SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

FELIZ 2016!


E sempre acontece de um novo amanhecer... Então brindemos à vida!



PASSAGEM DE ANO (UMA HISTÓRIA DE SOLIDÃO)


Rangel Alves da Costa*


Não havia neblina nem luzes brilhando ao longe, porém sentia como se estivesse num clima nova-iorquino de passagem de ano. É que seus olhos necessitavam avistar algo além da escuridão da noite. Aproximou-se da janela para sentir os grãos gelados nas mãos, mas logo recuou ante a voraz ventania. Depois retornaria àquela paisagem sem vida.
O sopro forte do vento fazia ecoar uma dolorosa canção. E em acordes insistentes demais. Talvez um noturno desconcertado por um piano sem notas. As folhagens rebentavam nos galhos e se lançavam pelo ar num murmúrio angustiante. Sem réstia de luz ao longe, sem lua, apenas o negrume e o tilintar metódico do velho relógio de parede.
No ano passado havia sido muito diferente. Alguns familiares e amigos se reuniram para brindar a despedida do velho calendário e abraçar o tempo novo surgido após a meia-noite. Experimentou um Martini, uma taça de champanha e um espumante. Sentiu-se como uma jovem em meio ao um festim da idade.
Assim que os convidados se despediram, novamente a realidade tão antiga como a própria vida. Os copos sem dono, as taças vazias, os pratos com restos, as sobras de tudo, e a terrível sensação de que não mias voltariam para o abraço, as felicitações, os brindes e as relembranças. E da janela entreaberta a canção sem voz que não cessava de chegar no sopro do vento.
Tudo parecido com agora. Só que agora muito mais triste, muito mais solitário, muito mais melancólico e angustiante. Agora não havia garrafa sobre a mesa, comida no forno, salgados e doces recobertos, bebida gelando, nada. E mais tarde nem uma taça vazia ou um copo quebrado. E o telefone não tocava, a campainha permanecia emudecida, apenas a ventania ecoando aquela velha e agonizante canção.
A escuridão do mundo lá fora estava entristecida demais para ser avistada. Novamente afastou-se da janela e foi acender uma vela. Trouxe para cima da mesa um incensório e nele uma vara perfumada de alecrim. Talvez aquela chama aromática, de profunda feição espiritual, trouxesse ao ambiente um pouco de alegria e contentamento. Precisava de forças para olhar na direção do relógio.
Já quase meia-noite e nenhuma esperança que, naquele avanço da hora, qualquer visitante ou parente ali chegaria para um abraço. Porém uma ausência tão esperada quanto o próprio tempo passando. A cada ano e os seus iam sumindo, se distanciando, perdendo os vínculos fraternos que sempre unem os amigos e famílias.
Nas paredes apenas retratos envelhecidos, nas pinturas apenas paisagens tristes e naturezas-mortas, por cima dos móveis alguns porta-retratos insistentes em permanecer por ali. E no restante um silêncio profundo numa noite ainda mais escurecida que em outros dias. E o vento soprando aquela canção torturante.
“Que fiz eu para viver assim, para estar assim? Nada faltou aos que aqui chegaram, nada jamais foi negado aos que bateram à porta, nada fiz para amargar tamanha solidão numa noite em que se deseja ao menos um abraço. É como se a vida fosse nos tornando folhas mortas e vendavais fossem nos levando para longe dos que tanto amamos. Folha de outono sou agora e amanhã talvez apenas os restos que o vento recolherá do chão da existência e levará como pó, pela sina que em pó tudo há de se transformar...”.
Meditava quase chorando. Mas não segurou a lágrima quando olhou em direção ao relógio e os ponteiros já iam avançando para se juntar na hora da meia-noite. Cinco minutos apenas para um novo ano e ela ali tão velha e esquecida. Então foi até a janela e pediu para o vento aumentar sua voz.
E ouviu sua canção como se fosse a mais bela da vida. O toque da meia-noite, da passagem do ano, encontrou-a em meio a uma valsa solitária sob um rio de lágrimas.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...



Canoas do São Francisco, no Povoado Cajueiro, em Poço Redondo/SE. As senhoras das águas repousam para o remanso...




Corações desenhados (Poesia)


Corações desenhados


Um dia numa árvore talhei:
“aqui o amor eterno em teu nome”
e abaixo desenhei um coração

um dia numa nuvem rabisquei:
“meu amor seguirá a tua procura”
e depois desenhei um coração

um dia num poema escrevi:
“por que te amarei eternamente”
e desenhei um coração no caderno

um dia numa palavra quero dizer:
“nada mais dizer senão te amo”
e sentir além de um coração desenhado

e mostrar quantos corações desenhei
e quantas palavras escrevi
para ter um instante de esperança.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: água de flores de tia Veremunda


Rangel Alves da Costa*


Tia Veremunda era solteirona, já no caritó, como se dizia por lá. Sempre desconsolada pelo estado doloroso de solteirice, só uma coisa gostava mais de fazer do que pensar em homem: perfumar-se toda, dos pés à cabeça, e durante o dia inteiro. E assim para depois se debruçar na janela e ficar sonhando com algum olhar masculino em sua direção. Mesmo na solidão das quatro paredes o perfume tomava os espaços da solidão. Imaginava-se sempre preparada para a chegada de algum desejado visitante. Daí que sua penteadeira era uma verdadeira perfumaria, num junção imensa de cremes, batons, perfumes e outros cosméticos para falsear ou iludir embelezamento num ser já sem viço pela idade. Mas tia Veremunda tinha suas predileções perfumáticas. Não era qualquer frasco que entrava no seu quarto e era aberto para sua água escorrer sobre as faces e o corpo inteiro. Tinha de ser o que chamava água de flores, e nesta incluída a colônia e a lavanda. Por isso frascos e mais frascos de Água de Flores Silvestres, Alfazema Suissa e Colônia Aromática D’Amour. E depois os suspiros, as vontades, os desejos. Coitada da tia Veremunda, que mesmo tão cheirosa e perfumada morreu como nasceu, virgem e esperançosa. E também sofredora por falta de um dengo e um cafuné. Por falta de homem.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

ASSENTAMENTOS DO MST: A CASA E A TERRA


Rangel Alves da Costa*


Não faz muito tempo que percorri estradas que entrecortam assentamentos oriundos do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) no município de Poço Redondo, no Alto Sertão Sergipano do São Francisco. Aliás, é neste município que está o maior número de assentados de todo o estado, numa expropriação para apropriação que vem desde o ano de 1986, quando o latifúndio da Barra da Onça passou a simbolizar toda a luta pela reforma agrária na região.
Em tal percurso fui percebendo alguns frutos da aguerrida - e muitas vezes violenta - luta pela terra. Os lotes se espalham por todos os lugares, com casas de alvenaria e até avarandadas, algumas com garagens e outras ladeadas por benfeitorias. Situação ainda mais promissora - ao menos nas construções - se observa no Assentamento Queimada Grande, mais próximo à sede municipal, onde muitas ruas calçadas foram abertas e já foram erguidos templos religiosos, escolas e ginásio esportivo, além de infraestrutura de verdadeira povoação.
Alguns frutos da luta pela terra no sertão sergipano estão ali e em muitos outros rincões adentro, ao menos na parte estrutural dos assentamentos. E assim porque residências, ruas, garagens e carros, não permitem afirmar o alcance dos objetivos primordiais da reforma agrária empreendida: terra, trabalho e produção. Alguns lotes, principalmente nas proximidades do Rio São Francisco, são irrigados, mas não são avistadas plantações suficientes para se afirmar sobre o ideal aproveitamento da terra. Situações pontuais existem onde a colheita é farta, mas noutras nada parece vingar.
A verdade é que as construções e benfeitorias encontradas nos assentamentos escondem uma realidade conhecida, mas pouco disseminada. A terra conquistada é pouco valorizada, pouco trabalhada, quase rejeitada pela maioria dos assentados. Todo o sustento, ganhos e benefícios, chegam por meio das políticas governamentais para o setor. Há oferta de crédito diferenciado, há programas específicos de distribuição de renda, há recebimento de cestas de alimentos, há uma série de programas destinados especificamente à valorização e manutenção do assentado. Numa situação tal, pouco importa que a terra seja trabalhada para produzir o sustento próprio.
De certa forma, ser assentado passou a significar uma profissão, mas não um ofício no labor da terra. E profissão rentosa, com ganhos garantidos a cada semana ou mês, segundo vão chegando os recursos públicos destinados. E quando há atraso nos repasses, logo se vê uma multidão murchando de armas em punho, invadindo cidades e tomando órgãos públicos. Tudo isso com a certeza de que não há lei que os castigue ou ameace. Daí o bon vivant na lassidão e na impunidade.
O descompromisso com a terra é uma marca sempre presente nos assentados. Apenas uma minoria faz do pedaço de terra conseguido um compromisso de vida, sobrevivência e talvez fartura. A outra se compraz da situação de assentado apenas para auferir das dádivas e dos benefícios. Ademais, muitos são os que fazem dos lotes meros objetos de venda e troca. Quer dizer, invadem, se assentam, conquistam a terra e depois vendem o lote por qualquer preço ou faz troca por carros velhos ou motocicletas. E corre para novas invasões.
O contexto observado - em recorte diminuto, se diga - não condiz com a luta da terra nem com sua conquista. Como afirmado, a aparência dos assentamentos contraria o que se tem depois da porta dos fundos ou pelos arredores. Enquanto assentados ganham pela indolência e lassidão, a terra continua tão improdutiva quanto antes de ser invadida e tomada no grito e na força. Logicamente que há produtividade, que lotes produzem o máximo possível, mas apenas uma minoria em meio a um mundo de terras que continuam nuas e desprovidas de qualquer grão.
Tal situação parece ser de menor importância tanto para o MST como para o governo e assentados. O que se apregoa é a conquista da terra através da reforma agrária, e basta. É o fim do latifúndio, ainda que produtivo, para distribuir a terra entre muitos que parece suficiente. Contudo, outra é a motivação para que governos, políticos e lideranças tanto se empenhem na entrega de lotes a cada um que carregue a bandeira vermelha: o voto.
Não é por mera casualidade que os excluídos da terra são ideologicamente transformados antes de começarem a agir, invadindo, usurpando, violando. Após a conquista da terra, passam a dever obediência às lideranças do movimento. E estas, sempre fazendo dos assentados uma prova de força eleitoral, ou vendem apoios políticos ou eles mesmos se lançam como candidatos. Garantindo-se no encabrestamento da maioria, avalizam eleições e redesenham as forças políticas locais.
Assim os assentamentos, em realidades distintas desde as residências aos campos de trabalho. Para muitos, simbolizam a reforma agrária que deu certo. Para outros, apenas um aglomerado de forasteiros tirando a paz e o sossego da população nativa. Mas nem menos nem mais, tão somente uma nova realidade pelos campos sertanejos. E num mundo onde alguns verdadeiramente trabalham e tiram da terra o seu fruto, e outros apenas constroem varandas para armar redes e espreguiçadeiras.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...


E à minha frente um deserto. Tudo triste, tudo incerto. E ao meu redor um rio, no sertão um desafio. No azul-cristalino o milagre que imagino: o nome de Deus também é Velho Chico!



Ao entardecer (Poesia)


Ao entardecer


Voando leve
na vida breve
o amor traz
a paz

e entre a brisa
que suaviza
o amor pede
e cede

quer um ninho
ser passarinho
a noite chama
e ama.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: ossada de bicho na desolação da caatinga


Rangel Alves da Costa*


Em época de seca braba, como a que agora ocorre pelos sertões nordestinos, a caatinga acaba se transformando em verdadeiro cemitério para bois, vacas, bezerros, jumentos, cavalos, jegues e outras espécies típicas no criatório interiorano. A paisagem em si já é de causar sofrimento e dor. A vegetação aberta, rala, disforme, se resume a catingueiras desfolhadas, magras, ossudas, ladeadas por cactáceas sem viço e sem carne, ressecando a cada dia que passa sem pingo d’água cair. Rente ao chão apenas folhagens mortas, troncos caídos, tufos de mato sem vida. E lá de cima a chama do sol descendo voraz para devorar tudo ao redor. E devora mesmo, acaba com tudo, pois nem mesmo o mandacaru - a planta símbolo do sertão - é avistado imponente, mas numa tristeza danada e definhando até o pontudo espinho. Mas quem mais sofre são os bichos, os animais sertanejos. Sem água nos tanques, barragens e fontes, acabam esvaindo em berros e mugidos agonizantes. Sem comida no mato, vez que tudo ressecado pelo sol, acabam morrendo aos poucos. E depois de não mais poder se manter em pé, procuram um pé de pau para esperar um milagre. Deitados para morrer, de repente os urubus vão surgindo para arrancar olhos, a pele, os restos. E por isso mesmo tantas carcaças esbranquiçadas pelos campos devastados de um sertão faminto e sedento. E agonizante debaixo do sol.


Poeta e cronista
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terça-feira, 29 de dezembro de 2015

AMANHÃ


Rangel Alves da Costa*


O ano se finda, muito do que restou ficou pelos cantos, muito do que se fez por certo terá serventia noutro tempo chamado amanhã. É nesta simbologia de futuro, de caminhada e construções, que o amanhã se impõe como esperança.
Ninguém alimenta a esperança com restos passados, poeiras e traças. O que não pôde ser descartado há de ser consumido pelo tempo e pelo esquecimento. Os acúmulos sem serventia precisam ceder espaço ao que se deseja num tempo novo chamado amanhã.
Depois de tudo, depois de passar o ano em meio a frestas de sol, sombras e escuridão, o ano agora é como uma casa que vai sendo abandonada. Paredes nuas, baús empilhados, janelas fechadas, na semiescuridão, logo a porta estará aberta para o novo destino.
Não há mais como continuar no mesmo lugar. Não é um desejo da pessoa, mas imposição do tempo. Um ano se vai e outro começa a nascer. Ao romper da aurora a desconhecida estrada já surge adiante. E é preciso seguir para fazer valer a existência. Não o apenas existir, mas comprovar o porquê de estar aqui.
Hoje e ontem resumem tudo o ano que vai chegando ao fim. Não adianta mais recordar a bacia de lágrimas nem os lenços de tristezas. Não adianta mais relembrar as tristezas e as insônias, as dores e os sofrimentos. Ora, se foi possível passar ante os labirintos tenebrosos, então que se busque a melhor estrada.
E esta estrada chama-se amanhã. Meia-noite e um segundo, primeiro dia do ano, nos dias e meses seguintes, tudo será amanhã. Que não se procure imaginar como será dezembro do ano vindouro, quais as conquistas desejadas ou as vitórias alcançadas, mas apenas pensar em vencer cada dia, e desde o primeiro dia do ano.
O amanhã será bem melhor, assim o desejo de todos. O ano que se finda não merece, em muitos aspectos, sequer ser recordado. Foi o ano de os tapetes serem revirados e muito de seu lixo mostrar a sujeira de uma nação. Foi o ano da efervescência dos lamaçais, das ladroices, dos atos de improbidade. Foi o ano do país aviltado pela corrupção.
E também foi o ano da desesperança, do medo, das perseguições. O ano do empobrecimento, das dificuldades, da inflação acentuada, da carestia em tudo. Um ano de menos comida na mesa, menos sonhos realizados, de sangria no bolso e na alma. Um ano para ser rapidamente esquecido.
O amanhã surge como uma dúvida. Não há nenhuma certeza do que acontecerá. Contudo, sendo um tempo novo, há sempre a possibilidade de que os caminhos sejam menos tortuosos e alguma felicidade permita sorrisos de contentamento.
Amanhã é toda uma vida nova num ser que não existe somente para amargar sofrimentos. O ser se alimenta de esforços, de buscas, de lutas, conquistas e realizações, mas será preciso que o homem possa caminhar sem que seu passo seja negado pelas tiranias alheias.
Amanhã é o que o indivíduo deseja para si. Ele deseja viver, precisa abrir sua janela, necessita do sol, do sonho e da esperança. O ser humano possui um destino que não pode ser norteado por qualquer força humana, senão o dono do próprio passo. Somente a ele cabe carregar sua cruz e plantar sua árvore. Colher o seu fruto e viver.
Desde muito tempo que o amanhã do homem não pertence ao homem. Alguns se arvoraram do direito de tirar sua alegria, sua força de luta, sua promessa de vida, sua expectativa por dias melhores. Roubaram seu amanhã e decretaram que a vida seria de sofrimentos.
O homem foi esmagado pela incúria de outros, dos poderes, dos governantes, dos mandatários. Mas tudo foi ontem. Mesmo que ainda hoje persista, não haverá mais lugar para imposições e submissões no tempo novo, no amanhã que já nasce. Para si mesmo, o homem decreta a felicidade completa, incontida.
Porque amanhã é dia de sol, é dia de sorriso, é dia de encontro, é dia de abraço. Porque amanhã é dia de viver, de procurar e encontrar. Porque amanhã é dia de flores no jardim, de frutos no quintal e pássaros à janela. E mesmo que a tristeza chegue, logo será superada pelo encorajamento de todo amanhã.
Não será preciso dizer feliz ano novo. Não será preciso adormecer para acordar no ano novo. Tudo já se faz agora. Após a tempestade e os vendavais de agonia e aflição, o homem não deseja senão abrir a porta e avistar a vida debaixo do sol.
E lá vai ele com a chave à mão em busca do seu mundo. Não sabe, porém, que a sua força antecipou o tempo e o hoje já se faz amanhã. E, sem olhar pra trás, vai seguindo adiante, vai sempre em frente. Que força e luz neste homem após um ano de escuridão.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...



Minha sobrinha Alice, filha de Artime, desenhou este sol e enviou-me como presente de Natal. Será o sol do meu sertão? Vou pedir a Alice que desenhe também uma nuvem de chuva.


O amor (Poesia)


O amor


O amor
pássaro e voo

o amor
brisa e poema

o amor
semente e flor

o amor
tudo e mais

canção e paz
abraço e beijo

noite e lua
voz e afago

tudo amor
amor amor

amor amor
amor...

Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: entardecer no sertão


Rangel Alves da Costa*


A paisagem sertaneja apresenta duas primorosas obras de arte, sem menosprezar os tantos cenários cheios de maravilhas e encantamentos. Mas nada igual ao amanhecer e ao entardecer. O amanhecer, contudo, é menos apreciado que o entardecer, e por um simples motivo. Somente os sertanejos de mais idade acordam antes de o galo cantar e convivem com as primeiras cores do dia. Quando os demais acordam a manhã já se levanto há muito e apenas os raios do sol estão entrando pelas janelas e iluminando o mundo lá fora. Mas com o entardecer é diferente, vez que apreciado por todos, pois pouco antes do trabalho ou dos simples fazeres do dia e já entrando na boca da noite. E não há como não se maravilhar ante tal instante divino e surpreendente. O sertão inteiro se toma de cores amareladas, afogueadas, fortes, tingidas, e pelos ares vai se desenhando a mais bela pintura. Os montes, os cumes, as montanhas, as pedreiras, os horizontes, tudo fica delineada pelas cores do entardecer. Lá em cima, o encontro e o passo das nuvens vão abrindo e fechando a fornalha e proporcionando uma festa ao olhar. Primeiro, o sol se distanciando, amiudando, indo se esconder ao longe, mas antes da despedida os horizontes começam a abrasar, a chamejar, a derramar pinceladas de fogo sobre o que resta da tarde. Então o fogo vai apagando, apagando, até surgir a luz da lua. Uma chama que vai e outra que chega para emoldurar um mundo sem igual. Mundo sertanejo de sol e de lua.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

O MENINO VELHO E O VELHO MENINO


Rangel Alves da Costa*


Neste período de final de ano, onde as sensibilidades ainda afloram em singelos corações, há de se fugir da correria das compras e confraternizações, para o necessário reencontro o pensamento nostálgico. E é bom rememorar aquilo que a caminhada não conseguiu apagar da memória. Daí que me recordo agora de uma velha história que um dia ouvi numa tarde de proseado debaixo de uma tamarineira.
É a história de menino velho ou de um velho menino. E começava dizendo que com apenas cinco anos ele já manejava a peleja de adolescente. Com oito anos já debulhava esforço de rapaz feito. Com dez anos já era adulto de dobra, no esforço, na lida, na vida. Depois disso, o amadurecimento e o envelhecimento, tudo num passo só. E ainda não tinha nem quinze anos.
Na verdade, pouco conheceu e vivenciou sua criancice. Sempre descalço, sujo, buchudinho, cheio de verminoses, só teve tempo de arranhar a parede para lamber o barro. E comia lama quando caía pingo d’água. Nunca brincou de cavalo de pau, correndo atrás de bola de meia, ou galopando feito bicho solto pelos descampados.
Não tinha tempo pra nada disso. Nem pra brincar debaixo da lua nem sonhar abaixo do sombreado do umbuzeiro. Pouco entendia de mundo, de vida, de sua meninice, mas tinha de se acostumar em carregar palma espinhenta para o cesto do gado, tirar a palha cortante da espiga de milho seco, catar cavaco para o fogão de lenha, ficar chamuscado das cinzas da coivara queimando na roça.
Certa feita a professorinha – a única das redondezas – passou por ali e perguntou ao pai quando a criança ia conhecer o mundo bonito do estudo, das letras. Pelo jeito nunca, respondeu um homem de rude feição. Nunca tive estudo e parece que ele também vai virar estrada sem assinar nem assuntar letra juntada. Tentou justificar.
E prosseguiu dizendo que o tempo estava tão ruim, a seca tão braba, sem nada sobre a terra que desse sustento à família, que podia virar cumbuco e não achava vintém pra comprar ao menos um calçado e uma roupinha pro filho. E menino esfarrapado não deve saber nem o que é escola. Por isso ele não ia estudar não. Fica feio menino com lápis na mão e de pé no chão.
Disse mais. Não ia também porque precisava dele ajudando nos afazeres do dia inteiro. Ele ajuda muito, é esforçadinho que só, asseverou. A professorinha, completamente indignada com o que ouvia, disse que aquilo tudo era um absurdo e nada justificava impedir o menino estudar para ter uma vida digna e muito melhor do que aquela escravidão infantil ali vivida.
Saiu de lá debaixo dos olhos feios do homem. Assustada mesmo. Mas não sem antes ouvir que não passasse mais nem diante da cancela. Os cachorros latiram e ela apressou-se. E já seguindo, caminhando pela estrada, olhou para trás para avistar o garotinho recurvado com um feixe de lenha às costas. Chorou, se envolveu em lágrimas, mas seguiu adiante.
Já estava em torno dos oito anos, mas com a feição de vinte ou mais. Menino de pele clara, mas agora já tomada de uma cor de barro queimado, de pote assado em olaria. Cabelo bom, mas crispado, quebradiço, feio. Cicatrizes pelo rosto e pelo corpo, as palmas das mãos duras e espinhentas, solado dos pés que nem sentia mais ponta de espinho. E o olhar...
Antes dos doze anos e já parecendo alquebrado. Em tudo a luta, o fazer, o revirar, o se ferir e machucar. E em nada o menino, o molecote, o sertanejinho cheio de vida e de esperança. Pelo contrário, muito pelo contrário. Talvez nem se reconhecesse mais, não soubesse sua idade, o que ela significava, para que servia o viver. Ora, não fazia outra coisa que não ser destruído pelo tempo, e sem ter tempo pra nada que dissesse respeito a si mesmo.
 Lua após lua, envelhecendo demais ainda adolescente. Continuava vivendo feito bicho do mato, sem tempo pra outra coisa a não ser lidar com a terra, tanger animal, montar em jegue magro, afiar facão e foice, colocar cabo em enxada, arrancar mato com a mão, fazer cerca de forquilha. Duas vezes picado por cobra, atacado por enxame de abelhas, lombo furado por espinho de quipá.
Chegando a idade adulta e o rapaz já recurvado, todo definhado, de corpo debilitado e espírito tomado de desesperanças. Não precisava mais envelhecer para ser completamente velho, no corpo e para o trabalho. Já não suportava mais fazer muito esforço, planejar o que lhe restava da vida nem pensar no amanhã. E o pior, um velho solitário. E com o pior tipo de solidão: esquecido pelo mundo.
Um dia alguém passou pela estrada e viu um velho chorando junto ao tronco largo do umbuzeiro. Foi chegando mais perto para ver o que estava acontecendo, mas antes de chegar ouviu o velho perguntar se trazia um cavalo de pau e uma bola de gude. Era o envelhecido querendo brincar de menino.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...



MEMORIAL ALCINO ALVES COSTA - O SERTÃO TEM HISTÓRIA!

Rua Gustavo Melo, s/n, Poço Redondo/SE







Do tamanho do mundo (Poesia)


Do tamanho do mundo


Do tamanho do mundo
o tamanho do coração
muito além do horizonte
alcança a minha visão
por onde caminho agora
é toda a vida e todo chão
porque sou além de mim
sou o ser na imensidão
sou aquele que tanto ama
e por isso sem dimensão
um amor que se estende
muito além da imaginação
mas que pode ser sentido
no suave toque de mão.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: panelada de galinha de capoeira


Rangel Alves da Costa*


A verdadeira galinha de capoeira é criada solta, ciscando pela malhada e fundo de quintal. Alimenta-se do milho jogado, de restos de comida, do que o seu bico encontrar. É arisca, corredora, difícil de ser alcançada. Às cinco da tarde já está em busca do poleiro e também antes das cinco da manhã já estará se alvoroçando em correria. Seus ovos são sem igual para acompanhar o cuscuz, a macaxeira, a batata ou qualquer outra coisa da mesa matuta. Contudo, nada igual à própria galinha dentro de uma panela, bem temperada, deixando que óleo saia de sua própria gordura. Dá um trabalho danado correr atrás e pegar a penosa, igual trabalho dá puxar no pescoço e tirar as penas na água fervente. Não menos trabalhoso é cortar sua carne rija, endurecida pelo alimento natural que consumiu. Mas depois é só colocar na panela com o tomate, o pimentão, a cebola, o alho, o tempero, o colorau e o sal, e deixar que o fogo (fogão a lenha sempre dá um gosto mais primoroso) cuide de fazer o resto. Por ser uma carne macia após a fervura, não demora muito para o caldo grosso borbulhar. O tal caldo vai formando um óleo de bom proveito quando misturado fervente à farinha para um pirão. Depois de preparada, colocada sobre a mesa e saboreada como relíquia, não sem antes molhar a goela com uma aguardente, não há quem não deseje repetir a iguaria. E depois se estender numa rede de varanda e sonhar com as delícias da vida. Estas são poucas, mas ainda existem. Galinha de capoeira bem preparada é uma destas.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

TERRA DA BOA ESPERANÇA


Rangel Alves da Costa*


O sertão é, verdadeiramente, a terra da boa esperança. Por cima de sua terra, seja rachada de sol ou jogada semente, sempre há uma promessa de dias melhores. Dentro de seus quadrantes, seja debaixo do sol ou da lua imensa, sempre haverá um compromisso com a grandeza da vida. Na humildade uma riqueza sem fim, no jeito simples de ser a verdade humana mais pujante.
Natureza e homem vivem um só destino, um mesmo desafio e uma mesma promessa. O homem serve ao meio e dele tira todo o seu sustento, daí que o sertanejo cheira a terra, tem a fragilidade do velame e a força do mandacaru. O bicho é amigo do homem e por este é preservado com todos os meios e sacrifícios. Sofre a dor do animal padecente, chora a tristeza da pele ossuda, tudo faz para que não falte palma, capim, um pouco de água.
Pelo trabalho incansável, o sertanejo é um povo destinado à vitória, ao crescimento, à conquista. Contudo, a conquista maior está na sobrevivência, na sombra entre quatro paredes, no pote molhado, na moringa à janela, no fogão fumaçando o cheiro bom de qualquer comida. E quando tudo falta, quando não há nem água nem pão, quando da porta adiante está tudo cinzento e da porta pra dentro tudo é desvalia, então ele se renova na esperança. Aprendeu que o tempo castiga mas não lhe retira o encorajamento e a luta.
Não há nenhum povo que seja mais esperançoso, mais confiante, que o sertanejo. Não há tempo ruim que lhe tire a fé que logo, amanhã ou mais adiante, tudo será resolvido. Não há seca, sofrimento, padecimento ou dor parecida, que faça o sertanejo desacreditar que logo a ajuda divina chegará e uma chuvarada boa acabará com a aflição. Cada lar é um pequeno templo, cada casebre uma moradia de santos e anjos, cada oratório um céu encantado e com um Deus maravilhoso que sempre ouve a voz do necessitado.
Tanta esperança é fruto da profunda religiosidade do povo sertanejo. Para muita gente – talvez ainda a maioria das pessoas -, tudo é questão de destino, de desejo divino. Nada acontece sem que seja com a permissão de Deus. Daí que a seca é um castigo que precisa ser suportado para aumentar a fé, o respeito, fugir dos pecados. O sofrimento tem de suportado porque assim o divino quis. Nada, absolutamente nada, deixa de ter uma explicação divina. Daí ser o homem apenas um instrumento de sua vontade.
Suporta o sofrimento como destino do qual não se pode fugir, porém vive apegado na certeza que Deus não quer o sofrimento de ninguém. Por ser um Deus de bondade, então jamais descuidará dos filhos que tanto padecem e que tanto sofrimento têm de suportar com a falta de água, de comida, de terra molhada e planta no chão. Então a esperança nasce daí, dessa profunda certeza que mesmo abandonados pelos homens não estão desamparados pelas forças do céu.
É a fé, pois, que alimenta a esperança, e esta acaba preservando aquela. Ninguém desiste da sorte porque a crença na mudança não permite. Ninguém se entrega ajoelhado ao desalento porque confiante demais na força da prece, da oração. Ninguém dá nada por perdido ou desiste de lutar porque já entregou seu destino ao querer divino. E a força maior não permitirá que o sofrimento se demore onde o contentamento é tão esperado. Assim a fé do sertanejo, também a sua esperança.
E tantas outras coisas servem para comprovar esse dom de perseverança, de autoestima e positividade mesmo diante das agruras do dia a dia. Que alguém bata na porta de uma casinhola matuta e observe bem como será recebido. Mesmo que a casa esteja com o barro da parede desabando, mesmo que dentro não tenha sequer um banco pra sentar, mesmo que todo o contexto seja de absoluta pobreza, ainda assim encontrará o sorriso largo. Que não seja na expressão sorridente ao desconhecido, mas o coração festivo e demasiadamente acolhedor.
Assim, não se pode negar que há no sertão e no sertanejo os elementos essenciais para que sempre se reconheça uma terra da boa esperança. Toda aquela vida se assemelha ao dia após o pingo d’água cair. Durante muito tempo suportando as agruras da sequidão, o sofrimento da falta de tudo e as dores do abandono, de repente a porta se abre para os sinais do renascimento. Basta pouca chuva e tudo já começa a verdejar, a dar uma nova feição às paisagens. Basta avistar a mudança na terra e o homem já se esquece da sede de ontem.
Quando sobe aquele bafo quente, molhado, tipicamente sertanejo, é como se sentisse o cheiro de pão, de cuscuz no fogo, de café torrado. Dali da terra, através do plantio ou do trabalho, todo o alimento da casa e toda a vida da família. E depois da chuva a certeza que Deus ouviu suas preces e que um tempo novo chama à luta. Então limpa os ossos da seca, prepara a terra, lança a semente e olha para os céus. Ainda não será preciso rogar a Deus, apenas ter esperança.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...



Recebendo o Troféu Purificação de Cultura, em homenagem póstuma feita a Alcino Alves Costa, ontem, dia 22, no teatro do Colégio Purificação, em Aracaju.



Seresta apaixonada (Poesia)


Seresta apaixonada


Ao meu amor a noite
ao meu amor a lua
ao meu amor a estrela
e eu seresteiro noturno
cantando os amores tantos
que mesmo ainda amados
ecoam em suaves cantos

e do horizonte a brisa vem
com perfume de alfazema
e poesia soprando em varal
e o meu lindo amor à janela
ouvindo seu nome em canção
e seu lábio procurando o meu
e o meu beijo no seu coração.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: gostos e diferenças


Rangel Alves da Costa*


As diferenças existem para diversificar. Não haveria sentido se todos gostassem da mesma coisa, tivessem as mesmas opiniões, agissem no mesmo sentido. Tem gente que gosta de uva, já outros gostam de maçã, alguns de jaca e outros de melancia. Tem gente que gosta de chuva e tem gente que gosta de sol, gente que gosta de escuridão e gente que gosta do amanhecer. Todos com sua razão. O gosto é pessoal, é íntimo, não cabe ao outro querer impor mudanças. Gosto de sarapatel, mas tem gente que não suporta nem a visão do prato. Não gosto de bife, prefiro lombo, mas outros já pensam exatamente o contrário. Eu gosto de pessoas, de raças, de credos, de diversidades, mas tem gente que não, pois prefere o preconceito e a discriminação. Tem homem que gosta de mulher e mulher somente de homem. Talvez a normalidade da vida. Mas não caberá censura aos que gostam de pessoas do mesmo sexo. Pensar diferente é estar transgredindo a individualidade de cada um. O doido gosta da lua, da pedra, da solidão. Tem gente que faz a mesma coisa, mas não gosta do que o doido faz. Mas não adianta querer enxergar somente o que os próprios olhos alcançam. O mundo é vasto demais e a vida grandiosa demais para ser minimizada aos egoísmos e vaidades. Segundo o Eclesiastes, há um tempo para tudo: o agora já será diferente mais adiante.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

VAQUEIROS E CURRAIS


Rangel Alves da Costa*


No Nordeste brasileiro, pode-se afirmar que os currais antecederam aos vaqueiros. Quer dizer, antes mesmo que se falasse em sertanejo montando em cavalo guiando boi e boiada pelas estradas empoeiradas, os currais já estavam instalados nas beiradas dos rios, principalmente o Velho Chico. E assim por que o desbravamento e povoação da região nordestina até então inóspita, se deu através do caminho das águas, pelos leitos dos rios que levaram o litorâneo às margens e depois às entranhas da mata.
O litorâneo trazia consigo toda uma vida juntada e então ameaçada pelas rebeliões e incertezas coloniais. E nessa junção de vida, os sonhos de se estabelecer noutras paragens e de nas novas terras espalhar seus rebanhos, ainda que pequenos. Por isso que embarcavam com seus criatórios e iam remansando nas águas em busca das margens mais propícias ao desembarque. Como as ribeiras geralmente eram ladeadas por serras, enchiam-se de contentamento ao avistar paisagens mais planas e que servissem para levantar currais e alimentar os animais pelos arredores.
Ao adentrar na mata em busca de terras para fixar moradia, o colonizador sertanejo abandonou seus antigos currais e deixou para trás as pedras fundamentais das povoações que foram surgindo nas beiradas dos rios. Depois de vencer a mata e suas hostilidades naturais e de se estabelecer em descampados ou em regiões mais altas, novos currais foram construídos e espalhados por toda a vastidão sertaneja. Nas proximidades ou ao lado das rústicas moradias, erguidos como simples cercados de proteção, abrigavam alguns cavalos e bois após a chiqueiragem do entardecer. Em meio a cantos dolentes de aboiador, os bichos iam sendo reunidos e levados à porteira. E depois os berros e mugidos até a descida da lua grande.
Na nova paisagem, com os animais criados soltos e se espalhando pelas distâncias, a sua vigilância e recolhimento só eram possíveis com o dono montado no lombo de cavalo. Cavalos brabos ou já amansados pelo arreio e chicote, venciam os espinhos e as traições da mataria no encalço da novilha mais desgarrada. Então aqueles senhores, tantas vezes protegidos por gibão, perneira e chapéu de couro, apertavam os estribos no alazão e se lançavam afoitos no rastro das crias apartadas do rebanho. Retornavam lanhados de pontas de pau, mas sempre tendo adiante o bicho mais arredio.
Assim que os sertões foram sendo cada vez mais povoados e as fazendas de gado se espalhando pelas suas distâncias, os proprietários dos grandes rebanhos foram buscar na experiência do homem da terra o cuidado exigido por suas crias. Então aqueles sertanejos de curral com poucas reses ou de pedaço de chão de pouco cultivo, passaram a exercer os ofícios da vaqueirama, do cuidando com a gadama alheia, do alimentar o bicho com palma e capim, de tirar leite, de fazer apartação, de manter a boiada sem perigo e correr atrás daquele bicho mais afoito que se embrenhava pelas matas.
Mas vaqueiros de afazeres diferenciados segundo o patrão, a fazenda e o rebanho. Vaqueiros de moradia fixa na fazenda do grande criador, ali residente com a família e tomando conta de tudo ao redor, desde o bicho à cerca de tronco ou arame farpado. Eram verdadeiros administradores das propriedades, cuidando não só dos rebanhos como das pastagens e dos serviços e melhorias. Confiados pelos patrões, destes recebiam permissões para de tudo cuidar como se fosse seu. Daí o progresso de tantas propriedades, do crescimento saudável dos rebanhos, da terra frutificando a cada passo.
Outros vaqueiros trabalhavam por empreitada, por serviço a ser realizado, mas também de forma assalariada, sem moradia nos arredores do curral. Aqueles transportavam boiadas, levavam rebanhos de canto a outro, faziam o recolhimento do gado solto nos latifúndios, corriam pelas caatingas e matarias em busca de bicho brabo. Geralmente não trabalhava sozinho, mas em dupla ou mesmo em grupo, dependendo do tamanho dos rebanhos e das brabezas dos animais. Já estes, de comparecimento diário, possuíam como ofício a apartação do gado, a chiqueiragem até o curral, o ordenhamento das vacas leiteiras, a vacinação do gado, além da esticagem até as lonjuras quando alguma rês não aparecia na contagem.
Pelos sertões se acostumou dizer que vaqueiro bom logo se reconhece pela cara lanhada ou pelo corpo marcado da luta. Com efeito, em muitas ocasiões, geralmente nas famosas pega-de-bois, o vaqueiro retorna trazendo não só o boi valente e arredio como o rosto marcado pelos espinhos, galhagens e cipós traiçoeiros. Mesmo que esteja todo paramentado ao subir no cavalo, com seu inseparável gibão, perneira, guarda-peito, chapéu de couro e roló, o vaqueiro nunca consegue vencer as armadilhas pontiagudas das caatingas.
Segundo a indumentária usada, também a diferença do vaqueiro do mato daquele de moradia na propriedade. Mas nos dois a intencionalidade maior de levar a rês ao curral. Neste, com aquele cheiro típico de estrume e com o som do berro e do chocalho, o destino de retorno da vida vaqueira. Uma vida tanto perigosa como não devidamente reconhecida. Mas foi através destes homens encourados que os sertões seguiram como boiada na estrada. E na voz o aboio dolente: “Boi na lua se escondeu, mas São Jorge no cavalo com o bicho logo desceu. Ê gado ê, ô...”.


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Lá no meu sertão...



No sertão sergipano de Poço Redondo, a seca devorando o bicho...



Quatro luas (Poesia)


Quatro luas


Vai o amor
pelos espaços
no céu da noite
feito saudade
de quatro luas

na lua nova
abrindo a porta
para esperar
a sua volta

na lua crescente
olhar aflito
chama o nome
silêncio e grito

na lua cheia
olhar molhado
saudade tanta
atormentado

na lua minguante
quase escuridão
nada se avista
na solidão

e na escuridão
o amor é dor
e a saudade
triste clamor.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: naqueles tempos de criança


Rangel Alves da Costa*


A criança de hoje vive como adulto. O menino de agora parece não vivenciar o seu tempo, sua idade, suas experiências infantis. É tudo regrado, tudo, proibido, tudo burocrático demais. A criançada de hoje não brinca, apenas jogo, e com jogos tecnológicos, informatizados. Mas ainda recorda de um tempo onde a criança verdadeiramente brincava, se encantava com as pequenas coisas, possuía um mundo na rua, pelas calçadas, nos quintais e nos cantinhos das casas. Casa de boneca, cavalo de pau, bola de gude, ciranda, papagaio, peteca baleadeira, bola murcha, esconde-esconde, cantigas e pula-pulas. Quando a lua grande descia e as ruas se enchiam de paz - ah, havia paz -, a criançada chamava aquele mundo de seu mundo e então tudo se tornava em encanto, em fantasia, em alegria. O menino lançava mão do cavalo de pau e saía voando rumo ao céu estrelado. Que sonho bom! A menina chamava a amiguinha, mais uma e mais outra, e de repente já estavam rodando na roda, girando a ciranda, cantando velhas canções: Se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes, para o meu, para o meu amor passar... E lá em cima a lua cheia se enchia ainda mais, e se comprazia de prazer, de orgulho, de alegria. E iluminava ainda mais aquela infância em flor.


Poeta e cronista
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terça-feira, 22 de dezembro de 2015

ENIGMAS DA MENTE HUMANA


Rangel Alves da Costa*


A mente humana continua às sombras da exta compreensão das ciências. Os estudos desenvolvidos apenas se aproximam de seus labirintos, apenas sondam suas feições, apenas adentram em seus labirintos, mas não conseguem conhecer nem explicar as raízes de suas manifestações.
O próprio indivíduo, que se diz dono de sua consciência, não conhece nem consegue domar a plenitude de sua mente. Acha que agindo racionalmente estará conformando a mente com sua força de ação, porém os resultados nem sempre são os desejados. Por que assim acontece? Talvez a mente se situe numa esfera exterior ao próprio homem, ainda que no seu organismo.
A verdade é que a mente humana continua um enigma não desvendado pela ciência. As ciências que cuidam da mente, como a Psicologia, a Neurofisiologia e até a Filosofia, ainda não chegaram a nenhum consenso acerca do que seja mente. Impõe-se como elemento tão subjetivo que, para uma compreensão aproximada, se vale até mesmo das explicações mais intrincadas.
É consenso entre muitos estudiosos que ciências, por mais que desenvolvam estudos específicos acerca da mente, dificilmente chegarão a compreender a força mental enquanto emanação própria em cada indivíduo. Seria preciso saber, por exemplo, se a impulsividade humana possui mais poder de ação que a própria mente, se a intencionalidade humana foge dos limites da mente para agir pela simples emoção ou compulsividade.
Haveria de se dizer que há uma razão ou motivação em cada ação humana, e que tal comando vem da mente. Mas quando a ação do homem não parece condizente com correta atitude mental? Neste caso, a mente não deve ser vista como o local onde está armazenada a consciência ou onde se produz o pensamento, o conhecimento e a distinção dos elementos, mas tão somente como um distúrbio. Então surgiria outro problema para saber por que o estado mental se desvirtua para se transformar numa perigosa arma.
Contudo, muitos outros problemas ainda permanecem sem explicações. Da mente surgem ideias, emoções, sentimentos, intencionalidades, e tais aspectos, por possuírem características de invisibilidade, carecem de exatidão em meio às ciências. Como explicar as ideias e suas repentinas transformações? O cérebro do homem deste se aparta para agir sozinho? O cientista, perante um cérebro se lança na análise das células nervosas, mas não das ideias contidas na mente. Não se mede emoções e não se quantifica desejos. Assim afirmam os pesquisadores.
O problema está na observação dos fenômenos mentais. Não parece uma tarefa fácil mensurar a disposição ou indisposição de um indivíduo. E assim porque o que o sujeito sente, experimenta mentalmente, somente ele para conhecer a sua extensão. Mas ainda assim não há conhece com exatidão. Assim porque o funcionamento da mente é inacessível. Como afirmado, ela parece agir por um comando próprio que impede o sujeito de conduzi-la racionalmente.
Algumas perguntas devem ser feitas sobre a mente humana, e ainda assim com respostas limitadas. O que leva a uma mente que num instante está envolta em romantismo e no momento seguinte já estará impulsionando a prática de um mal? Como a mente desperta, ou se revela na sua normalidade, após um grave desvio de conduta? Como se comporta a mente daquele que não consegue domar seus instintos ou deseja mudar suas atitudes e não pode?
Como estaria funcionando a mente do personagem de Kafka em a Metamorfose? O bicho nauseabundo de Kafka continuou com a mente humana, com as sensações humanas, com a mesma identidade pessoal, ao menos interiormente. Mas era outro. Um ser querendo se transformar e outro ser se impondo.
Tudo difícil demais de ser explicado. Talvez seja porque a mente se nega a ser conhecida. E ela deve possuir suas razões.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...



A seca, a catingueira e o que resta da vida em flor...

Uma impressionante paisagem sertaneja em tempos de sol inclemente e vegetação padecente de sofrimento pela falta de pingo d’água.


Amor e nada (Poesia)


Amor e nada


Sobre o amor
ah sobre o amor
eu tenho dúvidas
disseram-me assim
e depois diferente
e agora mesmo
juro que não sei
se o que sinto
é amor ou nada

por que o nada
também é imenso
maior que o vazio
que resta do amor

por que o vazio
depois do amor
é o doloroso nada
que nunca tem fim.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: a seca e o sofrimento do bicho


Rangel Alves da Costa*


Além da seca, da terra esturricada e do fundo do tanque na lama rachada, o sertão ainda convive com um problema que se agrava mais a cada dia: a devastação. Antigamente se dizia que o latifúndio era imprestável, era um exagero de terra para um dono só. Contudo, era no latifúndio que a vegetação nativa reinava, que a mataria se mostrava imponente, que o gado pastava solto e com alimento. Havia bicho de toda sorte, desde onça a tamanduá. Mas depois que os sem-terra invadiram e tomaram conta de tudo, o que se tem agora é um sertão esquelético, desértico, feio, abrasador, desde a terra às alturas. A primeira coisa que fizeram foi derrubar toda mata nativa, dizimar tudo mesmo. E depois nem replantaram nem plantaram nada. Por consequência, sumiu o bicho, sumiu o arvoredo, sumiu a sombra, sumiu a fonte de ar fresco que se espalhava debaixo das grandes árvores. E quem mais sofreu com isso foi o bicho, a vaca, o boi, o cavalo, o jegue, o bode, que não tem onde descansar ou se refrescar quando o sol desce mais forte. As pastagens nuas não dão alimento, as árvores derrubadas não permitem sombras, e então os bichos ficam vagando de canto a outro sem que consigam encontrar um pé de um umbuzeiro ou qualquer outro árvore graúda para um descanso no compasso da vida difícil. E sofrendo vão debaixo do sol, e morrendo vão sem um último leito sombreado, apenas a dor por riba da terra quente.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

NATAL EM TEMPOS DIFÍCEIS


Rangel Alves da Costa*


As imagens servem para exemplificar como o Natal vem se transformando ao longo dos anos. Os cartões postais (que praticamente não existem mais) mostravam os três reis magos seguindo a estrela-guia em direção ao local do nascimento do prometido. Noutra cena, o estábulo tendo uma manjedoura ao meio e o menino sendo visitado por bois, cavalos, aves, ovelhas e outros animais. Um cenário empobrecido, ladeado de capim seco, pedras, garranchos trazidos pela ventania. E ali José e Maria adorando e protegendo o pequenino. Neste sentido são as cenas retratadas nos presépios.
Deste nascimento é que vem o espírito natalino. Para a cristandade, tal espírito representa o advento, ou seja, o nascimento ou a vinda do menino Jesus, que outro não é senão o Deus encarnado. No Natal, pois, celebra-se a vinda do Messias como a grande esperança da humanidade. É a preparação dessa chegada, renovada a cada ano, que caracteriza o espírito natalino: um tempo de preparação, de reflexão, de renovação das esperanças. Mas sempre em obediência à simplicidade daquele estábulo, sua manjedoura e o menino nascido em tão humilde família.
Com o passar dos anos, e aquelas imagens permanecendo apenas nos cartões natalinos e nos presépios, o período natalino foi sendo transformado de tal modo que sua caracterização ficou por conta dos enfeites reluzentes, das luzes espalhadas por todo lugar, nos pisca-piscas e nos adornos cada vez mais tecnologizados. Arrefeceram o sentido religioso da celebração, transformaram um período de solene reflexão em algazarra consumista, transmudaram toda a simbologia natalina num festim desenfreado de gastos, troca de presentes, preparação de ceias suntuosas e brindes com importados.
Quando aqueles três reis magos (Belchior, Baltasar e Gaspar) se dirigiram à Belém para presentear o menino Jesus com ouro, incenso e mirra, e mais tarde as pessoas se contentavam em oferecer doces, frutas e presentes modestos aos parentes e amigos, jamais imaginariam a feição que tais lembranças foram tomando. Modernamente, presentear alguém com presente barato é correr sério risco de inimizade. Houve um tempo de sinceros agradecimentos ao receber um simples cartão natalino ou mesmo uma folhinha ou calendário, mas de repente ou se dá a marca, a grife ou a etiqueta ou sequer receberá ao menos um abraço.
E assim porque o Natal passou a ser tido como mero período de compras. As lojas se enfeitam de luzes e adornos não para relembrar o nascimento do menino, mas para chamar clientes. Muitas pessoas passam a frequentar as igrejas não porque estejam com a fé reanimada, mas para implorar recursos para a compra de muitos e alentados presentes. Os enfeites das ruas e avenidas nada têm de sagrado, mas apenas para atender aos anseios comerciais e as imagens das administrações. Para uma ideia do uso do Natal para outros fins, basta conhecer a decoração dos shoppings. Mais parece uma gigantesca árvore natalina, mas objetivando somente recordar que é preciso comprar - e comprar cada vez mais - para presentear os amigos.
Foi o consumismo - ao lado da pouca religiosidade do povo - que retirou do Natal o seu verdadeiro espírito, ou ainda o seu sentido de fraternidade, reflexão e humanitarismo. Ao invés de visitar um parente ou um enfermo, a pessoa geralmente prefere o caminho do shopping ou dos grandes centros comerciais E de lá sempre sai carregada de pacotes e embrulhos enfeitados, ainda que a conta do cartão deixe de ser paga já no começo do ano. Ninguém se reveste de realidade e afirma a si mesmo que dessa vez não pode comprar qualquer presente. Pelo contrário, se endivida como pode para satisfazer o ego e a vaidade. Do mesmo modo age em casa, quando enche a mesa pelo simples prazer de chamar uma vizinha para que assim a aviste.
Mas o que fazer agora, ante os tempos tão difíceis? Com toda população reclamando da crise, dos aumentos de tudo, da falta de dinheiro, do décimo-terceiro fatiado, da falta de qualquer perspectiva de melhoria financeira, então logo se imagina um refreamento do consumismo. E assim certamente será, mesmo que muita gente ainda insista em se endividar até o crédito acabar. Contudo, mesmo que forçadamente, grande parte da população haverá de se contentar com um Natal das vacas magras. Assim como aquela vaquinha ossuda ao lado da manjedoura. E será o começo do reencontro com aquele espírito natalidade imorredouro.
Serão estes tempos difíceis que farão com que o espírito natalino enfim retome um pouco de sua verdadeira feição. Sem a fartura da ceia, talvez as famílias reconheçam o valor de outro pão. Sem os presentes caríssimos, talvez as pessoas compreendam o valor de uma singela recordação. Sem tantos shoppings, centros comerciais e lojas em suas vidas, talvez as pessoas encontrem um tempinho para a igreja, para a eucaristia, para a oração. Sem uísque e champanhas importados, talvez muitos valorizem mais o diálogo sóbrio e fraternal.
O que talvez nunca mude são as esperanças de alguns. E que são tantos e por todo lugar: o menino pobre esperando que Papai Noel deixe qualquer presentinho na janela de seu barraco.


Poeta e cronista
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Lá no meu sertão...



Com a seca na mão e pelos arredores. Sertão de Poço Redondo, neste domingo.



Renascer sertão (Poesia)


Renascer sertão


Nesta vida
sou apenas humano

noutra vida
quero ser mais humano

pois se nesta vida
amei tanto a terra sertão

imagine na outra
quando serei apenas amor

porque renascerei
outro sertanejo

talvez um preá
talvez um mandacaru

talvez uma fogo-pagô
talvez uma catingueira

e mais feliz serei
porque apenas sertão.

Rangel Alves da Costa