SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 31 de julho de 2016

GOSTO DE PESSOAS


*Rangel Alves da Costa


Gosto de pessoas, de pessoas simples, humildes, verdadeiras, apenas pessoas, e mais ainda quando são sertanejas. E sendo de Poço Redondo, possuem moradia e repouso no meu coração.
Gosto de pessoas assim como Marcello, agora autointitulado Ratzinger, que cordialmente acrescento Cardeal Marcello Ratzinger. Marcelo é pessoa de fé, que ama sua igreja, sua paróquia, seus ofícios no dia a dia com santos e liturgias. Pessoa meiga, inteligente, afetuosa, um bom amigo para se prosear por horas inteiras.
Gostava muito de pessoas assim como Neném de Dona Clotilde, recentemente falecida, mas que ainda se faz como presente todas as vezes que visito ou passo defronte a casa de sua mãe. Guardo retratos ao seu lado, sentindo prazer em estar à sua presença e ouvindo sua voz tão pouca e tão significativa. Na última visita, levei uma caixa de chocolate. Experimentou, não gostou, mas depois deu um sorriso de satisfação. Foi embora e me deixou saudades.
Gosto de pessoas assim como Dona Lisiê, ribeirinha das bandas do Bonsucesso, hoje aportada em Poço Redondo, um doce de amiga que me alegra a alma. Desde muito que a conheço, desde os tempos que o meu pai era prefeito e a encontrava sempre na prefeitura ou visitando a casa de Dona Peta. É também Costa, certamente com parentesco, com muitas pessoas ali de Bonsucesso. Mas o que mais me encanta é avistar seu sorriso ainda distante. Quando me aproximo, então sinto uma aura boa envolvendo o abraço.
Gostava de pessoas assim como meu amigo Juquinha, ou Leto, como mais conhecido. Juquinha ainda tinha muitos encontros marcados com a vida, mas partiu cedo demais. Possuía características muito incomuns a quem vivia rodeado de amigos: vivia num mundo somente seu, de modo silencioso, reflexivo, falando apenas o bastante para ser compreendido. Nas suas palavras, a verdade, eis que nunca gostou de se envolver com conversinhas e disse-me-disse. Por que pensava mais do que falava, preferia o som do silêncio e o prazer da presença de um ou outro amigo que estivesse à altura de seu coração.
Gosto de pessoas assim como aquele velho que encontro nas minhas andanças sertanejas e sinto que se alegra à minha presença, que se sente surpresa em ser reconhecido e por isso mesmo lança palavras tão cativantes como verdadeiras. Gosto de pessoas assim como aqueles que foram amigos na infância e ainda me chegam com palavras e abraços todas as vezes que os encontro pelas ruas e estradas. É de pessoas assim que eu gosto. Como no passado eu gostava de prosear em pé de balcão com pessoas como Abdias, João Paulo, Galego, Chico de Celina, Liberato, qualquer um que chegasse aboiando ou encourado.
Gosto de pessoas assim como minha prima Nininha, ou a Rainha Nininha do Reinado do São José. E gosto ainda mais pela sua luta, pelo seu esforço, pelo seu incansável afazer seja debaixo do sol ou da chuva, da lua ou do clarão, a todo instante que seja preciso fazer. Saio caminhando, sigo pela estrada de chão, mas quando chego ao seu reinado, sempre avisto a princesa no meio do mato, de vara à mão tangendo animais, cuidando dos porcos, pesando ração, fazendo queijo, tudo sem parar. E ainda tem tempo de sorrir quando se aproxima de alguém. E ainda tem tempo de servir a todos que dela necessitem. Miudinha, a danadinha, mas nenhuma mulher com tamanha postura e decência de vida.
Gosto de pessoas que não vivem sem causa, que não se cansam de defender suas ideias, que se preocupam com a cultura, com a história, com as tradições do lugar. Gosto de pessoas assim como Quitéria de Bonsucesso, como Belarmino, como Damião Rodrigues, como João Vítor e os demais que cuidam da Capela do Poço de Cima. Gosto de cada menino que corre em cima de um cavalo de pau para preservar nossa cultura, de cada sertanejo que ecoa no pífano a nossa tradição, de cada moço e moça que faz do xaxado uma permanência histórica. Ah, como gostava de Dona Alzira e seu leilão, seu pífano, sua dança, sua alegria contagiante.
Gosto de pessoas assim. Citei somente algumas de propósito, para causar ciúmes. Gosto de todo mundo. E não importa que gostem de mim ou não. Gosto de gostar, e pronto, sem meias palavras ou falsidades.


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Lá no meu sertão...


Nesta sexta-feira, 29/07, durante a III Mostra Cultural de Poço Redondo, cercado por cangaceiro, tive que pedir proteção a Padre Mário...




Lua e mar (Poesia)


Lua e mar


Desça a lua
sobre o mar
do meu olhar
para singrar
toda distância
do amar

vento de lua
vindo soprar
no imenso mar
do meu olhar
barco desejo
de amar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - os silêncios


*Rangel Alves da Costa


Entardecer. Anoitecer. Horizonte de fogo. Sol abrasado. Cinzas afogueadas do dia. No limiar da luz e das sombras, apenas os olhos testemunhando as transformações. E também o coração pulsando saudades, memórias e relembranças. Tudo parece distante. E está. A ventania canta sua última valsa, enquanto a brisa noturna avança com sua suave canção. A lua desponta singela, sublime, quase inocente. Mas logo se faz imensa, pulsante, inebriante. Olhos e corações já não suportam as saudades. A janela é fechada. Tudo aparenta quietude, mas do silêncio chegam outros silêncios. E estes ferozes, vorazes, gritantes. Não há silêncio na vela acesa: o clamor. Não há silêncio na semiescuridão: o pulsar. Não há silêncio no coração: o grito. Não há silêncio na voz: o brado silencioso. E entre silêncios pede e clamor, roga e implora, diz que venha, diz que precisa amar. Mas apenas os silêncios molhados, sussurrados, angustiantes. Então o gotejar do vinho se derramando no copo quebra todos os silêncios. Até que a voz descortina a palavra: Deus, meu Deus, por que me abandonaste?!


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sábado, 30 de julho de 2016

POÇO REDONDO TEM CULTURA, SIM SENHOR!


*Rangel Alves da Costa

 

Poço Redondo tem cultura, sim senhor! Nesta sexta-feira ficou demonstrado que quando o povo resolve mostrar seus valores permanentes, suas tradições e suas riquezas históricas e culturais, todos os escondidos aparecem em festa, em beleza, em identidade, em valorização das raízes. E de todas as raízes, desde as primeiras gestações familiares aos que atualmente manifestam seu orgulho de pertencimento sertanejo.
E foi um dia de reencontros e de compartilhamentos. Num evento onde se celebrava a cultura poço-redondense e a memória daqueles que enveredaram pelos caminhos do cangaço, o que se viu foi uma celebração das origens e das gestações familiares. E de repente o reencontro alegre e saudoso, através de retratos e objetos, com aqueles que formam a grande árvore da genealogia sertaneja.
E assim foi possível que os de agora reencontrassem os seus já distantes no tempo. Ali, como num álbum antigo, as feições que tanto orgulharam Poço Redondo e permanecem como exemplos de tenacidade e obstinação. Ali, como num retrato emoldurado, toda a realidade de um povo que possibilitou o que agora somos. Por que através de personagens da história poço-redondense, árvores genealógicas foram construídas de modo a permitir que o distante se fizesse tão presente na feição de cada um que ali estava em honrosa celebração.
Um Poço Redondo cheio de história, de memória e de valor, sim senhor! Ali Adília como tronco maior de uma geração familiar inteira, desde os filhos aos bisnetos, tataranetos e aos que virão. E assim com a família de Sila, com as raízes de Zabelê, com os frutos gerados por todos aqueles que um dia deixaram o bando de Lampião para gestarem famílias, estas mesmas que hoje em dia enobrecem não só Poço Redondo como todo o sertão.
Zé de Julião celebrado com a honra merecida. O ex-cangaceiro, político e renomado sertanejo estava ali retratado em si, na sua força e obstinação, mas também nos seus filhos e filhos destes. Já no dia 27, um documentário exibido sobre sua trajetória além do cangaço, já deixava claro o quanto Poço Redondo deve se orgulhar desse seu filho. E assim por que Zé de Julião não foi apenas mais um personagem importante no contexto histórico sertanejo, mas aquele que sonhou em nome de seu povo e pagou com a morte o sonho bonito que teve.
Também Alcino celebrado pela sua trajetória pessoal e sua persistente luta pelo reconhecimento e valorização de nossa história. E alguém me confidenciava que tudo ali parecia com Alcino, que tudo ali se amoldava ao coração sertanejo de Alcino. Uma verdade, pois tudo ali representado já havia sido pensado, pesquisado, escrito e divulgado por Alcino. Mais que uma homenagem, o permanente reconhecimento de sua luta pela valorização do seu povo e sua terra.
Em meio aos estandes, e de repente a Maranduba, a Guia, o Angico, cada recanto tão importante tanto no passado como no presente. Ora, num simples banner, mas toda a família Marques estava ali, toda a família Nascimento, as raízes e os frutos dos Vito, toda a família Braz e tantas outras famílias ali presentes e compartilhando as feições antigas com as de agora, pois seus parentes também ali em celebração. E surgindo Zefa da Guia como exemplo vivo da vastíssima riqueza do nosso sertão.
Tudo muito bonito, muito organizado, demonstração sem igual de que é possível fazer quando se tem comprometimento. Fruto de uma construção coletiva, com a participação de professores da rede municipal de ensino, alunos e colaboradores. A semana inteira em preparativos para a culminância do que ontem foi majestosamente avistado. E uma coisa não fácil de ser feita: um culto ao passado, com toda a pujança do nosso passado. Por isso mesmo o reconhecimento do empenho da prefeitura municipal e da secretária municipal de educação, através da obstinada Rogéria Dantas. Sua equipe também foi de fundamental importância para o brilhantismo do evento. Todos de parabéns.
E quando, no palco, os pífanos dos Vito ecoaram, então a culminância se fez perfeita: o melhor que temos com o melhor que podemos fazer. E fazemos bem feito, pois temos cultura, sim senhor!

 

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Lá no meu sertão...


 
Mãe de meu pai Alcino, minha avó Emeliana. E junto com meu pai nas alturas celestiais...
 
 
 

 

Deitado na rede (Poesia)


 
Deitado na rede
 
 
 
Vejo-me todo cheio de felicidade
deitado numa rede de varanda
numa casinha no meio do mato
ouvindo o cantar passarinheiro
e sentindo cheiro de comida boa
tudo feito no velho fogão de lenha
em panela de barro e história
vida que um dia eu mereço ter
a galinha ciscando pelo quintal
o bicho pastando além da malhada
ali pertinho a flor do mandacaru
o vento bom soprando cheiro de sertão
e eu na minha rede esperando a lua
esperando a festa do entardecer
e o seu sol queimado em vermelho
uma cor assim tão de brasa vida.
 
 
Rangel Alves da Costa
 

Palavra Solta – um banzo, uma saudade...


 
Rangel Alves da Costa*

 

De repente me vejo como aquele escravo definhando de saudade na escuridão deplorável de um navio negreiro. O negro africano sentia uma saudade incontida de sua terra, de seu povo, de seu viver, como se dali em diante a vida houvesse perdido todo o significado, e por isso que ia definhando até morrer. E de vez em quando tenho uma saudade assim, tão profunda e melancolicamente triste que sempre imagino não conseguir aportar na margem seguinte. Contudo, não uma saudade amorosa, familiar ou pessoal, mas algo tão estranho como o próprio sentimento de se querer ter algo que não se conhece, porém tão importante na vida. Talvez o mistério das existências outras que nos chegam no espírito presente, talvez os segredos de uma mente despertada para realidades somente por ela conhecida. Não sei, não sei. Sei que na saudade surge uma janela e uma flor, surge uma porta e uma voz, surge uma árvore e uma sombra, surge uma lua e um silêncio profundo. Mas surge muito mais, principalmente uma estrada que vai se distanciando, afinando, se perdendo ao longe. Para depois surgir à mente que paz é o nome daquela estrada. Sim, talvez de paz seja a minha tão grande saudade, esse banzo que tanto aflige e atormenta.

 

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sexta-feira, 29 de julho de 2016

REZADORES


*Rangel Alves da Costa


“Eu andava de um jeito que quase não me aguentava em pé. Era uma dor que mais parecia uma punhalada nas costas. E isso dia e noite sem parar. Tomei tanto remédio de farmácia que já estava envenenando tudo por dentro. Foi então que uma comadre minha, percebendo tudo, logo me indicou um rezador. Rezador, mas por que um rezador, logo perguntei. Então ela me disse apenas que fosse procurar o velho Tonho do Ramo e depois dissesse a ela se tinha melhorado ou não. Então fui. Até porque não tinha outro jeito mesmo...”.
Assim começa um proseado que ouvi no meu berço de nascimento, em Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, no sertão sergipano. Como observado na passagem acima, o assunto envolve a crença popular na cura através da reza, uma prática secular que ainda hoje é exercida por alguns e acreditada por muitos. E principalmente quando nem os médicos nem os remédios conseguem resolver os mais diversos problemas de saúde, desde dores a aporrinhações estranhas que vão minguando as pessoas. Mas a narrativa acima prossegue:
“Fui também informado que o velho Tonho do Ramo morava lá pelas bandas da beirada do riachinho, a uns dois quilômetros daqui. Chegando, cheio de dor, bati à porta do casebre e logo ele apareceu na soleira. Já passado dos oitenta anos, miudinho, quem avistar não diz se tratar de uma pessoa que tanto entende dos mistérios da cura. Mas a prova do seu poder de curar eu mesmo pude comprovar, pois foi sobre mim que o seu ramo de mato passou e resolveu o problema...”.
Pelas distâncias sertanejas ainda se ouve falar muito em rezadores. O ritual da reza é de ancestralidade, com conhecimento nascido nas raízes dos tempos e aprendido e repassado de gerações a gerações. Parece ser uma coisa simples, porém envolve mistérios não acessíveis a todos. E que também não pode ser ensinada como se fosse uma lição qualquer, pois envolve um aprendizado de fé e de compromisso em utilizar a sabedoria na ajuda do próximo e em situações muito especiais. Mas prosseguindo com o relato:
“Logo senti uma coisa estranha. Senti como se o velho já estivesse me esperando, pois me pediu apenas para sentar num tamborete, do lado de fora da casa, debaixo de um pé de umbuzeiro. Agora me fale o que sente, pediu ele. Contei sobre o meu problema e também sobre o que já tinha tentado para acabar com aquele sofrimento. Ele ouviu tudo em silêncio e depois se afastou um pouco. Mais adiante se abaixou e catou um ramo de mato. Um ramo pequeno, porém verdoso. Ao retornar, me benzou por todos os lados e depois começou a passar o ramo em cruz por cima de mim...”.
Na sua prática, geralmente os rezadores utilizam folhas, raízes, ramos, pequenos achados da natureza. Comumente cultivam as plantas adequadas nos seus quintais ou pelos arredores, mas também lançam mão de quaisquer galhos que estejam ao alcance. E nisto uma certeza: a força da cura não está na planta, mas na reza que repassa ao ramo o poder de curar. Além do fato de que a oração apropriada ao benzimento é também aquela com maior poder de afastar os malefícios que estão no sujeito. Voltando ao relato:
“Não demorou muito e ele disse que já havia terminado. Contudo, o mais espantoso foi quando percebi na sua mão aquele mesmo ramo todo definhado, como se tivesse sido tostado pelo fogo. Estava tão murcho que mais parecia um esqueleto de planta seca. Depois, pronunciou algumas palavras e jogou bem longe aquele resto de ramo. Em seguida a confirmação: Além de espinhela caída você estava carregado demais. Tinha gente invejosa no seu caminho. E gente invejosa quando não mata aleija. Agora você pode ir. Tudo vai acontecer aos poucos. Você está curado, mas o mal ainda vai sair do seu corpo. Você vai perceber quando isso acontecer...”.
Ainda é possível, com a ajuda dos mais velhos, encontrar alguns bons rezadores. Curam de tudo, mas principalmente dores desconhecidas, espinhela caída, fraqueza no corpo, desânimo, fadiga prolongada, sensação de perseguição, contínuos fracassos. Os rezadores sabem que tais situações são provocadas por ações de outras pessoas, através da inveja, do feitiço, do mau-olhado, da coisa feita. E combatem tudo isso através das rezas antigas e dos ramos que vão encontrando os pontos de discórdia no corpo. É por isso que as plantas murcham e esturricam, porque chamam para si todo o mal impregnado na pessoa.
“O velho não queria aceitar, mas deixei uma nota em cima do tamborete e retornei. Já na cidade, depois que virei naquela esquina, foi como sentisse uma repentina rajada de vento frio. Passei a mão na cabeça e senti a testa molhada. E também como se alguma coisa tivesse sido levada no vento. Depois disso nunca mais passei por aquele sofrimento. E agradeço a Deus e ao velho Tonho do Ramo”.
E assim os rezadores por essas distâncias sertanejas. Mas sem fé não há reza que afaste nem o mal nem a maldade afoita para derrubar a pessoa e seu destino.
 
 
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Lá no meu sertão...



Nas beiradas do Velho Chico, depois do entardecer sertanejo, nada melhor e apetitoso que um peixe pescado ali mesmo e assado no fogo de chão.
 
 
 
 

Bela flor (Poesia)


 
Bela flor
 
  
Uma flor
qualquer flor
mas a mais bela
a tão bela flor
a beleza escolhe
o olhar que deseja
ter na flor seu amor
em qualquer flor
uma flor
flor sem cor
murcha e triste
a mais bela flor
beleza que nasce
naquele que ama
o jeito da flor
qualquer flor.
 
 
Rangel Alves da Costa
 

Palavra Solta – diários antigos


Rangel Alves da Costa*

 

O que restarão das palavras dos diários antigos, o tempo haverá de perguntar um dia. As pessoas mudam, se transformam, seguem outros caminhos, e de repente já não são mais sequer as aparências do que se mostraram no passado. Mas seus pensamentos e ideias, sonhos e desejos, realidades e fantasias, permaneceram nas escritas de antigamente. Pessoas existem que procuram apagar todo o passado, incluindo aquelas verdades escritas nos seus diários. Outras sentem mesmo vergonha das inocências e dos romantismos, das confissões e dos anseios, das ilusões e quimeras. E escondem seus diários como se ali testemunhos que não devem ser mais acreditados. E ainda outras se voltam aos seus escritos numa intensa busca de reencontro à felicidade. Sentem que eram felizes naquelas palavras, que eram verdadeiras segundo os escritos, que nada mais lhes restam senão o alimento do que foram um dia. E assim os velhos diários são lidos, negados, buscados ou esquecidos. Nas suas páginas tantos corações e flechas, tantos castelos e interrogações, tantos sorrisos alegres e olhos lacrimejantes. As verdades, as mais puras e densas verdades. E sempre mais verdadeiras do que as escritas do presente. Estas de repente se negam a ficar na memória.
 

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quarta-feira, 27 de julho de 2016

TODAS AS SAUDADES DO MUNDO


*Rangel Alves da Costa


Todas as saudades do mundo possuem as suas razões, ainda que incompreendidas e chacoteadas. Ninguém abre baús sem desejar encontrar o passado. Ninguém folheia velhos álbuns de fotografias para não se sentir comovido. Ninguém lê cartas antigas, desbotadas de tempo, para não se sentir tomado de emoções. Ninguém se põe no umbral da janela, em noites de lua e estrelas, para não chamar à memória um retrato amado ou uma recordação de fazer doer e chorar.
As saudades surgem assim, do nada e do tudo, por nada e por tudo. Do nada porque qualquer coisa pode motivar sua chegada. As cores do entardecer, uma folha seca que esvoaça, uma canção antiga, uma feição parecida, um olhar, qualquer coisa e tudo podem despertar a chama do reviver. E por tudo porque tudo na vida acaba se ajustando ao vazio de alguém. Assim, as ausências, as distâncias, os lutos, os adeuses, as despedidas e as melancolias, vão sendo preenchidas segundo os inesperados saudosos de cada ser humano.
A velha Sinhá tinha razão ao afirmar que a saudade é o sofrimento mais triste e doloroso da vida. Não há remédio que cure no instante da chegada, não há o que fazer senão recordar e sofrer, não há sequer como fingir que não existe e que não vai traz aflição, pois impossível negar o mais profundo da alma e dos sentimentos. Assim porque a saudade independe do querer da pessoa saudosa, apenas surge, apenas desponta como se quisesse afirmar: não adianta me esquecer, em você sempre estarei!
E quem bem conhece de saudade é a velha Sinhá. Já se diz um mar ressecado de lágrimas. Também se distancia dos lenços que encharcavam a cada entardecer. Depois que seu esposo partiu, e já passados mais de dez anos, nunca mais ficou um só dia sem ter a sua presença em memória. A saudade se fez tamanha, a qualquer hora do dia, que ela resolveu escolher a tarde, sentada na cadeira de balanço ao lado da janela, como seu momento de relembrar e reviver. Sentava, começava a mirar os horizontes, depois ia fechando lentamente os olhos. Por trás das pálpebras cerradas todo um percurso de vida ao lado de quem tanto amou. Às vezes adormecia e sonhava, e no sonho o mistério da eterna presença: um afago nos cabelos esbranquiçados, um beijo na face enrugada, um sorriso triste. Era ele que sempre retornava.
Com a solteirona Carmita de repente irrompia uma saudade diferente, mas igualmente profunda a ponto de transtorná-la. Diz-se saudade diferente porque não era sofrimento por alguém ausente ou distante, mas ilusões que iam surgindo na mente e acabavam ganhando vida e a transtornando inteira. Tinha saudade de homem, de qualquer um, como se fosse um amor que a qualquer momento voltaria para preencher os seus dias de solidão e tristeza. Guardava, ano após ano, um baby-doll rendado para quando ele voltasse, um vinho para servir à luz de vela. O pior é que de vez em quando se via fazendo compotas, preparando comidas, assando bolinhos, para quando ele retornasse. Mas quem, e quando? E assim ia vivendo os seus dias de saudades e tormentosos desejosos, mas um justo querer a quem tanta falta sentia.
Existem saudades tão tormentosas que parecem querer prostrar ou sucumbir de vez a pessoa. Não adianta, pois toda vez que passa diante do velho retrato na parede começa a se atormentar. Ali o seu pai, sua mãe ou em ente querido já chorado e enlutado, mas ainda presente como necessidade da alma. Irrompe em choro, lamúrias, mortificações, ainda que muitos anos já passados do último adeus. Não muito diferente ao reencontrar recortes do passado. Cartas, adornos, rascunhos, bilhetes, roupas, pequenos objetos, relicários e imagens, tudo para aproximar daquele que não mais existe para compartilhar. Com o cheiro do café a lembrança, porque bem forte era sua preferência. O rádio ecoa uma canção que se transmuda em verdadeira presença. E quanto dói sofrer assim.
Outras saudades inusitadas, mas sempre saudades. O saudoso vaqueiro aboiando plangência de dor e lamento ao relembrar seus tempos de pega-de-boi, seus galopes entre garranchos e tocos de paus, os laços de longe lançados sobre boi valente e novilha arredia. O entristecido sertanejo ao relembrar passados de chuvaradas e farturas, de terra molhada, sementes jogadas e colheitas da sobrevivência. As saudades ocultas e tão presentes naqueles sentados em cadeiras sobre as calçadas, sempre distanciados da realidade ao redor e trazendo à memória outros caminhos e paisagens. E é como se ainda avistassem os viajantes de outrora, os caminhantes rumos aos desconhecidos, os animais de carga e seus cestos de rapadura, farinha, carne seca, pedaços de pano.
A saudade entristece, aflige, mas também se torna em coisa boa, essencial ao ser humano. Através dela se mantém contato com o de impossível presença e com o que se deseja conviver novamente. Saudade do beijo de ontem ao da bola de gude da infância, tudo é saudade que vai sendo guardada para um dia dizer: sim, não morri, eu estou aqui!


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Lá no meu sertão...


A gente aprende na humildade, com quem sabe pelo ofício, luta e aprendizado na vida. Não com quem tem a ilusão egoísta da sabedoria, Na foto abaixo, ao lado do Mestre Tonho, o maior artesão em madeira do Brasil.




As meninas (Poesia)


As meninas


As meninas brincam
as meninas sonham
as meninas fantasiam
e ninguém entende
o coração das meninas

as meninas são olhadas
as meninas são faladas
as meninas são negadas
mas ninguém entende
o coração das meninas

as meninas entristecem
as meninas choram
as meninas sofrem
por que não entendem
o coração das meninas

quando entenderem
o coração das meninas
a elas dirão somente
“amem a vida e amem o amor
e amem amar como amam a vida”.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - moringa d’água no umbral da janela


*Rangel Alves da Costa


Como diz o poeta, jamais esquecerei que havia uma moringa d’água no umbral da janela, que uma moringa d’água era sempre avistada no umbral da janela. Tudo no meu tempo antigo, coisa pra mais de cinquenta, cem anos ou mais. Sim, já vivi esses anos todos, já caminhei por todas as estradas, já bebi da lua e já mordi do céu. Nas minhas andanças mundão afora, como andarilho, caixeiro-viajante, comboieiro, e sejam lá quantos outros ofícios já tive, passei por muita porta de beira de estrada, por muita janela fechada e aberta, mas nenhuma igual aquela que tinha uma moringa d’água na janela. Ora, e é muito fácil explicar o motivo. No casebre de Sinhá Filó sempre havia uma mesinha com cocada de coco do lado de fora, rente à porta. Então o cabra chegava cansado, faminto, e adoçava a boca naquela gostosura. Mais um e mais outro pedaço, quase o tacho inteiro. E depois olhava de lado e avistava a moringa na janela. Caneca limpinha, chegando a alumiar ao sol, recebia aquela água refrescada pela ventania que chegava. E não havia nada igual. Depois pagar um vintém e descansar debaixo da quixabeira. Eita sonho bom, eita água boa se derramando na boca. E assim a vida e as relembranças daquela moringa no umbral da janela. 


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terça-feira, 26 de julho de 2016

SERTÕES - MITOS E PERMANÊNCIAS


*Rangel Alves da Costa


Antecipo-me afirmando que o termo mito aqui utilizado não se refere à fábula, ao sobrenatural, fantasias ou deuses e semideuses de universo imaginário, mas do mito enquanto realidade de pessoas que simbolizaram feitos históricos de reconhecida importância nos seus contextos de ação. Neste sentido, a feição mítica se volta à força do personagem, que se torna de caracterização heroica ou além do comum da vida.
Assim, não o mito da Cobra-Grande ou do Saci-Pererê, não o mito do Hércules poderoso nem do Zeus mais poderoso ainda, mas do mito real, vivificado na importância, na luta ou na ação, e expressado em homens e seus feitos. Também o mito, enquanto reconhecimento pela abnegação, daquele que verdadeiramente se entregou a causas desacreditadas, a sacrifícios e gestos por muitos renegados. Por que não reconhecer o vaqueiro enquanto ser heroico, igualmente o mateiro e o caçador, o pescador ribeirinho e o desbravador das entranhas matutas?
Ressoa como mítica a expressão de ser o sertanejo acima de tudo um forte. O mito está exatamente na força da luta, na tenacidade no enfrentamento das dificuldades e sofrimentos. A fabulosa vida daquele que sobrevive como verdadeiro milagre ante a pobreza e a falta de quase tudo. Tudo se torna mito à medida que se diferencia da normalidade esperada. Neste sentido, grande parte da vida sertaneja é mítica ao se concretizar a partir de sacrifícios e, ainda assim, tornar-se grandiosa história.
Eis que, em verdade, homens existem que muito se diferenciam de outros a partir dos caminhos diferenciados que percorreram. Quando velhos profetas e missionários nordestinos arrebanharam multidões ao seu redor, suas ações foram mitificadas para a posteridade, pela crendice ou fanatismo popular, ou não. Quando iletrados libertários se insurgiram contra regimes, governos e governantes, injustiças e perseguições, suas lutas inglórias permitiram reconhecimento mítico.
Quer dizer, os feitos extraordinários, difíceis ou encorajados pela justificativa da luta, tendem a ser mitificados. Com o passar dos anos, a oralidade vai transformando ações em feitos quase lendários, e assim vão nascendo verdadeiros heróis ou mitos populares, a exemplo de Padre Cícero Romão Batista, o Santo Nordestino; Frei Damião, o Padroeiro Sertanejo; Antônio Conselheiro, o da Boa Causa; Luiz Gonzaga, o Rei do Baião; Virgulino Lampião, o Cangaceiro Maior.
Até mesmo o coronel nordestino, senhor do mundo e além, alcança importância mítica. Para o bem ou para o mal, inegável a participação do coronelismo na formação nordestina. Daí o surgimento de nomes até hoje recorrentes nos livros sobre o cangaço, o mandonismo, o clientelismo, o voto de cabresto, o poder político e pessoal. Nomes como Chico Heráclio, Chico Romão, Delmiro Gouveia, Veremundo Soares, Zé Abílio, Horácio de Matos, João Maria de Carvalho, João Sá e Elísio Maia.
Tais coronéis não foram somente senhores de casa-grande, latifúndio e poder, mas determinantes no destino de acontecimentos, da política e da história. Suas ações, por que mandavam e desmandavam, se faziam senhores da vida e da morte, comandavam a vida social e política nos seus contextos de ação, acabaram determinando um forçado reconhecimento nos seus tempos e adiante. E principalmente porque a vida moderna ainda não se desvinculou totalmente daquela de feição coronelista.
E não há região brasileira que tenha produzido mais mitos que o Nordeste. Talvez pela crença maior de seu povo, sua fé e força de preservação dos feitos que lhe diz respeito, a verdade é que o povo nordestino - e mais de perto o sertanejo - tende a quase sacralizar alguns personagens. Não precisa que a História assim os reconheça nem que a simbologia os eleve a vultos nacionais, bastando que esteja enraizado na sua memória.
Nos sertões, aqueles mesmos sertões descritos por Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Gilberto Freire, Jorge Amado e tantos outros, onde a História é sempre permeada de luta, de religiosidade, de sacrifício e de esperança, o mito surge mesmo no inimaginável, de repente elevando à categoria mítica personagens controversos e que facilmente transmudam de herói a bandido.
Mesmo assim, ainda que o mito seja reconhecido e devocionado apenas por alguns, é o seu enraizamento como tal, a sua constância afirmativa, que provoca a sua valorização. E, neste passo, também o reconhecimento de que os lendários personagens da história nordestina tiveram existência delimitada, pois dificilmente surgirão figuras de tamanha proeminência que possam se enraizar como mitos perante as camadas mais populares da região.
Haveria de se indagar, então, o porquê do não surgimento de novos mitos. Ora, os tempos são outros, muito mais desenvolvidos, de distâncias mais curtas, quase sem espaço para surgimento de contextos sociais únicos e personagens que se solidifiquem perante meios delimitados. Não há mais espaço para os grandes profetas, os grandes beatos, os grandes justiceiros. Nos sertões sem limites, tudo o que acontece já nasce generalizado. Permanece apenas o que enraizou no sentimento do povo.


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Lá no meu sertão...


No meio do sertão. Carro, carreiro, irmão...






Dentro do corpo (Poesia)


Dentro do corpo


Dentro do corpo
tanto néctar e mel
uma lua e um céu
prazer em sentir
não quero sair
não quero sair

dentro do corpo
sabor de sapoti
cajuína e açaí
doce vindo de ti
não quero sair
não quero sair

dentro do corpo
açúcar e pomar
goiaba e cajá
não vou dividir
o que me deste
meu todo de ti.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - o Brasil das goteiras olímpicas


*Rangel Alves da Costa


Comprovado está que o Brasil, além de ser o berço da ladroice e da corrupção, também impera na desorganização. É o que, de pior a pior, a tudo se sobressai. Para uma ideia da esculhambação, ainda hoje não foram entregues obras previstas e pagas com a dinheirama investida na Copa do Mundo. A transposição do São Francisco, que já teve orçamento quadriplicado, regrediu de tal forma que hoje nem a buracaria resta mais. Quer dizer, é um país ineficiente, desorganizado, bagunçado até dizer chega. E agora a gastança toda para as Olimpíadas, coisa inventada por um governo anterior, mesmo sabendo que o Brasil não tem condições de organizar nem mundial de pelada. Os escombros da Copa estão aí como prova. Então, traz pra cá uma Olimpíada só para envergonhar o que ainda resta de vergonha entre alguns. Os jogos onde a bandidagem impera, onde as águas são putrefatas, onde se tem de colocar um muro alto e todo pintado para que os turistas não avistem as misérias do outro lado. E as delegações, coitadas, em alojamentos sem terminar, com goteiras, ratos e restos de obras por todo lugar. Até mesmo os soldados da Força Nacional foram jogados em cortiço, e por isso mesmo disseram que ou ofereciam condições ou todo mundo caía fora. E que ninguém se espante se várias delegações peguem o caminho de volta antes mesmo do início dos jogos. Ora, vieram como atletas olímpicos e não para serem desrespeitosamente achincalhados. Êta Brasilzinho que não tem jeito mesmo.


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segunda-feira, 25 de julho de 2016

O REDEMOINHO


*Rangel Alves da Costa


Pequenos problemas, mas que acabam se avolumando porque não resolvidos. Coisas simples de serem solucionadas, mas quando postergadas provocam consequências as mais danosas e desgastantes possíveis.
“E lá na distância apenas uma aspecto diferente no ar. Parecendo formação um pouco mais espessa de poeira, como um pequeno torvelinho localizado, nada parece assustar, senão pela sua aparência de crescimento e movimento...”.
As perdas, as distâncias, tudo isso causa muito sofrimento e dor. Mas não que se assentem na alma para o restante do viver. Ninguém pode fugir aos instantes de tristeza, de aflição e melancolia, porém não se deve abraçar o punhal que fere como melhor conforto.
“Ainda está muito distante. Contudo, pelo que se avista, o chão arenoso parece subir em cone pelo ar e depois girar em se mesmo, mais forte, com força maior cada vez mais. De repente, o espesso funil começa a se arrastar e vai avançando em açoite feroz...”.
Os dias amanhecem sombrios, por vezes. No coração, um desalento danado. Nada fez para despertar assim, nenhum motivo aparente para que assim aconteça. Uma vontade de chorar, uma vontade de soluçar embaixo dos travesseiros, uma vontade até de sumir. Mas vale a pena alimentar o dia com esta gota de veneno do alvorecer?
“Ao longe, apenas uma ventania forte, porém localizada. No seu centro, um turbilhão, e uma nuvem de poeira pelos arredores. Parece ter vida própria, pois se alonga, se alastra, vai rapidamente seguindo e levando consigo tudo o que pela frente encontrar...”.
Um adeus inesperado, uma perda tida como irreparável. Nunca se compreende    que a vida é destino e fim, é um chegar e partir, é um sorriso e uma despedida. E faz da lágrima a vida, e faz da dor a existência, e consumindo se vai até não mais ter forças para reagir. Como folha ao vento, vai se deixando levar no que lhe resta viver.
“Sua proximidade já é visível, sentida, inafastável. O que se imaginou apenas uma formação de areia, agora se mostra verdadeira ameaça. É areia, é vento, é sopro, é força, é avidez de destruição. Vai levantando pedra por onde passa, vai derrubando tudo no seu caminho...”.
Sim, uma simples saudade. Saudade boa, pois amorosa, de vontade e desejo de reencontrar. Mas o tempo passa, nada de reencontro, nada de retorno, nada de abraços e palavras. O que aconteceu? Imagina-se que tudo acabou sem um fim. Então a saudade se transforma em tormento, o tormento em desespero, o desespero em loucura...
“Nada fica em pé no seu caminho, a não ser seu próprio cone que, cada vez mais forte e voraz, avança cada vez mais rápido. Destroços são avistados ao fundo, pelo ar são divisadas nuvens empoeiradas. Sem destino certo, arremete ziguezagueando, cobra feroz levantada no ar...”.
Poucos compreendem a esperança como caminho de salvação. Alguns, por já terem esperando tanto, acabam desistindo dos sonhos e planos. Outros, já descrentes nas suas possibilidades, se entregam aos desconsolos e aflições. Em pessoas assim, de alma e espírito fragilizados, qualquer sopro de ventania se afeiçoa a redemoinho.
“Sim, é um redemoinho. É um turbilhão. Uma ventania que se forma fina e localizada, mas que, num crescente, vai alcançando poder de destruição sem igual. A tudo leva, a tudo arrasta, a tudo destrói. E quase não há proteção contra sua chegada, quase não há saída quando se aproxima...”.
Assim também os redemoinhos na vida, fatos, coisas e situações que nascem simples, mas que, quando não domadas na sua raiz, acabam provocando consequências devastadoras. Quando se imagina que se está adiante de apenas uma situação desconfortável e que possa ser resolvida a qualquer instante, surge então o doloroso reconhecimento do total descontrole, eis que sua voracidade já corroendo por dentro.
“Não se sabe ao certo se tormenta, se furação, se tornado, se tufão ou qualquer outro fenômeno devastador da natureza. Sabe-se apenas que nasceu como simples grãos de areia se movendo, que transformados em poeira em pó, como redemoinho foi caminhando. E por onde passou deixou somente restos, destruição e medo...”.
Então olhe pela janela da alma e veja como está o seu deserto ou sua praia de brancura na areia. Sinta se o vento se levanta dentro de si, sinta se o seu espírito não está propenso a tempestades. Tudo faça para que somente a brisa sopre pelos quadrantes, mas sempre temendo acaso aviste uma folha seca passando diante do olhar.


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Lá no meu sertão...


Velhas e portentosas Quixabeiras nas beiradas do São Francisco, na povoação ribeirinha de Bonsucesso, município de Poço Redondo, no sertão sergipano do São Francisco.





Duas luas (Poesia)


Duas luas


Um lume
de lua
que desce
na rua
a iluminar
outra lua
tão sua
no corpo
assim nua

sou noite
desejando
a lua
a do alto
e a sua
iluminada
assim nua
que tua luz
me possua.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - café batido em pilão e coado pela velha mão


*Rangel Alves da Costa


Sou apaixonado por café. Gosto dele forte, encorpado, negro retinto, sem açúcar. A qualquer instante do dia, principalmente no madrugar quando acordo, nada mais confortante que sentir o seu sabor. Sou forçado, contudo, a beber café solúvel, em sachê, desses de qualquer prateleira. O que me alenta, entretanto, é sempre sorvê-lo relembrando de outro café, de outro gosto, de outro sabor. Recordo de um velho café coado por uma velha mão, sertaneja, conterrânea e amiga. O galo ainda cantava quando o pilão já ecoava sua batida. Era ela batendo o café para levar à chaleira em fogão de lenha. Chaleira não, um verdadeiro caldeirão de tão grande, pois os pedidos da vizinhança eram tantos que ela tinha de se esforçar para não ficar sem o seu orgulho do amanhecer. Assim, batia o grão do café no pilão, depois peneirava para despejar o pó já na água fervente. Então logo subia pelo ar uma festança de aroma, inconfundível, oloroso, gostoso. Depois que a água olorosa e negra subia de querer se derramar pelas beiradas, então ela tirava do fogão e se punha a coar, já na boca do bule. O cheiro avisava que já estava pronto para ser servido. À porta, gente batendo e pedindo para entrar, de xícara à mão, com olho pidão. E ali mesmo começava a sorver a graça do amanhecer, tudo no café batido em pilão e coado pela velha mão.


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domingo, 24 de julho de 2016

OS LOBOS


*Rangel Alves da Costa


Caminhando entre velhas árvores e folhas mortas, avistando tufos ralos de mato e restos de tudo por todo lugar, de repente se descobriu um lobo. Sim, do nada lhe surgiu a ideia de estar vivendo agora como um lobo. Ou com motivos para pensar assim, pois seus caminhos e passos já não se diferenciavam daqueles errantes solitários, vagantes dos cumes e estepes, uivando suas dores na escuridão: os lobos.
Os lobos são os seres mais incompreendidos que possam existir. O homem também é lobo dessa incompreensão, desse desconhecimento que o torna repulsivo e repugnante. Um bicho feroz e perigoso, sempre à espreita, que pode atacar a qualquer instante. Homens e lobos na sua estrada, no seu monte, no seu descampado. O mesmo passo de solidão, o mesmo uivo de dor, a mesma angústia existencial. Contudo, só lhes avistam a fera.
A não incompreensão acaba ocultando a realidade. Triste daquele ou daquilo que seja visto e considerado apenas pela aparência, pela suposição do que seja, e não perante sua realidade. O pior é que as suposições são sempre as mais negativas possíveis. Neste sentido, não há lobo bom, mas apenas lobo mau, feroz, voraz, perigoso. Por analogia, o homem vai sendo revestido de lobo toda vez que deixa de ser avistado como um ser comum, que também padece e sofre, que amarga as angústias da vida, para ser transformado em frio e perigoso animal.
Ninguém quer compreender as dores dos lobos e as dores do homem. São as mesmas dores, os mesmos sofrimentos, os mesmos destinos e os mesmos desatinos. Naquele olhar frio, atento à presa, pronto ao ataque, não há lugar para a lágrima. É assim que sempre se imagina. Quer apenas se lançar sobre o outro, devorar sua carne, suas entranhas, beber o seu sangue, vomitar o seu fel. É assim que sempre se imagina. Mas lobos e homens possuem olhos que avistam os mesmos horizontes imaginados aos olhares mais sensíveis: o que é belo não pode ser avistado diferente. Mas as dolorosas paisagens não podem trazer brilhos alentados ao olhar.
Entre lobos e homens analogias de medo e pavor. Como a noite sem lua que carrega o medo e o labirinto que esconde o inesperado, assim também os dois perante as incompreensões. Ninguém se dá ao esforço de imaginar um uivo de lobo com outra significação senão que há, pelos arredores ou nas distâncias, um ser perigoso que ameaça com o seu grito. Ninguém se dá ao esforço de imaginar um pranto de um homem, um soluço dorido, senão como uma demonstração de fraqueza e covardia. É que ninguém se dá ao esforço de compreender homens e lobos.
No uivo, a tristeza, a solidão, a carência, o desejo, o desesperado grito. Mas ninguém compreende assim. Na transgressão da mente, ou inversão do real em cruel fantasia, sempre o olho vermelho, o dente afiado, a boca sangrenta, o ataque a qualquer instante. É que ninguém compreende o lobo. E ninguém, e nisto o próprio homem, quer compreender o homem. E por isso mesmo não pode chorar, não pode sofrer, não pode gritar sua dor. É sempre visto como covardia, fraqueza, fragilidade humana. E se grita, se esbraveja, se tenta ser ouvido além do gemido, então logo se diz da fera que dele se apossou. É que ninguém compreende o homem.
Lobos e homens não são sempre falsos, matreiros, sórdidos. As deturpações criadas não podem ofuscar as realidades. O lobo vive e convive sua vida selvagem, perigosa, ameaçada, caçada. Sabendo-se presa, também se torna predador, por instinto e necessidade de sobrevivência. Não vai além de sua fome, não vai além do que necessita para sobreviver. E se mostra mais forte do que realmente é para ser respeitado no seu mundo de forças brutas. E o que é o homem senão o lobo na rua?
Tudo isso ele imaginava enquanto caminhava entre velhas árvores e folhas mortas, avistando tufos ralos de mato e restos de tudo por todo lugar. Imaginando, pensando, e se reconhecendo também um lobo incompreendido. Também por que já incompreendido enquanto ser humano. Amargurado, cansado, desejava mesmo gritar e fazer ecoar velhas indignações guardadas no peito. Ou talvez subir num monte e uivar feito um lobo. Mas ninguém compreenderia o homem e seu brado, apenas o avistaria como fera enlouquecida.
Então sentou numa pedra para chorar. E chorou. Assim como também fazem lobos e homens.


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Lá no meu sertão...


Fernando Pessoa diz que o Tejo é o mais bonito rio, mas não é mais belo que o rio que passa pela sua aldeia, porque o Tejo não é o rio que passa na sua aldeia. Significa dizer que devemos nos orgulhar daquilo que possuímos. Não tenho jardim, mas de repente aquela florzinha sertaneja por onde caminho...




A boca e o beijo (Poesia)


A boca e o beijo


A boca e o beijo
ou lua e estrelas
ou fogo e chama
ou jardim e flor

a boca que pede
um céu estrelado
uma fogueira acesa
um jardim florido

o beijo que dá
além das estrelas
além das chamas
primavera na boca.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - de afetos e relembranças...


*Rangel Alves da Costa


Também chorei a mesma lágrima do menino Zezé quando cortaram seu pé de laranja lima. Era seu meu melhor amigo, seu bom confidente, seu colo e seu acalanto. Ali ficção, porém tão real nos sentimentos e na sensibilidade. Na realidade, aquela que desejamos preservar como alimento d’alma, também os afetos e as relembranças que nos fazem saudosos, nostálgicos, até silenciosos e entristecidos. É que muitos dos nossos pés de laranja lima já se foram, já foram cortados de nossa presença. Já não tenho mais o cafuné da minha avó, sua história de príncipe e princesa, seu bolo cheiroso e sua bolacha de goma. Já não tenho mais o meu quintal de antigamente, minha ponta de vaca e meu cavalo de pau. Já não tenho mais minha nudez criança, meu banho na chuva, a goiaba buscada no pomar do vizinho. Lembro-me do primeiro verso e da primeira flor deixada à janela, também da doçura do primeiro beijo. Ah, meu retrato. Aquele menino sou eu. Aquele menino sou eu, e não este que agora dolorosamente recolhe os restos entristecidos do pé de laranja lima.


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sábado, 23 de julho de 2016

O ESCRITOR E A SOLIDÃO TÃO SÓ


*Rangel Alves da Costa


Estou cada vez mais sozinho. Moro só, deito só, acordo só. Lavo e passo minhas roupas, prego meus botões, varro o meu chão, rego as minhas plantas, preparo minha comida. Tudo sozinho.
Sempre fui assim, sozinho. Talvez sempre dormir de rede seja a comprovação maior de que ninguém está ao lado. Viro de um lado, sozinho. Viro para o outro lado, novamente sozinho.
Levanto às três da madrugada e sem qualquer cuidado de não acordar alguém que esteja ao lado. Só tenho o trabalho de desligar a televisão e logo correr para debaixo do chuveiro. Depois um café bem forte, um cigarro, e o dia começando assim.
Gosto da solidão das madrugadas mais escuras, chuvosas, molhadas. Saio á porta dos fundos e abro os braços para melhor sentir a chuva caindo. Quando a chuva é forte, então ali mesmo me deixo completamente molhar.
Há, nas madrugadas, uma poesia dolorosa, porém confortante. Quando não está chovendo, o céu enluarado, ainda estrelado, se faz de horizonte à reflexão. E sempre encontro algum instante para mirar o alto e imaginar nas alturas.
Ainda na semiescuridão, sigo até o portão da frente, de xícara à mão, e lanço o olhar sobre a rua nua, vazia, deserta. Portas e janelas fechadas, a luz amarelada do poste se estendendo sobre o asfalto, tudo tão diferente. E sempre faz meditar.
Não há momentos mais apropriados à meditação do que entre as três e as cinco horas da manhã. Nasce com o silêncio fechado, absoluto, até se estender aos primeiros murmúrios do dia. Uma porta se abre, alguém já segue, há uma foz distante, um passo que passa.
Até esse instante, quando a mente ainda se encontra em si mesma, é sempre possível recordar, rememorar, relembrar, planejar, dialogar com o silêncio, até sonhar, até sorrir, até sofrer e chorar. Ora, é poesia escrita pelo instante, e este nem sempre se mostra feliz.
Tudo isso seria possível sem a solidão? Logicamente que não. A simples presença de alguém, ainda que adormecida no quarto, já inibe a mente para voar, pensar, refletir, sonhar, sofrer, querer sorrir, sentir vontade de chorar. É que a solidão precisa de solidão.
Minha solidão não inibe a minha nudez de canto a outro, não inibe o banho debaixo da chuva, não inibe o diálogo silencioso enquanto os horizontes são avistados, não inibe o olhar sofrido nem a face alegre demais para o instante. Mas com outra presença seria diferente.
E quando o dia acorda e a rua desperta, somente a solidão já existente para permitir sua continuidade. Não há palavras, pois não há com quem conversar. Não há afazeres diferentes daqueles costumeiros: letra a letra, juntando ideias, fazer surgir qualquer coisa.
E quanto solitário é o ofício da escrita. Creio ser impossível escrever com vozes ao lado, barulhos, pessoas entrando e saindo, aborrecimentos e preocupações. Daí ser necessário estar em clausura, em silêncio monástico, para fazer com que a pena emerja da alma.
Para o escritor, a solidão afeiçoa-se ao próprio poder de criação. Ora, não pode viver dois mundos ao mesmo tempo. Ele abdica de si, através do silêncio e da solidão, para adentrar naquele outro mundo surgido de sua imaginação. É este o seu mundo que se revela.
Há, assim, uma solidão impregnada e tão própria de cada escritor. Ou ele é solitário ou nada pode criar. O seu pensamento só caminha, voa, vaga e divaga, se tiver a liberdade de encontrar o que desejo. E não pode ser impedido pela presença do mundo ao redor.
Não fosse minha solidão, talvez jamais conseguisse escrever sequer um bilhete. E não fosse o silêncio ao qual me imponho, certamente não brotaria ao menos uma carta. E não fosse a clausura enquanto escrevo, certamente que minhas ideias correriam porta afora.
Agora, novamente e sempre, estou sozinho. Já é noite. Minha rede já espera a minha solidão. Para talvez sonhar vagando sozinho e acordar para o convívio de minha madrugada tão só. E depois caminhar pela solitária rua com o meu olhar.


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Lá no meu sertão...


Ontem, sexta-feira, recebi um telefonema da direção da TV ALESE me informando que nos dias 27 e 28 uma equipe de jornalismo estará em Poço Redondo para produzir reportagem especial sobre a história, as tradições e as manifestações culturais do nosso município. Coloquei-me à disposição, bem como o Memorial Alcino Alves Costa, informando ainda que muito deverá ser conhecido de nossa vasta riqueza histórica e cultural. Estarão presentes durante a exibição do documentário “Zé de Julião, muito além do cangaço”, bem como visitarão a Gruta do Angico. Que os órgãos culturais da Prefeitura Municipal estejam, desde já, informados sobre a presença da equipe nos dois dias mencionados, de modo a proporcionar receptividade à altura daquilo que de melhor possamos oferecer, mostrar e encantar.