SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 31 de dezembro de 2011

ANTES QUE ANOITEÇA (Crônica)

ANTES QUE ANOITEÇA

                                  Rangel Alves da Costa*


O dia foi todo ensolarado, as nuvens nem sequer se intrometeram na imensidão azul do pintor. Certamente será noite aberta, de lua imensa e cheia, de estrelas faiscantes, de mistérios e inspirações.
Mas antes que anoiteça há ainda muito a se fazer, pois quando o negrume chegar, o lobo der o seu primeiro uivo lá em cima de sua montanha, já é tempo de viver outra vida, fazer aquilo que a lua abençoa e o silêncio agradece.
Por isso antes que anoiteça adentre o mato e a vereda, vá de facão e cordame, com força e destemor, colher a lenha que falta para a fogueira de mais tarde e da manhã seguinte. Há de ter um café torrado, um milho torrado, uma chaleira de chá, uma labareda para iluminar os olhos de quem tanto ama.
Quando a noite chegar a chama já está acesa, os corpos já estão suados mesmo na friagem que soprará na rede estendida lá fora. Com o vento direcionando a labareda, somente a lua pra enxergar o beijo, o toque, o abraço, o entrelaçamento do desejo, tanto amor, imenso prazer.
Por isso antes que anoiteça coloque milho pras galinhas, encha os cacos de água limpa, jogue água nas plantas, varra a casa e o quintal, tire a roupa do sabão, estenda a roupa no varal, rale logo o cuscuz, separe a carne do sol pra assar, pegue a frigideira e os ovos de capoeira, não esqueça nada.
Quando a noite chegar não haverá mais prato na mesa nem nada caseiro a fazer. Abra a porta e a janela, deixe a ventania entrar, caminhe em direção à malhada e olhe ao redor, sinta o misterioso murmúrio, ouça as vozes da natureza e o farfalhar das folhagens. O tamborete estará bem ali, pois de tronco de pau fincado na terra. Olhe pra lua e sorria, diga que é feliz e comece a dedilhar a viola.
Por isso antes que anoiteça coloque gás na lamparina, procure o caderninho de folhas ainda em branco e a caneta na gaveta da mesinha, lembre com saudade de alguém e escreva uma carta bem bonita, diga que os dias são mais tristes com sua ausência e está engordando um capão pra quando voltar. Vai fazer uma panelada de caldo bem grosso, depois separar pra fazer um pirão amarelado de doçura. Quando se fartarem na mesa, estenderão duas redes no alpendre e falarão sobre as novidades e as coisa simples e boas de se conversar.
Quando a noite chegar abra o armário, procure pelos cantos até encontrar aquela garrafa de vinho, o litro de pingo da terra, o restante do licor que já não vê faz tanto tempo. Escolha o seu sabor, escolha a dose da noite, aquela que mais alente seu espírito e sacie a sede do momento. De copo ou caneca à mão, saia pra fora, vá ver a noite estrelada, troque uma prosa sozinho, diga a si mesmo que não há vida mais bela e feliz do que aquela que Deus lhe deu.
Por isso antes que anoiteça coloque água na moringa e leve o barro molhado até o umbral da janela, debulhe o feijão de corda para o almoço de amanhã, coloque mangaba no molho que é pra carne separar do caroço e virar o sumo mais gostoso do mundo. Ouça o locutor dizendo que alguém apaixonado oferece aquela singela página musical ao seu amor que está distante, e depois ouça com atenção a letra e a melodia da música antiga e apaixonante. Mas não chore não, ainda não, somente quando a noite chegar e a saudade apertar ouvindo a melodia que o vento traz.
Quando a noite chegar, e antes de sair para a noite lá fora, se ajoelhe aos pés do oratório, faça uma prece, agradeça, acenda o incenso e a vela, converse com seu Deus, seus anjos e santos, depois beije na conta do rosário e se benza. Livre estará dos pecados do pensamento, das fraquezas da mente, das vontades que surgem no meio da noite, embaixo da lua, envolto em tantos mistérios. E porque pensará em amor, vai querer amar, por isso mesmo já saia pra noite que chama apenas com a parte humana do seu corpo. Deixe o espírito diante da Bíblia, iluminado ao clarão da vela.
Sinto que a noite chegou e pelo telhado disforme já vejo um pedaço de lua. Desculpe, mas o negrume me chama, preciso viver esse momento. Venha comigo se você quiser. Jogo a esteira no meio do tempo e lhe conto uma história bonita.




Poeta e cronista
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Silêncio do vento (Poesia)

Silêncio do vento



Sopro
aragem
brisa apenas
e depois
a palavra
na boca
na boca do vento
chegando leve
murmurando
apenas um gesto
no lábio
no lábio do vento
querendo dizer
e dizendo
falando baixinho
que veio
esvoaçar tudo
voejar o cabelo
tremular coração
agitar o corpo
num arrepio
fazer suar
e depois
depois gritar
no grito dizer
te amo
te amo
e te amo
e se fazer
ventania
vendaval
paixão incontida.




Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: CONFISSÕES CARNAIS

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: CONFISSÕES CARNAIS

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Dizem que um velho padre, já cansado de ouvir tanto mentira e tanto descaramento de certas mulheres que chegavam para se confessar, resolveu dar um basta nessa situação, exigindo que falassem realmente a verdade ou ele mesmo se encarregaria de piorar a situação da pecadora, enviando um relatório detalhado lá para as terríveis profundezas.
Então chegou uma e ouviu logo o alerta do religioso. Trêmula, suando por todos os poros, foi dizendo baixinho:
“Seu padre, é que quando tô no bem-bom com meu marido, diz ele que ouve eu chamando o nome ou apelido de outros homens, coisa como Zezão, Tripé, Zé Docinho e Argemiro”.
E o padre sentindo honestidade, perguntou se ela conhecia pessoas com esses nomes. Mais nervosa ainda, ela começou a dizer que era mulher séria demais, que nunca havia traído o marido, mas que esses homens haviam se enxerido pra ela. E rapidamente o padre perguntou se não havia passado apenas de enxerimento. Então ela disse: “Só, acho que só, mas a carne é tão fraca...”. E foi imediatamente expulsa do confessionário.
Chegou outra cheia de honestidade e foi logo se ajoelhando e dizendo: “Todo mundo sabe que sempre fui honesta demais, casei virgem e vivo com o mesmo homem esse tempo todo. Mas de uns tempos pra cá venho sentindo uma coisa diferente, um fogo que me sobe entre as pernas toda vez que vejo o leiteiro, o padeiro, o pedreiro, o pintor, o açougueiro...”.
E o padre interrompeu pra dizer: “Já basta. Essa é a chamada adúltera profissional, dá pra todo mundo que tenha profissão, menos pro marido desempregado”.
Chegou ainda outra dizendo que vivia desesperada, tentando se regenerar a todo custo, pagar por todos os pecados e não pecar nunca mais. E contou parte de sua história:
“Vivo me queimando em vida por causa dos meus tantos erros carnais. Fui experimentar se era bom trair o marido, coisa que achava normal em todas as amigas que tenho e que fazem isso descaradamente, e depois que fogosamente me entreguei a outro homem pela primeira vez, perdi o freio do entrepernas...”. E o padre gritou mandando que parasse com aquela safadeza na sua igreja. E saiu pra fora do confessionário.
Do lado de fora, mandou que a mulher levantasse e apontasse dentre aquelas mulheres e beatas que estavam sentadas em orações pelos bancos e recantos, se havia alguma que traía o marido, como ela havia afirmado.
“Todas, meu bom padre. Todas traem seus maridos”. E essa se livrou do infernal relatório.  





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sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

DE PÉS DESCALÇOS (Crônica)

DE PÉS DESCALÇOS

                                        Rangel Alves da Costa*


Dizem que os espinhos da estrada são como pontas de canivetes famintos, que as pedras que se espalham na terra causam tormentos terríveis, que as miudezas cortantes que estão por todo lugar ferem a pele e adentram o solado.
Sobre tudo isso já sei e ainda assim joguei bem longe minhas sandálias de couro cru para deixar em nudez os meus pés, descalços para o longo caminho que tenho de seguir. Quem dera o chão pisado ser espelho de cada passo.
E os meus pés, acostumados que são a andar calçados e protegidos por todo lugar, sobre terra, pedra e asfalto, terão de se acostumar com a penitência de provar na dor o sabor do encontro.
Partirei assim que o sol se esconder, a vermelhidão sumir atrás de sua porta e os primeiros sinais da noite surgirem. Sem o queimor do sol, sem o calor escaldante, com a brisa do anoitecer talvez seja mais fácil andar.
Certamente que sem o sol açoitando, revirando tudo que há debaixo e por cima da terra, as pedras e os espinhos do caminho procurarão descansar dos ferimentos provocados em outros pés ao longo do dia.
Mas certamente também nem todos repousaram satisfeitos no leito da escuridão. Pedras, espinhos, garranchos e outros cortantes existem que continuam esperando a passagem de outros pés no mais alto negrume e madrugada adentro.
Sabem que são esses pés que trazem consigo os passos dos atormentados, dos penitentes, dos pecadores, dos que fazem da provação uma forma de redimir suas culpas e aliviar as dores e os tormentos que afligem o coração.
Quantos pés descalços não já feriram, lanharam, cortaram, fizeram sangrar nessa condição? Ora, a pessoa que segue acha apenas que pisou num espinho, numa ponta de pedra, quando vai deixando pra trás as marcas avermelhadas de seus erros.
Mas também não sei se a noite será menos dolorosa. No luminar do dia ainda se avista tudo ao redor, os percalços e os perigos, e principalmente os perfurantes que tentam se esconder à espreita. Na noite tudo é diferente.
Sem outra luz senão a da lua e do que possa enxergar o olhar, os meus pés descalços não pisarão noutra coisa senão na mais afiada ponta. É sempre assim quando se caminha arriscando a sorte para sofrer menos.
Haverá um laivo de sangue que brota, uma ferida aberta, uma chaga na pele, um lanho que se abra num pequeno fio, um espinho que adentra, um espinho que fica, um espinho cuja pontada fará aguçar ou perder os sentidos.
Mas qual o sentido mesmo dessa dolorosa viagem, de pés descalços, em meio ao anoitecer e seguindo adiante até onde o passo possa chegar? Por que caminhar na dor, procurar no sofrimento esse encontro?
Já faz muito tempo que deixei de te olhar com o mesmo espelho de seu olhar de paixão. Sua doçura, ternura e carinho eram para mim estranhezas numa relação apenas suportável para mim.
Não era nem minha esposa, minha mulher, apenas uma namorada que sempre quis ser companheira, amiga, amorosa e compreensiva amante. Ora, pensei ter as minas de ouro, as riquezas da vida, o baú cujas chaves repousavam às minhas mãos.
Pensei ser dono de tudo, dono do mundo, e principalmente de você. E por ser dono a deixei num canto esquecida e repreendi assim que me lançaste um olhar e uma palavra. E mandei ir embora, sair porta afora, achando que voltaria num grito.
Ontem gritei, hoje desesperei, não suportei mais a ausência. Apenas vi quando seguiu pela estrada, entrou na curva do caminho e sumiu. Onde estará o meu amor agora, onde estará agora aquela que precisa ouvir minha confissão e o meu pedido de perdão?
Não sei, mas juro que irei encontrá-la. Por isso estou de pés descalços, já pisando em pedras e espinhos. E quem sabe confessando o amor verdadeiro ela não me ajude a sarar de tantas feridas.



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Entre os campos floridos (Poesia)

Entre os campos floridos



E o sol chegou mansamente
entristecendo o orvalho enfim
porque a lágrima dormente
daria lugar ao florido jardim

as rosas, os begônias, as cores
mil flores no leito estendidas
perfumes de sonhos e amores
esperanças outra vez renascidas

e o leve vento soprando além
trouxe no seio pequena semente
semeando na terra também
bela flor de beleza inocente

e quando a manhã festeja o dia
os campos alegres cheiram a flor
sinto seu passo nessa sintonia
e reconheço o buquê de amor.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A CARTINHA

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: A CARTINHA

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Num lugar bem distante, mundão mesmo de meu Deus, morava um povo pobre, vivendo basicamente do trabalho braçal na roça, entregue a sorte das chuvas e das estiagens. Não havia nem posto médico nem escola, quando muito uma vendinha de farinha e jabá. Desse modo, todo mundo que nascia ali morria analfabeto, sem saber escrever ou ler uma linha sequer.
Mas um dia chegou ao lugar uma família forasteira, gente que já vinha fugindo da seca em outra região. E essa família era formada pelo casal e uma mocinha linda, na idade dos seus dezessete anos. E essa criatura, porque sabia rabiscar no papel algumas palavras e ler juntando letra com letra, logo se tornou quase uma deusa, uma verdadeira rainha. Muita gente a tratava como doutora.
E na comunidade havia uma família cujo filho mais velho tinha ido tentar a sorte na cidade grande. Ao sair de casa, deixando molhados os olhos de toda família e de uma vizinha mais adiante, mulher casada e chegada aos braços do jovem, prometeu que não descansaria à noite, depois do trabalho de ajudante de tudo, enquanto não aprendesse a ler e escrever, e tudo porque queria mandar cartinhas família. Só esqueceu que ninguém ali sabia fazer um “o” com copo, muito ler qualquer coisa.
Um dia chegou uma carta e a mãe do rapaz correu chorosa até a casa da mocinha pedindo por todos os santos que ela lesse e dissesse o que havia escrito ali. E a jovem demorou uns dez minutos para ler cerca de dez linhas. Tanto era ruim a leitura de cá como a letra de lá.
No dia seguinte ganhou um queijo do coalho e uma rapadura para prestar um grande favor, que era escrever a resposta da cartinha. E a mocinha passou quase meia hora para escrever as quinze linhas, e todas cheias de saudades, de lágrimas e de volte logo para os braços da família. Chorou também ao escrever adeus.
Mas no mês seguinte a mocinha fugiu com um caixeiro viajante que passou por ali e a comunidade ficou sem a sua doutora. E eis que chegou outra cartinha e a família do rapaz ficou em polvorosa sem saber o que fazer. Abriram ao vento, colocaram o papel debaixo do sol, na luz do candeeiro, de todo jeito, e ninguém ao menos imaginavam o que aqueles garranchos queriam dizer.
E tudo tão simples, tão bonito: “Mãe, tô morreno de sordade. Ansim que eu recebê o dinhero do meis vô crompá um presentim pá senhora e vô simbora. Um bejo de sordade. Adeus. Do seu fio Zé”.






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quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O QUE JÁ FIZ POR AMOR (Crônica)

O QUE JÁ FIZ POR AMOR

                               Rangel Alves da Costa*


Hoje sou solitário, vivo sozinho, sou apenas filho do tempo e dos dias, mas para mostrar carinho, devotamento, coragem, paixão, arrebatamento, já fiz tudo por amor.
Num tempo que se amava de verdade, quando a relação era revestida de seriedade e boas intenções, valia a pena penhorar todos os esforços em nome da pessoa amada.
Por isso já fiz o que podia fazer: abracei-me ao veu da alma, enxerguei a aura ladeando o doce semblante, pensei ter a primavera, dei a flor, o carinho, o beijo, o verdadeiro amor.
Mas também já fiz besteira, menti, falseie, enganei, traí, apenas estive, apenas fiquei, cheguei com outro perfume, errei o nome na hora do abraço. Fui amante, mas também desalmado, fio que corta sabendo que vai dilacerar coração.
Mas por amor fiz muito mais...
Abri a cancela, andei bem mansinho, espantei o gato, fiz calar o cachorro, tirei a sandália e subi na janela. Caí dentro, por cima da cama e em cima dela.
Encontrei na cidade uma quinquilharia brilhando feito ouro e resolvi que aquele seria o maior presente já recebido por ela. Ela acreditou, mas nunca usou com medo de ser assaltada.
Quando uma quis me dar adeus, espalhafatosamente disse que ia me jogar do penhasco e até corri naquela direção. E ela depois me beijou.
Inventei de ser poeta e comprei um caderno novinho. Reescrevi poemas dos outros, coisas de amor e de paixão, e depois assinei em baixo. Por dias seguidos levei esse caderninho aos nossos encontros.
Quando não queria dar flor, resolvia pular os quintais e roubar frutas da estação, colocar tudo num cestinho e depois entregava com um bilhete: “Essa manga Rosa é tão doce como o seu nome, minha deliciosa Rosinha”.
Mas ela preferia frutas diferentes, tudo que via em revista ou ouvia o nome pelo rádio. Então plantei no meu quintal uva, maçã, melão e pera. Não nasceu nenhuma, mas disse a ela que por amor havia tentado o impossível.
Mas quando outra disse que ia me deixar, então quase enlouqueci. Corri pra linha do trem e lá me amarrei nos trilhos, gritando que a máquina fumacenta viesse logo para acabar com a vida de um pobre abandonado. Ela chegou a tempo, se arrependeu e me deu beijo.
Como sabia que elas não entendiam bem os presentes que eu prometia, muitas vezes assegurei que ia dar os aneis de saturno, um vestido com a cauda da via láctea, o brilho do cometa, um diamante do raio do sol, pedras preciosas das minas do rei Salomão.
Já comprei lavanda barata e cuidadosamente coloquei dentro dos frascos vazios dos perfumes chiques usados por minha tia solteirona. Se ela achava o perfume parecido com Alma de Flores, então eu dizia que seu narizinho estava acostumado demais com perfume de feira.
Comprei aneis a ciganos, tecidos estendidos no chão, bijuterias em qualquer esquina, presentinhos de qualquer valor, mas tinha estratégia para impressionar e valorizar tudo isso. Um amigo desconhecido batia à porta dela e dizia que estava vindo do exterior com aquela encomenda, e que ela fizesse o favor de me entregar. Então eu chegava e dizia que há tanto tempo havia encomendado aquele presente para a deusa maior da vida. E ela me dava um beijo apaixonada.
Mas certa vez outra bateu a porta na minha cara. Preparado para uma eventualidade assim, do lado de fora eu sujava meu braço com tinha vermelha e depois gritava que estava cortando o pulso. Assim que ela abria a porta apavorada, me encontrava de canivete na mão e a tinta vermelha escorrendo. Então ela me dava um beijo e pedia pra fazer curativo.
Mas eu não deixava não. Dizia que ia ao hospital e voltava logo. E assim aparecia com o pulso enfaixado de mentirinha. E ela me beijava de novo e colocava o meu braço no seu colo, roçando a sua coxa. E eu ainda dizia que tivesse cuidado porque ainda estava doendo muito.
E hoje faria tudo por amor. Melhor dizendo, para ter um amor. E diria que virei poeta de verdade. Será que alguém iria acreditar?





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De renda e de fita (Poesia)

De renda e de fita



Vestida de sol sertanejo
perfumada de lua bonita
quanto mais vejo desejo
boneca de renda e de fita

cabelo de milho dourado
olhar que o mar felicita
sorriso mais encantado
boneca de renda e de fita

linda linda sertaneja
de corpo mulher bendita
da boca sabiá voeja
boneca de renda e de fita

ai meu Senhor do amor
este humilde em tudo acredita
me faça alcançar com louvor
a boneca de renda e de fita

a boneca é de beleza infinita
toda rendada de algodão
fios dourados no coração
amor de renda e de fita.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: AS DUAS MORTES DO GRANDE PÁSSARO

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: AS DUAS MORTES
 DO GRANDE PÁSSARO

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Dizem que numa aldeia bem distante, lá pelas vastidões das florestas quase inalcançáveis por forasteiros, exploradores ou madeireiros, existia uma tribo de índios bons, assemelhados à própria terra em que viviam e amigos da mata e dos seus habitantes.
O líder desse povo nativo era chamado de Grande Pássaro. Nem bruxo nem curandeiro, nem cacique nem pajé, nem encantado nem enfeitiçado, apenas um sábio que bastava olhar para o horizonte e dizer tudo que iria acontecer com seu povo, as farturas e as ameaças.
Somente algumas pessoas, umas quatro ou cinco, haviam conseguido encontrar e manter contato com esse estranho povo. A lua era a dona da vida, o sol alimentava o espírito, as árvores eram a seiva da existência e os animais a força vital. E o Grande Pássaro o líder maior.
Um dia o Grande Pássaro reuniu as pessoas mais idosas da tribo para fazer um anúncio muito importante. Todos chegaram aflitos, angustiados, pois não conseguiam mais enxergar o brilho tão comum nos olhos do grande sábio. E ao seu povo tomado de angústia, o Grande Pássaro apenas afirmou que já estava chegando o seu tempo de alçar voo para muito além da palmeira mais alta, entrar na nuvem mais alta e sumir no ceu mais azul que existisse.
E o povo chorou três dias e três noites. Em seguida, como era costume naquela tribo, dançou em jejum por três dias e três noites seguidas. A dança era uma forma de espantar a morte que rondava o grande líder, e a fome era para que ela sentisse que não adiantava se alimentar de um povo de barriga vazia. E o Grande Pássaro representava todo o seu povo.
Numa manhã chuvosa um velho líder não saiu de seu refúgio para agradecer com cânticos a chuva esperada. Era um péssimo sinal, todos logo imaginaram e correram até lá. Encontraram o grande líder tão fraco que não podia nem abrir os olhos direito. No desespero, após fazer beberagens com ervas do mato e não dar nenhum resultado, o filho do Grande Pássaro recorreu aos homens brancos.
Ainda na tarde desse dia o velho índio foi transportado de aeronave até um grande hospital na capital. Nem recebeu cuidados médicos, pois já chegou sem vida. No retorno com o corpo, ao invés das pessoas da tribo, os indigenistas estranhamente avistaram um grande número de bichos lá embaixo, entrando e saindo das moradias. Macacos, quatis, raposas, onças, tamanduás, veados, papagaios, lebres, coelhos e muito mais estavam ali para recepcionar o corpo do Grande Pássaro.
Os outros índios se entocaram nas matas para os dolorosos lamentos fúnebres, pois já sabiam que o seu velho líder voltaria sem vida. Mas quando desceram o caixão do avião, ao colocarem em cima de um girau, simplesmente viram quando o velho índio levantou e se dirigiu para a floresta mais fechada que havia ao redor.
E um enorme pássaro alçou voo em seguida.




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quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

CACHORRADA (Crônica)

CACHORRADA

                                   Rangel Alves da Costa*


Certas coisas acontecem que as pessoas ou fingem que não veem, passam sem dar atenção ou simplesmente acham que tanto faz que aquilo esteja acontecendo ou não. Mas como sou curioso demais, acabo cuidadosa e cautelosamente observando tudo.
Avisto todos os dias, e a qualquer hora do dia, pessoas de todas as idades mijando nos postes à moda dos cachorros. Chegam mansinhas, farejando ao redor, mas logo correm e se aliviam como querem no meio da rua. Depois, começam a grunhir e latir se olham ao redor e sentem alguém observando.
Acontece mais da boca da noite em diante, mas sempre diviso a cachorrada no cio se entrelaçando de amores. Sem querer saber se pessoas passam ou não, se observam ou não, ou se aceitam tal falta de vergonha e respeito, mas a verdade é que se lambe toda pelas esquinas, se agarra querendo tirar a roupa nos escondidos das praças. Muitas vezes chega às vias de fato e depois apenas dois cachorros apressadamente felizes.
Não há como distinguir muito bem cachorro vadio, vira-lata, de rua mesmo, daquele outro de raça, de madame, todo pomposo e cheio de trique-triques. O cachorro que passa de terno, de papelada embaixo do braço, de carro importado ou escambau, muitas vezes vale muito menos do que o cachorro pelado, sarnento, que vive desvalido pelas calçadas.
Porque cachorro é bicho fingidor demais, até no latido o bicho quer fingir aquilo que não é. Cachorro policial, cachorro autoridade, cachorro de anel no dedo, cachorro doutor, cachorro parlamentar, cachorro com mandato, cachorro eleito pelo povo, cachorro que pousa de bom moço, cachorro que veste batina e cachorro que pensa que é mais que todo mundo. Tudo cachorro e, como já dito, com menos valor e mais desacreditado do que aquele cãozinho que todo mundo corre atrás com uma vassoura.
Cachorro grande e que se diz de raça, anda sempre puxado pelo poder, através de uma coleira lisa demais para permitir fuga imediata diante de qualquer perigo. Logicamente que não anda em todo lugar e nem gosta de ser visto por outros cachorros, pois sempre acha que a proximidade é perigo para sua saúde financeira. Mas quando tem que estar diante da cachorrada é todo manso, olhando por baixo, agindo devagarzinho e sempre dizendo alguma coisa ao pitbull que sempre está ao seu lado.
Mas dizem que quanto maior o cachorro mais cachorrada ele faz. Não é de mijar em pé de poste, pois prefere urinar em cima de vira-latas, de cachorros insignificantes para ele. Mas dizem também que é carnicento, só gosta do que é podre, lambe o que encontra facilmente até não sobrar mais nada. Vive se apegando na raça que tem, mas se encontra cachorro mais imponente sai se arrastando com a língua de fora, humildemente lambendo as botas do outro.
Já cachorro de rua tem de todo tipo. O perdigueiro é honesto e trabalhador, morde seu osso com orgulho porque lutou para consegui-lo; o magricela zoadento, sem tamanho ou porte algum, sempre quer ser mais valente que os outros. Fica latindo de longe, soltando grunhidos com seus dentinhos afiados, querendo mostrar valentia. Porém basta que sigam em sua direção que o safado bota o rabo entre as pernas e corre pra se esconder debaixo do que encontrar.
O vira-lata legítimo está na maioria da população. Gosta de viver escorneado pelos cantos, à sombra, esperando sentir o cheiro de qualquer coisa pra sair farejando na direção. Não faz mal a ninguém, mas também é uma raça inconveniente por gostar, de vez em quando, de roubar o osso do outro, mijar onde está limpo, se encostar nos outros para tirar algum proveito.
A maioria dos cachorros é tratada como cães, mas outra parcela é tida como cachorro mesmo, tratada como cachorro, vista como cachorro. Não é difícil encontrar cachorros assim, ainda adolescentes, tendo marquises por moradia, a rua como único caminho, o resto de qualquer coisa jogada adiante como alimento. As pessoas fazem tudo para evitá-los, pois acham-nos sujos, feios, fedidos e sentem que estranhamente aprenderam até a estender a mão pedindo esmola.
Esses cachorrinhos de rua, animais esquecidos pela sociedade e sem grandes esperanças de sobreviver, uivam à moda dos lobos, se esganiçam à moda das raposas, são carnicentos à moda dos coiotes. Estão lá, nas esquinas, nas ruas, embaixo das marquises, muitas vezes com os focinhos cheirando cola. Mas tanto faz. Ninguém gosta de cachorro mesmo.
E tem cachorro que tem a cara de gente. Tenho até minhas dúvidas se muitas pessoas não são canídeas que pensam serem humanos. E tem cachorro que é um doce de pessoa. E tem gente que nunca vai deixar de ser o mais sarnento vira-lata.



Poeta e cronista
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Diário de ontem (Poesia)

Diário de ontem



Três horas da madrugada
ventania entrando pela janela
o corpo queimando inteiro
todo tomado de suor
e um sonho muito triste
minha mão sem alcançar a sua

cinco horas da manhã
a janela aberta é retrato do dia
olho a revoada que passa
e me sinto também passarinho
voando alegremente apressado
em direção ao seu ninho

cinco horas da tarde
o dia se fez de muita esperança
talvez o meu grande amor
que continua no seu paraíso
esteja bela diante do espelho
pra chegar sem um aviso

seis horas e meia da noite
vou deixar a porta entreaberta
da janela olho as ruas e esquinas
sinto a beleza da vida e da noite
mas os minutos vão passando
e a tristeza já vem como açoite

meia-noite
sujei minha roupa de vinho
cortei minha mão na vidraça
o vento soprou apagando a vela
tudo é escuridão e solidão
beijo o copo e penso que é ela.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O CAMINHO DOS ANTEPASSADOS

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: O CAMINHO DOS ANTEPASSADOS

                                          Rangel Alves da Costa*



Conto o que me contaram...
Contam que certa vez um jovem procurou um velho sábio para saber qual caminho que deveria seguir para conhecer seus antepassados.
Queria saber a história de sua descendência, sua linhagem hereditária, a raça da qual provinha, desde os primórdios. Desse modo, lhe interessava conhecer não apenas os pais de seus avôs, mas também os bisavôs destes e quem sabe chegar até o tronco comum, de onde se originou toda sua família.
Recebendo o jovem, o velho sábio silenciosamente ouviu o que ele tinha a relatar, perguntou sobre sua dúvida maior e depois mandou que se olhasse num velho e embaçado espelho, a seguir pediu que se mirasse na água contida numa bacia, e por fim mandou que olhasse bem dentro do seu enuviado olhar.
Perguntado sobre o que tinha enxergado, o jovem disse que achava que o velho espelho havia envelhecido também o seu rosto, que a água da bacia não havia permitido que se enxergasse com nitidez, e que no olhar do sábio não havia conseguido enxergar nada.
Então o velho deu um leve e enrugado sorriso e disse que nessa resposta poderia conhecer o caminho dos seus antepassados. E que fosse adiante procurando o espelho, água de bacia e o olhar dos tempos.
E assim o jovem fez. Agradeceu a sábia lição e saiu pelo mundo procurando pessoas que parecessem consigo, tivessem sua personalidade e caráter, como num espelho onde o conhecido refletisse muito do seu jeito de ser, de pensar e querer.
Depois chamou todos para que se espelhassem na bacia d’água e vissem se pareciam com os outros ao redor. E no espelho de águas sinuosas, nenhum rosto era velho ou era novo, apenas parecido ou não com o outro. E quantos todos confirmaram que talvez parecessem mesmo uns com os outros, então o jovem abraçou-os e deixou-os seguir.
Levou consigo apenas a bacia com seu espelho d’água para banhar o rosto todas as vezes que sentisse saudades de sua família e quisesse reencontrar qualquer um, com o seu olhar de agora, mas podendo enxergar todas as suas raízes.



Poeta e cronista
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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

MORTE SENTIMENTAL NUM BORDEL (Crônica)

MORTE SENTIMENTAL NUM BORDEL

                                 Rangel Alves da Costa*


Vou revelar agora o que poucos sabem. Seu nome verdadeiro, de certidão e batismo, era Maria Pureza das Virgens. Contudo, no metiê, no seu longo percurso de prostituta foi ganhando outros nomes e apelidos, o que muitas vezes a fazia esquecida de sua verdadeira identidade.
Quando ainda era novinha, carne de primeira e pouco uso na vida, era chamada Jardim das Delícias. Mais tarde, quando a fama na cama já havia alcançado fronteiras, passou a ser chamada Flor Desabrochada. Daí em diante, quando já fazia do cabaré seu lar, era alcunhada de Rabo de Fogo, Vulcão de Carne, Fiofó de Ouro e muitos outros.
Agora já estava envelhecida, sem o vigor carnal de tempos passados nem o fogo famoso que fazia o festejo de clientes desde coronéis a jagunços, de artistas a boêmios. Sentia-se verdadeiramente uma Teresa Batista cansada de guerra, esquecida, sem causar apetite nenhum nas taras dos bêbados e noctívagos. E o pior é que agora passou a se conhecida simplesmente como Quenga Véia.
Com as roupas apertadas pelo corpo, a cara toda tomada de pintura, um cheiro misto de perfume barato e bebida, com muitas bijuterias brilhando, ninguém sabe dizer nem por aproximação quantos anos a Quenga Véia – que ela não me ouça – tem agora. Mais difícil ainda porque nessa vida a velhice chega cedo demais, o corpo fica flácido rapidamente, as pelancas só vem à mostra na hora da permuta sexual.
Fez fama no interior e de lá foi devidamente levada para bordeis luxuosos na capital, verdadeiros palácios onde era servida como petisco de primeira qualidade, flor interiorana vindo satisfazer os desejos de políticos, empresários e todo tipo de gente endinheirada. Possuía alto valor, sabia disso. Cada vez que acompanhava um velhote até o quarto sabia do cheque com muitos números que ficava nas mãos da Madame. Depois recebia apenas tostões e ameaças.
Saiu do luxo com uma mão na frente outra atrás, fugindo escondida porque satisfez a tara de um dos seguranças do grande castelo. Daí em diante começou a fazer vida em outras localidades, outras cidades, em cabarés de qualquer um, em bordeis de beira de estrada, nos puteiros mais imundos. Nessa época já não sabia mais quantos anos tinha. Era apenas puta.
Um dia se olhou no espelho, passou a mão pelo corpo nu e sorriu com a beleza que ainda conseguia manter. Mas não pensou em deixar a vida de abrir as pernas pra qualquer um, apenas decidiu se valorizar um pouco mais, sair daquela imundície onde estava e procurar local mais decente para ser apreciada e receber o preço justo pelas suas qualidades corporais.
Foi parar na cidade grande novamente, passando a freqüentar bares que se caracterizavam por ser ponto de encontro de prostitutas e sexualmente esfomeados. Até que ganhou alguns trocados, mas os clientes não gostavam de repetir o prato experimentado. Então foi se afastando mais e mais até se fixar num barzinho aonde só chegava gente empobrecida e bêbada.
Levava os dias ali, ora em pé na porta e arredores, de vez em quando chamando um ou outro que passava para fazer amor, ora sentada na mesa do bar com uma cerveja adiante, depois de várias doses de bebida barata. E a cada dia que se via assim, sentada à mesa, tomada pelo álcool e ouvindo músicas apaixonadas tipicamente de cabarés, então seu mundo parecia querer desandar.
Cada letra que ouvia se sentia retratada naquela história de amor, de dor, de paixão e traição. Inicialmente apenas ouvia como coisa costumeira, mas depois foi se envolvendo com as letras, sentindo-se amargurada demais, tomada por indescritíveis angústias e aflições, até chegar a chorar copiosamente ali sentada.
E maldizia a vida, maldizia a sorte, era a revolta em pessoa. E nesses momentos revivia a infância, lembrava da família, lembrava do seu lugar, lembrava de um tempo que faria de tudo para retornar. Mas não tinha trocado, não tinha um tostão, não tinha nem mais vida para viver nem para fazê-la voltar ao seu berço.
Então começaram as ideias suicidas, a vontade de se cortar toda com cacos de vidros de garrafa quebrada, o desejo de esbofetear um valentão para receber um tiro bem no meio da testa, um demasiado querer de sumir, desaparecer, virar qualquer coisa menos prostituta. E muito menos Quenga Véia.
Verdade é que tal situação ia acumulando um misto de loucura e de negação, de culpa e de revolta. Se continuava com alguma aparência por fora, por dentro já havia se consumido completamente. A prostituta de fora não encontrava mais a sua dona internamente. E isto fez com se desinteressasse completamente por homem, por sexo, por dinheiro. Agora sentava ali somente para sofrer, para padecer, para sentimentalmente morrer.
Senta no mesmo lugar, não chora mais porque a fonte esturricada não tem mais lágrimas. Alguém chega e traz um copo e uma garrafa vazia. E assim se faz uma sina, um destino de morte sentimental num bordel.



Poeta e cronista
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