ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: NO TEMPO DO RONCA
Rangel Alves da Costa*
Conto o que me contaram...
Chamam de tempo de ronca um tempo muito distante, já de muito ido, lá pelos primeiros caminhos de tudo.
Ronca também é o tempo já vivido, envelhecido demais e agora eternamente adormecido nas suas distâncias. Por isso não acorda mais, apenas ronca, ressona, respira o ruído dos anos entorpecidos.
Verdade é que dizem que no tempo do ronca tudo era diferente do que se tem e vê agora. Era uma vida cheia de dificuldades, muito mais difícil, mas também de um povo que vivia mais feliz na sua humildade, com compartilhamento, amizade e amor ao próximo.
Ir de uma cidade a outra só mesmo caminhando a pé ou montado em jumento, levando até dias para chegar ao destino. Se mulher grávida sentisse as dores tinha que chamar a velha parteira, moradora distante, no meio da noite.
As carnes de caça em abundância eram salgadas – com sal grosso mesmo – e estendidas nos cordames pelos quintais das casas. De dia o meninote ficava de olho por causa dos urubus, de noite recolhia-se tudo para estender novamente na manhã seguinte. E quando o fogo de lenha já estava em brasa era só ir até lá com faca amolada e cortar o pedaço desejado.
Carne de caça com feijão de corda, com fava, com feijão fradinho, com qualquer coisa. Ao lado a água na moringa, a caneca de alumínio, sem talher nem nada. Comia-se com as mãos, fazendo bolo de feijão e molhando no caldo apimentado.
Casinha mesmo, verdadeiro casebre, muitas vezes encoberta por palhas de coqueiros ou outras palmeiras. Porta e janela de ripa enlaçada, colhida ali na mataria mesmo, e do mesmo material se construía a cama de varas. Tudo praticamente na madeira bruta, a tampa da mesa, os bancos, os troncos, os tamboretes.
Quando não era na madeira era do barro do ribeirão ao redor. E desse barro nascia o pote, a panela, a tampa, o prato, a canela, a moringa, o porrão pra juntar água de chuva. E no descampado dos fundos da casa, o fogão de trempe bem ao lado dos bichos caseiros que ali faziam moradia. Uma galinha, um pato, o cachorro, o gato, o papagaio.
Num tempo sem notícia, sem informação alguma que não chegasse com mais de mês, o povo se valia do próprio conhecimento da natureza para assuntar sobre o que estava acontecendo distante. E o homem olhava o comportamento da catingueira e dizia que não demoraria pra chegar notícia ruim; a mulher olhava no fundo do tacho e corria pra dizer ao marido que se preparasse para coisa boa.
E o que se tinha era o frescor nas tardes de encantamentos com a natureza verdejante, com o silêncio das noites enluaradas e o barulhar macio dos bichos nos seus afazeres na mataria. E o resto era acordar antes do galo cantar, viver na lide para ter o pão desse e do dia seguinte, e depois adormecer bem antes que a noite se completasse.
E a paz, e a paz, uma vida despreocupada e uma felicidade imensa...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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