SEMPRE O SOL
Rangel Alves da Costa*
Por contradição, de tanto acompanhá-lo nos seus afazeres na vida, a sombra do sertanejo não é a privação de luz criada pela radiação solar, mas o próprio sol, acompanhando-o como inafastável presença em todos os momentos da vida.
Por ser assim, até depois do entardecer, até mesmo quando a noite fechada recai sobre tudo, eis que o sol está ao lado do homem, esquentando-lhe o juízo, ardendo seu espírito, latejando dentro do seu corpo e se derramando feito lava nas suas veias.
E isto porque a ardência do sol é presença tão abrasadora que mesmo depois de o corpo banhado nas águas mansas do riachinho, ainda assim aquela lua imensa permanece inalterável na mente do sertanejo, ainda fervendo, ainda amolecendo o corpo, ainda querendo comer o juízo. Chega a assustar sempre o sol, tanto sol.
E por isso mesmo, pela certeza que o queimor ainda permanece na sua cabeça, os seus olhos veem aquele clarão diante de qualquer luz, é que não se aparta dele nem quando está deitado e pronto pra dormir e descansar. Vem o sonho com o sol, pesadelo com o sol, tudo com o sol sertanejo.
E na réstia do sol a vida vai tecendo seu manto: homem só, homem sol, solidão... E a presença do Livro de Eclesiastes para aumentar a desvalia: “Um dia passa, o outro vem, e não há nada de novo debaixo do sol...”.
A situação complica mais ainda quando é época de estiagem já duradoura. Ora, numa situação assim, ao levantar o matuto coloca o pé do lado de fora da porta e já olha lá pelos lados da barra, não enxergando outra coisa senão o clarão efervescente, ainda que o sol ainda esteja escondido.
Sabe que não vai chover e por consequencia será mais um dia de esturricar tudo, de endurecer de vez a lama do barreirinho, de deixar xiquexique e mandacaru sem cor, de fazer fumaçar por cima das pedras. E não demora muito pra tudo se confirmar, nos raios que surgem atrás da montanha e vão se espalhando por todo lugar.
E uma vida que bem poderia ser de alegria, pois o sol é fermento de tudo, de repente passa a se transformar em tristeza e aflição. Os galhos secos começam a cair; passarinho toma o rumo de qualquer outro lugar; a mataria se enfeia toda, fica marrom, cinza, depois esfarela ou vai queimando; os bichos se escondem em tocas, definham, fogem ou morrem de fome e de sede.
De chapeu de couro ou palha na cabeça, camisão de manga comprida, um cantil ou moringa deitada pelo corpo feito embornal, um velho alforje de caçador ou qualquer aió contendo o tiquinho do de comer, o homem ainda por cima coloca no ombro a enxada ou a espingarda e segue rumo ao sofrimento.
Pisar na terra tão quente, tão cortante quanto às pedras e os espinhos que se espalham por cima de tudo, é coisa pra sina de valentia. Mas nem caçar ou trabalhar direito pode. O sol não deixa, a queimação tenta impedir qualquer coisa, o suor logo começa a escorrer e o corpo se retrai num cansaço que aflige qualquer valente.
Corre pra descansar numa sombra, porém não encontra qualquer folhagem nos pés de paus ao redor. Ajeita-se como pode debaixo duma moita, dividindo espaço com preá e cascavel, vai virando o restante da água e, pingando de suor da cabeça aos pés, lembra alentado de uma melancia que deixou escondida debaixo dumas folhagens.
Alguém ou qualquer coisa chegou primeiro, pois só restam cascas espalhadas e sementes por cima da terra. Olha para o alto, mira por todos os lados, e parece que o sol está mais próximo do que o costumeiro, mais quente, mais feroz, mais abrasador. E não vê o que fazer senão deixar o trabalho pela metade e correr de volta em direção ao pote fresquinho lá da cozinha.
Um dia, como haverá de um dia acontecer, quando a chuva cair e não houver mesmo jeito de o sertanejo ter o seu sol imenso em meio à trovoada, ainda assim vai achar que cada pingo generoso será suor que escorre de sou rosto quente. E debaixo da chuva, cada pingo tomado será como o suor lembrando o trabalho, a labuta do dia a dia.
E a chuva também será sol, tudo um imenso sol molhado e chamando à luta.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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