir a cultura da sobrevivência, para depois fazer brotar suas manifestações culturais, políticas e econômicas. Daí que a característica maior dessa civilização foi a superação dos desafios para se estabelecer e progredir num meio tão hostil, pois emoldurado por secas, dificuldades de toda ordem, distanciamento do outro Brasil mais adiante.
Entretanto, o destino de superação jamais foi completamente alcançado por esta civilização. Por um lado, se acabaram as escravizações oficiais do coronelismo e as violências e ameaças dos grupos armados que às injustiças se contrapunham, por outro lado permitiu a continuação das desigualdades sociais, do aumento da pobreza e de outras mazelas sociais. E, o que se tornou mais gravoso, a imposição de um processo de eterna dependência a outros centros e esferas de poder.
Foi, pois, a desumana dependência que ao sertão foi relegada que o tornou completamente impedido de se desenvolver por suas próprias forças. Diferentemente de outros centros regionais, o sertão passou a ser tratado como o mendigo que tem de se contentar com qualquer esmola. Por conveniência governamental, agindo com feição de bárbaro conquistador, aquela civilização parou no tempo e assim permaneceu clamando favores.
Assim, a decapitação da civilização sertaneja se deu a partir do instante que a ela não foi concedido meios para se desenvolver pela força do seu próprio povo, com a consequente imposição de uma aviltante dependência. O que tenderia a ser de inigualável riqueza acabou se transformando num meio de penúria e de sofrimento, de submissão e de uso para fins eleitoreiros. Decapitando a sua força de progredir, decapitaram o seu desenvolvimento.
O que seria, pois, uma civilização rica e poderosa, teve de se recolher à insignificância perante os olhos dos governantes. Não mais um celeiro de engenhosa produtividade e desenvolvimento a custa do trabalho incansável de sua gente, mas tratada apenas como um depósito de pessoas que são chamadas a servir quando precisam de votos.


Poeta e cronista
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Dádiva (Poesia)


Dádiva


Tão bela és meu amor
que imagino a magia
no lugar do esplendor
imagino um jardim
no lugar da bela flor
imagino a existência
no lugar do lindo dia
imagino mil versos
no lugar da poesia
imagino muito mais
nesse amor que irradia

não hei de negar a paixão
flor de agora e toda estação
terno e singelo sentimento
palavras na voz do coração
para gritar ao mundo
como salmo e sermão
ecoar a imensa felicidade
de amá-la com fiel gratidão.



Rangel Alves da Costa


PALAVRAS SILENCIOSAS – 358


Rangel Alves da Costa*


“Alguém subirá à estrela para buscar a luz...”.
“Nem tanto nem tão pouco, talvez...”.
“Eis a brisa que apaga a chama...”.
“O quarto escurecido ouve a voz do silêncio...”.
“Ninguém se faz ilha quando ama...”.
“A solidão navega em areias desérticas...”.
“A lágrima inunda e machuca a face...”.
“O grito se perdeu antes de ser ecoado...”.
“Não adianta pular do último andar...”.
“Não adianta subir no telhado e se jogar...”.
“Não adianta três goles de veneno...”.
“Não adianta se atirar do penhasco...”.
“Não adianta mirar a arma contra o peito...”.
“Não adianta dizer adeus a si mesmo...”.
“A noite não é completamente escura...”.
“A doença dificilmente é incurável...”.
“A terra um dia será molhada...”.
“Virá outra estação depois do outono...”.
“A noite triste traz a madrugada...”.
“A esperança provoca o reencontro...”.
“Há de se compreender tanta dor...”.
“Ninguém é feliz sob o véu do abandono...”.
“Ninguém é feliz com sede e fome de vida...”.
“Ninguém é feliz sem ter manhã e sol...”.
“Ninguém é feliz esperando o carteiro chegar...”.
“Ninguém é feliz quando em tudo a infelicidade...”.
“Ninguém é feliz sem um sorriso no espelho...”.
“Ninguém é feliz sem avistar quem ama...”.
“Ninguém é feliz ao desalento e desvão...”.
“Mas nada que signifique um fim...”.
“Nada que mereça o grito...”.
“Nada que provoque o desespero...”.
“Nada que mereça a morte...”.
“E não porque a vida é mais...”.
“É muito mais que a tristeza infinita...”.
“É muito mais que a dor lancinante...”.
“É muito mais que o choro e a lágrima...”.
“É muito mais que o sentimento de perda...”.
“É muito mais que tempestades debaixo do sol...”.
“A vida, sabe o que é a vida...”.
“A vida é a prova da persistência...”.
“A vida é a possibilidade de encontrar soluções...”.
“A vida é uma chave em busca de uma porta...”.
“A vida é o tesouro que está invisível...”.
“A vida é a confirmação que vale a pena viver...”.
“Para provar a si mesmo a capacidade de seguir adiante...”.
“De vencer as pedras e espinhos da estrada...”.
“De encontrar o pavio no breu mais medonho...”.
“A vida é assim...”.
“É a provação e a privação...”.
“Mas também janela ensolarada...”.
“Para todos aqueles que se alimentam...”.
“Dos frutos da luta e da persistência...”.
“E se contentam com qualquer alimento...”.
“Pois sabendo que o melhor ainda virá...”.
“Que é continuar vivendo...”.
“E vivendo para conquistar...”.


Poeta e cronista
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terça-feira, 27 de agosto de 2013

A TROCA DE SEXO


Rangel Alves da Costa*


Isso aconteceu - de verdade verdadeira - lá pelas bandas da Cantirana, um dos lugares mais distantes e escondidos dos sertões nordestinos, mas que com a chegada da modernidade via internet e tudo mais, nada ficou a dever aos centros urbanos mais avançados. Basta ver a cocotagem e os modismos. Até comércio com nome difícil se alastrou por lá, a exemplo dos sempre abarrotados “Shoppis Centis Jiboia Dourada” e “Sexis Shopis Calango Aceso”.
Pois foi na Cantirana, em meio a uma família das mais tradicionais da região, que se deu o famoso caso da troca de sexo. E mesmo quando ainda não estava tão na moda como agora está essa história de mexer nas partes de baixo, ou vergonhas encobertas, como se dizia por lá. Pois vou contar como foi, e segundo ouvi de um cabra lá de Serrinha.
Para não fazer rodeios, bom que se diga logo que a dita troca de sexo envolveu alguém que até então era tido e havido acima de qualquer suspeita. Homem de reconhecida reputação, pai de família e de netos, de farto poder econômico, de conceito dos mais elevados na sociedade cantiranense. Difícil de acreditar que um senhor com tais características, na casa de seus sessenta anos, fosse se envolver com troca de sexo. Enfim.
Mas se envolveu e quase o mundo acaba por causa disso. Não só a cidade, mas a região inteira parou estupefata com o fato, com a desavergonhada história daquele até então inatacável senhor e sua mudança de sexo. Contudo, há também de se dizer que tudo começou por culpa do próprio homem, que já naquela idade e querendo aflorar seu outro lado que se mantinha comportadamente escondido.
Tudo começou depois de uma conversa que ele manteve, em confissão, com o vigário do lugar. Acostumado a usar o artifício do confessionário para falar fofocas e pecaminosidades com o desavergonhado do padre, principalmente sobre as safadezas desenfreadas da rapaziada, acabou soltando uma frase que deixou o outro de cabelo em pé. Disse que era triste ver a sexualidade tão aflorada e ele não poder aproveitar nada daquilo. Por isso mesmo que não suportava mais e ia mudar de sexo.
Ao ouvir isso, o padre quase engasgou. Sem acreditar no que ouvia, emudeceu de vez e nem respondeu à despedida do outro. Não procurou entender o contexto das palavras e se pôs a martelar que o amigo havia acabado de assumir aquilo que ninguém poderia imaginar. Depois de velho, sair do armário e mudar de sexo. Era demais. E não suportava, como sempre acontecia, guardar em segredo aquela confissão. Tinha de contar a alguém. E deu de cara logo com a beata mais fofoqueira da paróquia.
Após ouvir a fofoca, por três vezes a beata ameaçou enfartar, começou a se abanar de cima a baixo, sentou e levantou, e logo resolveu tocar adiante a novidade, porém jurando por tudo na vida que jamais contaria de qual boca havia saído a nova. Desse modo, o fogo já estava aceso, a fumaça se espalhava por todo lugar, e logo viria incêndio. E certamente seria um incêndio dos maiores.
Verdade é que da boca da beata o senhor já saiu com fama ainda pior. Um velho safado, pai de família e que agora se revelava querendo não só boiolar, mas afeminar de vez. De janela a janela a situação foi ficando ainda mais feia para o seu lado. Já era chamado de florzinha, viado velho, quenga velha, dentre coisas ainda mais escabrosas. E a coisa ficou esquisita mesmo quando a conversa chegou aos ouvidos dos familiares.
Até esse momento, mesmo estranhando que algumas pessoas o olhassem sorrindo, com zombaria e até dizendo palavras que não conseguia entender, o homem nada sabia daquela conversa envolvendo o seu nome. Lembrava apenas que havia dito ao padre que estava pensando em usar das armas da medicina e fazer um implante de um órgão sexual muito mais novo e mais potente, vez que estava perdendo a virilidade e precisava estar preparado para qualquer circunstância diante daquela moçada fogosa.
Pois bem. Quis dizer, e disse uma coisa, e o padre ouviu outra, ou deu uma maldosa interpretação ao escutado. Se ouvisse apenas que o safado do amigo dizia que pensava trocar sua ferramenta velha por uma nova, a coisa não tinha tomado a proporção que tomou. Assim, mudar de sexo significa simplesmente trocar aquilo que tinha como imprestável por um membro potente e jovial.
Partindo de uma brincadeira, pois sabendo da impossibilidade de isso acontecer, o homem acabou chamando para si toda a desgraça do mundo. A esposa arrumou-lhe a mala no mesmo instante que soube da história; os filhos juraram nunca mais olhar na sua cara; um neto disse que dali em diante não ia mais estudar de jeito nenhum; a vizinhança fechou-lhe a porta; toda a cidade ecoou em alarde aquele prato cheio.
Então ele se lembrou de onde poderia ter partido aquela conversa. Saiu correndo em direção à igreja, e de arma em punho fez o padre seguir até a porta e de alto-falante na mão trazer a verdade à tona. Aí sim, nesse momento uma grande verdade foi revelada, pois o padre, além de pedir perdão pelo mal entendido, acabou confessando que na realidade aquele sonho de troca de sexo era seu, e de mais ninguém.
Ele sim, que não suportava mais ser padre se por dentro era uma freira, uma sacerdotisa, uma libélula esvoaçante...


Poeta e cronista
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Mar de amar (Poesia)



Mar de amar


Ouço o murmurar
das águas do mar
também vou cantar
pro meu amor
vou cantar

vou cantar cantiga
canção borbulhante
a onda espumante
para um amor
tão amante

cantiga de coração
meu amor é canção
e tão belo é o cantar
sereia está na areia
para amar

quero amar sereia
quero navegar
depois de cantar
entro no seu mar
vou amar.



Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 357


Rangel Alves da Costa*


“A noite e de repente...”.
“Uma fogueira acesa...”.
“A escuridão e de repente...”.
“Um vaga-lume luzindo adiante...”.
“Véu das sombras e de repente...”.
“Uma lua bonita despontando...”.
“O vazio escurecido e de repente...”.
“A vela flamejando uma cor...”.
“Negro, retinto, escurecido...”.
“E de repente a luz se faz...”.
“Porque tudo muda...”.
“Tudo se transforma...”.
“Eis que vem a sede...”.
“E de repente a fonte...”.
“Vem o calor e de repente...”.
“A refrescância da brisa...”.
“Chega a quentura desértica...”.
“E mais adiante o brilho de um oásis...”.
“A boca esturricada se espanta...”.
“Diante da moringa d’água...”.
“Porque tudo muda...”.
“Tudo se transforma...”.
“Tudo uva...”.
“E tudo passa...”.
“Tudo uva...”.
“E tudo vinho...”.
“Tudo maçã...”.
“E tudo sidra...”.
“Tudo maçã...”.
“E tudo compota...”.
“Tudo tarde...”.
“E tudo entardecer...”.
“Tudo entardecer...”.
“E tudo anoitecer...”.
“Tudo anoitecer...”.
“E tudo noite...”.
“Tudo noite...”.
“E tudo lua...”.
“Tudo lua...”.
“E tudo lobo...”.
“Tudo louco...”.
“Tudo amor...”.
“Tudo saudade...”.
“Porque tudo muda...”.
“Tudo se transforma...”.
“Assim na primavera...”.
“Assim na flor...”.
“Assim no tempo que passa...”.
“Assim no outono que chega...”.
“Assim nas folhas frágeis...”.
“Assim nas folhas mortas...”.
“Assim na ventania...”.
“Assim na agonia...”.
“Assim na vida...”.
“Assim na morte...”.
“Pois assim em tudo...”.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 26 de agosto de 2013

COM DEDO NO GATILHO E LÁGRIMA NO OLHO (O JAGUNÇO ENTRE O SIM E O NÃO)


Rangel Alves da Costa*


Não negava a ninguém. Matava porque era o jeito, por profissão, mas não gostava disso não. Maldita hora que aceitou três contos de réis pra dar cabo de um pé rapado que nem tinha onde cair morto. Tudo por causa de intriga do coronel que soubera haver o cabra olhado pros peitos de uma de suas raparigas.
Tocaiou o homem, enfiou-lhe dois chumbos quentes na testa e fez o caminho de volta para receber o restante do pagamento. Foi seu maior erro, pois o coronel pagou o acertado, mas disse que aquele dinheiro não lhe dava garantia nenhuma se saísse dali. Certamente ia ser preso pela morte de um inocente, e mais ainda de emboscada. Lascou-se pro resto da vida.
Sem saída, ali mesmo foi ficando. Vinte anos depois e servindo de jagunço para o mesmo patrão, já nem sabia quantos tinha derrubado e deixado estrebuchando nas veredas ou curvas poeirentas daquele mundão de sangue e urubus. Com o tempo, foi adquirindo uma frieza tal que tanto fazia atirar numa cabaça num pé de pau como na testa de um desafeto de seu patrão.
Era especialista em emboscada, em tocaia, em morte sendo cuspida dos tufos do mato, das sombras fechadas dos arvoredos de beira de estrada. Ali chegava feito um bicho do mato, silencioso, quase rastejante. E então se punha a esperar sua vítima. Sabia que mais cedo ou mais tarde ela passaria ali, pois caminho, pois lugar certeiro para seguir adiante. Um dia, dois dias, nada disso importava. Quando menos esperava e o vulto apontava adiante. Então era hora de mostrar sua maestria na arte da jagunçagem.
Levantava um pouquinho se estava acocorado; se achegava mais pra perto da visão da estrada; vagarosa e cuidadosamente abria uma pequena fresta em meio às folhas e galhagens; verificava se a arma estava em ponto de tiro, com munição, sem empecilho no cano nem no gatilho; esticava a mão levando nela a arma; aprumava numa direção certeira; guiava o cano pela mira de um dos olhos, mantendo o outro apenas entreaberto; e assim se mantinha firme, pronto para o fatídico evento. O primeiro tiro.
Entretanto, parecia uma eternidade desde o momento em que chegava ao local até o instante em que fatalmente apertaria o gatilho. Nos últimos segundos, coisa de dez ou vinte, certamente que não pensava noutra coisa senão sentir o fogo cuspindo o estampido seco. Já estava fora de si e tomado apenas pela expectativa do acerto e da visão do corpo atingido. E depois caindo.
Contudo, até esse momento muita coisa se passava pela sua mente, ainda que para os outros ali não houvesse nada além de uma fera, alguém que desde muito havia se desumanizado e embrutecido os sentimentos. Bons ou maus, sentimentos haviam; pensamentos bons ou ruins, fundados ou vazios, certamente que haviam. E tais pensamentos martelavam sua cabeça desde o primeiro instante em que se punha no local da tocaia.
Na solidão da mataria, no silêncio sussurrante da natureza, não há ninguém que deixe de refletir sobre a existência, o percurso de vida, o que fez e o que tem a fazer, contrabalançando seus atos e ações. E nada disso se distanciava do jagunço. Diferentemente do que qualquer um poderia imaginar, era dentro do tufo de mato que encontrava seu verdadeiro confessionário, que conversava consigo mesmo e lamentava e pedia perdão pelas ações tão medonhas.
Sua mente fervilhava, clamava, gritava, silenciava, e dizia: “Até quando, até quando essa vida de tirar a vida dos outros? Preso à sede de sangue de um coronel, deixo de ser gente para me tornar num bicho sedento da vida do outro. E ninguém que seja meu inimigo, ninguém que me tenha feito qualquer mal, ninguém que verdadeiramente mereça morrer pelas minhas mãos. Até amigo já matei porque o tinhoso mandou, até pessoas que eu sabia inocentes já tombaram pela minha arma. E o que ganhei nisso tudo, o que tenho agora como prêmio por tantas covardias, o que posso ter daqui em diante? Tenho filho, tenho mulher, e o que seria de mim se alguém jogasse chumbo por cima deles? Eu não nasci pra isso, eu preciso viver, preciso refazer minha vida. Mas sempre repito isso. E já repeti mais de vinte vezes, e em mais de vinte mortes. Mas essa será a última. Ou nem será mais a última, pois já não vou mais matar ninguém...”.
E ouve o som do cavalo a galope. Estanca o pensamento e alonga a vista. É ele. E mira, aponta, coloca o dedo no gatilho. Uma lágrima ainda escorre no canto do olho. A lágrima desce pela tez crispada de sol. O olho mirando, a lágrima, o gatilho. Será?


Poeta e cronista
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Flor de jardineiro (Poesia)


Flor de jardineiro


Olhei para a flor
com olhos de olhar pra ela
beijei cada pétala
com beijo que é beijo dela
senti um perfume
o aroma que perfuma ela
colhi um buquê
com mãos acariciam ela
um jardim primaveril
a estação no corpo dela
não sei se mulher ou flor
se donzela ou jardim
só sei que sou jardineiro
e ela quero pra mim.



Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 356


Rangel Alves da Costa*


“Somente o espelho...”.
“Para conhecer o ser exterior...”.
“Além de o próprio ser...”.
“Somente o espelho...”.
“Para avistar além...”.
“Do que a pessoa se deseja enxergar...”.
“Somente o espelho...”.
“Para refletir a realidade...”.
“Sem disfarces ou arremedos...”.
“Somente o espelho...”.
“Para mostrar o que é...”.
“Ainda que a pessoa não queira ser...”.
“Somente o espelho...”.
“Para guardar o momento refletido...”.
“E confrontar com a reflexão seguinte...”.
“Somente o espelho...”.
“Para sentir as mudanças...”.
“A cada instante da vida...”.
“Somente o espelho...”.
“Para compreender os instantes...”.
“De tristeza ou de felicidade...”.
“Somente o espelho...”.
“Para silenciar tudo aquilo...”.
“Que poderia ferir o sentimento...”.
“Somente o espelho...”.
“Para suportar a persistência...”.
“De quem deseja se transformar...”.
“Somente o espelho...”.
“Para silenciar...”.
“Ao ver conceitos inexistentes...”.
“Somente o espelho...”.
“Para se tornar fotografia...”.
“Até a próxima aparição...”.
“Somente o espelho...”.
“Para verdadeiramente...”.
“Sentir saudade e chorar uma ausência amiga...”.
“Somente o espelho...”.
“Para sentir o mesmo prazer...”.
“Que o outro sente pela suposta beleza...”.
“Somente o espelho...”.
“Para transmitir ao outro...”.
“Instantes de prazer pessoal...”.
“Somente o espelho...”.
“Para chorar a mesma lágrima...”.
“Chorada pelo espelhado...”.
“Somente o espelho...”.
“Para guardar no coração...”.
“O beijo deixado na sua face...”.
“Somente o espelho...”.
“Para amar também...”.
“Quando o outro também está amando...”.
“Somente o espelho...”.
“Para envelhecer...”.
“E ainda transmitir jovialidade...”.
“Somente o espelho...”.
“Para ser o único álbum...”.
“Dos instantes mais importantes de uma vida...”.
“E se não fosse o espelho...”.
“Como seria o outro?”.


Poeta e cronista
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