SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Nas beiradas do São Francisco



Leito que os olhos deito e feliz deleito a grandeza da vida...



Em Curralinho, povoação ribeirinha de Poço Redondo/SE



Fui dar a benção ao Velho Chico. E ele me abençoou e depois passou. E foi seguindo lento, lindo, apenas rio, ainda rio...


RETRATO DA TERRA


Rangel Alves da Costa*


Antigamente é um tempo já muito antigo. O passado é um tempo envelhecido demais. Ontem pode estar ainda à vista, mas já pode ter sumido na poeira dos anos. E o que não se avista mais só tem serventia para cortar coração na saudade. E triste e dolorosa é a saudade do impossível regresso. Assim com o meu sertão que se foi e hoje só resta no retrato da terra e na moldura do chão.
Pouco resta do verdadeiro sertão. Somente o conceito geográfico permanece, mas ainda assim sem aquelas características descritas nos livros. A catingueira vive seu desalento de solidão, as cactáceas não são mais avistadas como outrora. Com a devastação da mataria não restou bicho nem passarinho. Sem tufo de mato o bicho não tem moradia, sem galho de planta não há ninho de passarinho. Sem a vegetação a terra fica desprotegida, os riachos secam, o calor aumenta, a feição desértica torna em fornalha a aridez.
Em seu contexto maior, a terra em si não se modifica senão pelo desejo da própria natureza. Se o passado era de abastança de árvores e espécies nativas e hoje não existe, certamente que não foi a natureza que tirou o seu véu de abundância para se mostrar desnuda, magricela e feia. Tudo pela mão do homem, pela foice do homem, pela máquina do homem, pela insensibilidade do homem, pela sua imensa cobiça de usar e abusar até não restar mais nada.
Certamente alguém se lembrará da fruta do mato, como a quixaba e o araçá, que noutros tempos vingavam de encher bacia. Bastava a pessoa enveredar na mataria e não demorava muito para encontrar o doce negrume ou o saboroso pingo dourado. Hoje quase não existem mais. Bem assim ocorre com o bicho de caça. Nas vastidões secas e empobrecidas, sem o que colher pra comer, famílias inteiras sobreviviam unicamente da presa do mato. Preá, caititu, veado, nambu, perdiz, era presença constante no fogo de lenha de sertanejo. Hoje em dia nem adianta tocaiar que é tempo perdido. E não se deve esquecer que o sertão já foi paisagem até de onça pintada.
Impossível rebuscar o passado como presença, inimaginável seria ter a continuidade do ido no passo presente e futuro. Tudo nasce com a validade do seu tempo e depois o próprio tempo cuida de amarelar o retrato e fragilizar a moldura. Ao olhar o passado através do que restou na parede da memória, outra coisa não se encontrará senão o espanto de quase nada mais encontrar daquilo que tão belamente existiu.
O sertão possui muitos retratos na parede da memória, mas nenhum parecido com o que se tem agora. Difícil acreditar, mas o novo, sempre forjado com a promessa de não apagar o passado, nem de longe parece com os encantos singelos de antigamente. Enquanto o novo sertão se esmera e se maquia para fugir cada vez mais de sua real feição, aquele outro sertão encantava pela sua singeleza bucólica, humilde e verdadeira.
Ninguém haveria de esperar, contudo, que aquele sertão permanecesse inalterado pelas forças do tempo. Tudo muda, tudo se transforma. Num tempo distante houve um sertão intocado, de vegetação nativa se alastrando por todos os quadrantes. Com o desbravamento e povoamento, os espaços foram divididos entre o novo habitante, suas criações e o já existente. Entretanto, no processo histórico de desenvolvimento, coube ao homem reduzir os espaços naturais para ampliar seus meios de subsistência. Mas os objetivos de exploração econômica foram devastando a terra sertaneja e fazendo surgir no seu meio um sertão diferente a cada ciclo.
Tal processo se constituiu num desenvolvimento predatório. A cada passo de transformação também o da regressão. A pujança da natureza, das espécies nativas, dos bichos próprios do bioma caatinga, do homem no seu mundo próprio, tudo isso foi sendo afetado pelo progresso. Como aconteceu com o Velho Chico, um rio antes pujante e caudaloso, bastou a chegada da hidrelétrica e tudo afinou de fazer dó. O ribeirinho restou abandonado perante o seu rio igualmente maltratado, fino e feio pela sua essência sugada.
São muitos os exemplos. Até o século passado eram comuns os latifúndios com suas áreas imensas de terras, muitas vezes mantidos improdutivos, mas garantindo a preservação natural. E as terras de eréu num período mais longínquo, quando muitas léguas de terras se mantinham sem dono e estas acabaram sendo transcritas como de propriedade dos poderosos de então. O latifúndio foi também fruto das terras de eréu.
Hoje, em nome da reforma agrária e da distribuição de terras para os que desejam nela trabalhar, criou-se uma ilusão verdadeiramente depredatória. A rica vegetação encobrindo léguas e léguas aos pouco foi tombando pela foice e pelo machado, deixando em campo aberto o mundo da catingueira e do mandacaru, o mundo da baraúna e do juazeiro. E para nele nada produzir. A pobreza se alastra impiedosa, não há planta nem fruto, não há quintais nem criações, não há sequer esperança. O que se tem é um sertão desfigurado e transformado num deserto de sol e calor.


Poeta e cronista
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Lágrimas do sol (Poesia)


Lágrimas do sol


A pedra chorou
o choro da terra
tudo que chorou
chorou toda dor
e já sem lágrima
para chorar
o olho sofrido
só lacrimejou
o barro do chão
a lama do tanque
a lama do rio
um dia chorou
e depois secou

quando tudo secou
e tudo esturricou
e o olho do homem
e o olho do bicho
e o olho da terra
tudo o que chorou
morreram de sede
morreram de fome
morreram de dor
mas nada chorou
apenas a morte
nem choro restou.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: ontem, à beira do rio...


Rangel Alves da Costa*


Ontem visitei o São Francisco, O Velho Chico, o Rio dos Currais, o mais belo dos rios, pois o rio que passa na minha aldeia sertão. Da sede do município sertanejo onde nasci, Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, são cerca de catorze quilômetros até a beirada do Velho Chico. Em meio a um sertão seco, esturricado de sol, com paisagens catingueiras de causar sofrimento pela sequidão, depois de uma estrada de chão, de repente lá do alto se avista a cor das águas correndo lá embaixo entre descampados e serras, entre vidas ribeirinhas e portos de antigamente. Nem de longe se parece com aquele rio de antigamente, imenso, caudaloso, numa pujança de causar comoção ao olhar. Um rio que era a vida da gente da ribeira, que era a estrada do sertão, que era o destino e chegada de todo os progresso sertanejo. Mas o homem, na sua sede de progresso, nada mais fez que beber quase toda a água do rio. Hoje ele passa bonito, ainda corre pujante, porém muito mais fino, muito mais cansado, já fragilizado demais pelas forças que lhe tomaram. Mas uma fotografia incomparável, uma paisagem indescritível, uma beleza sem igual. Ali, de lado a outro na feiura da seca e da fome, aquele leito passando, seguindo adiante, num impensável percurso: o seco e o molhado apenas num passo. E o coração e o olhar avistando e seguindo as aquelas águas teimosas como um ato de fé.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 27 de novembro de 2015

A VIDA DE JESUS (FILHO DE TOTONHA E BASTIÃO)


Rangel Alves da Costa*


Jesus dos Santos, eis o seu singelo nome de batismo. Era para ser maior, mas no cartório o pai do menino ouviu que tanto fazia filho de pobre ter nome completo ou não, com a junção do sobrenome do pai e da mãe, vez que a pobreza não precisa de muita pronúncia nem de muita escrita em documento. Jesus já estava bom demais para ser conhecido e chamado, e acrescentaria dos Santos apenas para que os pais tivessem a ilusão completa, foi o que afirmou o de gravatinha borboleta.
Era para ser Jesus da Cruz Santos, mas ficou apenas Jesus dos Santos por força das conveniências cartoriais e das explicações dadas pelo de cabelo passado à brilhantina. Assim o menino foi registrado. E talvez o destino, através daquelas linhas tortas que tanto se fala, acabaria colocando o Jesus numa estrada de sofrimento que sempre fazia lembrar os desertos percorridos, as incompreensões e as tentações na solidão sofridas por outro cristão de mesmo nome.
Jesus veio mundo em meio a mais absoluta pobreza. Seus pais, Sebastião e Antônia, devidamente apelidados de Bastião e Totonha, mesmo ainda jovens, pareciam dois velhos e alquebrados pelas desditas do tempo. Ela, mulher de tudo e nada fazer, pois não se negando a nenhum ofício que lhe chegasse como trabalho de ganha-pão. Mas sem nenhuma trouxa de roupa pra lavar nem um punhado de barro pra fazer panela, ou mesmo qualquer outra coisa pra debulhar ou limpar, seus dias se resumiam no desalento e desesperança. E numa tristeza danada pela sina do marido.
Aquela sina não era somente do marido Bastião, mas de todo homem que vivesse naquela região. Com mais de ano sem chuva, sem cair um pingo d’água sequer que desce esperança de molhação a terra, tudo se transformava num sofrimento sem fim. E sem chuva não havia nada que sustentasse a vida, que permitisse um tiquinho de qualquer coisa no prato de cada dia. Sem chuva não havia trabalho nem contação de moeda para o dia da feira. E, para piorar, a falta de água pra beber, o bicho de caça sumindo, a planta pendendo por cima da terra seca, aquele mundão de vida definhando sem ninguém poder fazer qualquer coisa. Somente a flor de mandacaru se exibia imponente, mas ninguém come flor de mandacaru. Dizem que ela se transforma espinho na boca de quem ousar mastigá-la.
Assim era a vida Bastião, de Alfredino, de Leocádio, de Biribeira e tantos outros que possuíam casebres de cipó, barro e ripa pelos arredores. Um monte de gente na desvalia de tudo, desde o acordar ao anoitecer olhando a cor da barra e fingindo a esperança para não chorar. Pastagens já com queimor na feição de deserto, ossada de bicho por todo lugar, tanques e barreiros com lama rachada, petrificada, uma tristeza danada tomando conta de tudo. Craibeira sem florescer, catingueira esmorecendo, xiquexique afinando. Sem pássaro para cantar, o pio agourento reinava nas noites negras.
E foi num cenário assim que nasceu Jesus. E Totonha, a mãe, ainda se recorda como se deu: no meio da noite, com o gás do candeeiro acabando, então a dor de parir assustou. Gemeu, sufocou o primeiro grito. Chega, chega homem de Deus, chega que já vai nascer. Quando o marido se embrenhou pelas veredas atrás da velha parteira era tarde demais, pois Jesus já havia nascido na cama de capim. Ai meu Jesus amado, meu menino nasceu. E assim o nome foi logo escolhido. E o destino também.
A infância de Jesus foi totalmente diferente daquela vivenciada por outros meninos da região. Ao invés de brincar, sempre preferia subir numa pedra grande de onde ficava mirando a secura do mundo ao redor. Não se sabe o que lhe vinha à mente, mas certamente muito além dos devaneios da criancice. Desde essa idade que a visão de seu mundo começou a lhe pinicar por dentro. Tudo lhe doía. Aquele sofrimento do povo, aquele suor de escravo, aquela vida de miséria sem fim, aquela mesmice de fome, sede e abandono, tudo lhe corroía por dentro. Mesmo sem escola ou professora debaixo de pé de pau, aprendeu na escrita do mundo a compreensão sobre tudo. E já rapaz feito tomou uma decisão.
E a decisão tomada foi se despedir da família e rumar mundo afora. Não tencionava se distanciar muito não, mas apenas seguir pelas estradas pregando contra as injustiças, o abandono a que todos estavam relegados, a contínua submissão aos poderes e aos governantes, sem que nada fosse feito para afastar aquela situação de contínua miséria. Não temia ser chamado de louco ou de profeta do desvario, não se importava acaso não fosse ouvido. Mas tinha dentro de si esse compromisso tido como sagrado.
Foi nessas andanças que subiu no alto da pedra mais alta para pronunciar um sermão que mais tarde ficaria conhecido como O Sermão do Mandacaru, e que a cada passagem sempre começava assim: “Bem-aventurados os que do mandacaru possuem a flor como esperança e os espinhos como força de luta...”. E prosseguia com sentenças assim: “Por que quem padece debaixo do sol, se sacrifica para sobreviver, possui um motivo maior para viver que não somente esperar que a esmola lhe chegue como submissão...”.
Até que o seu sermão chegou aos ouvidos do Coronel Benizário Aroeira. E foi o fim de Jesus. Ou o começo de uma crença maior. Passou-se a reverenciar sua memória como verdadeira santidade.


Poeta e cronista
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Remédio de saudade (Poesia)


Remédio de saudade


Amor meu amor
se estiver com saudade
não chore e não sofra
não silencie nem grite
apenas escreva no papel
o que deseja encontrar
o que atormenta de dor
o que angustia a alma
e depois lance ao vento
seus motivos de aflição
e terás uma resposta
assim que a brisa chegar
e trouxer o perfume
e aquela velha canção
que você sempre ouvia
antes do meu retornar
e depois abra o coração
e me deixe entrar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: a lógica da natureza


Rangel Alves da Costa*


A natureza possui uma lógica própria. O homem, imaginando poder vencê-la, vai agindo em surdina e pensando que não haverá qualquer consequência na sua ação. Silenciosa, calma, humilde, a natureza finge que a tudo suporta sem nada fazer. Imagina-se a passividade, o tanto faz da ação humana. Mas ledo engano. Quando o homem já está esquecido de sua nefasta ação, então, de repente, a natureza vai mostrando sua resposta. E isso pode levar dias, meses, anos, uma duração inimaginável de tempo. E desse modo o rio vai aos poucos perdendo sua força ao longo das margens sem mata. E não dura muito para sumir de vez. E desse modo o calor vai ficando cada vez insuportável sobre a terra. Por quê? Ano após ano o homem vem desmatando, dizimando floresta, arrancando todo pé de pau. Sem arvoredo que resista à inclemência do sol, sem a proteção natural e verdejante do solo, basta o sol bater e se espalhar como fornalha acesa. Assim também com a extinção das espécies da fauna e da flora, com as águas avançando pelas regiões costeiras, pelos tsunamis e outras catástrofes, pelas enxurradas de lama que engolem cidades e vidas. Basta um olhar ao passado e fácil será encontrar uma razão para que tudo aconteça assim. E a mão do homem sempre será avistada como responsável por toda destruição do seu próprio ambiente natural. Mas a natureza renasce, desperta, retoma seu lugar no planeta. Enquanto o homem, sempre pagando pelos tantos erros, apenas vai passando como poeira ao vento.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 26 de novembro de 2015

A VIDA, ÀS VEZES...


Rangel Alves da Costa*


Por mais que a vida seja dada com toda inteireza ao ser humano, impossível que este a aproveite completamente. Faz imaginar que a existência vai, aos poucos, perdendo seu real sentido de ser.
E assim acontece. Imperceptivelmente a vida esvai, lentamente tudo se prostrai, e de pó a pó o cume se desfaz e surge um deserto de penúria e tormento. Por que a essência se torna aparência, e se por fora brilha por dentro se apaga.
Como numa colcha bem trabalhada, devidamente costurada para os enfrentamentos dos usos, a primeira linha vai se rasgando, depois o tecido se desgastando, até surgirem as imperfeições. Assim também na vida humana.
A verdade é que o homem também foi feito ao uso, ao desgaste, ao definhamento. Por mais que lute para continuar com o melhor de sua essência corporal, sua força e vitalidade, logo ele estará se ressentido das fragilidades tão próprias à existência.
A própria existência vai deixando de ser uma soma de alegrias, sonhos e conquistas, para ir se transformando num rosário de problemas, desafios e dificuldades. De repente – porém sem espanto - a pessoa se vê à procura de quaisquer motivos que lhe traga alguma felicidade.
Como disse o profeta, o pote vai secando sem precisar que nele seja lançada a cuia. O próprio barro vai bebendo seu interior, o vento se sacia da umidade da argila, e assim tudo vai confluindo para a ilusão de uma fartura. E assim também a vida: vai evaporando pela idade.
Também se diz que o percurso do homem é de empobrecimento. Vai, a cada dia, ficando mais pobre. A criança vai perdendo sua inocência, o jovem vai perdendo seus sonhos, o adulto vai perdendo as esperanças, enquanto o velho vai perdendo a própria vida.
Os desejos afloram, ruborizam, se transformam em desejos ainda mais fortes. Mas tudo passa. A flor vai perdendo o viço, a cor, a beleza, e de repente jaz acinzentada e retorcida. Assim aconteceu com o girassol no dia que o sol não apareceu.
O Livro de Eclesiastes sintetiza bem o destino do homem, o que ele é o que será. Depois da alegria a tristeza, depois do sorriso o pranto. Só que na vida não há muita chance de recuperar o tempo perdido ou situações não aproveitadas. A lei do retorno nunca possui a mesma feição.
No espelho o retrato do homem, o ontem e o instante. Dificilmente a pessoa se percebe com veracidade e destemor. Procura sempre fugir de suas marcas ou fingir uma realidade inexistente. Contudo, jamais poderá dizer que o espelho lhe mente ou que é bem diferente daquilo avistado.
Semelhante à pedra, o homem foi se formando grão a grão, mas depois de se achar forte demais sequer percebeu que estava sendo consumido pela gota d’água que caía sobre seu corpo. Tão forte e tão frágil. Pouco a pouco a água vai rompendo as entranhas até nada restar da indestrutibilidade.
Não é difícil perceber o quanto se vai perdendo a cada instante de vida. E tudo vai se fragilizando muito mais rapidamente do que se imagina. Ou se aproveita o instante ou cada instante ou quase nada será possível fazer amanhã. Mesmo sem a higidez de outros tempos, sem o ânimo de outrora, a vida ainda chama ao viver.
A vida não se contenta em permanecer, pois deseja prosseguir. A vida não quer quarto fechado ou ambientes sombrios, pois precisa de luz, de claridade, de sol ou de lua. A vida não quer pranto, lágrima ou tristeza, e sim contentamento, alegria e felicidade. A vida não quer apenas esperar a morte chegar, mas continuar viva.
A vida, às vezes, quer simplesmente viver. Por mais que as tempestades surjam, a vida, às vezes, deseja apenas viver. E quem negar tal direito à própria existência, negando estará seu direito de continuar existindo.


Poeta e cronista
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Menino (Poesia)


Menino


Ah meu caminho infinito
da infância ainda ouço o grito

da infância ainda o varal estendido
com o sonho bonito não adormecido

e uma estrada se mostrando ao olhar
e o medo de seguir naquele caminhar

o temor de não ter mais brinquedo
ou um brinquedo de só fazer medo

tudo diferente do cavalo de pau
e do boi de barro no canto do quintal

a goiaba madura ao amanhecer
a brincadeira de tudo até o anoitecer

deixar para trás a alegria e o sorriso
enfrentar adiante um falso paraíso

mas o calendário não podia esperar
e na idade o vento voraz a soprar

ainda não aprendi o que seja destino
mas sei que ainda sou aquele menino.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: o lábio lilás da prostituta


Rangel Alves da Costa*


A prostituta é tão jovem e tão bela. Mas ela está tão velha e tão feia. A prostituta tem pele macia e cabelos dourados. Mas ela está com aspereza na pele e com cabelos estragados. A prostituta tem boca perfeita e lábio carnudo. Mas ela está com a boca tão feia e o lábio disforme. A prostituta possui dentes tão alvos e hálito tão puro. Mas ela está com os dentes estragados e cheirando a rum. A prostituta tem olhar angelical e feição de princesa. Mas ela está com olhar entristecido e rosto sem cor. A prostituta tem sonhos, tem planos, desejos na vida. Mas ela está acordada em pesadelos, desesperançada, cheia de aflições. A prostituta possui muita fé e ora e roga por dias felizes. Mas ela está longe da graça, em silêncio profundo, sem reconhecer uma santa promessa. A prostituta tem pais, tem irmãos, tem parentes. Mas ela está tão solitária, incompreendida, evitada em tudo. A prostituta tem um corpo, um sexo, uma honra. Mas ela se entregou desnuda, fez de seu sexo uma troca qualquer, e desonrada não possui mais respostas. A prostituta tem namorada, tem apaixonado, tem poeta que lhe escreve versos de amor. Mas ela está com qualquer homem, se diz apaixonada por uma moeda, prefere os espinhos às flores de ontem. A prostituta sorri, canta e é feliz. Mas ela lacrimeja nos instantes de solidão, chora embaixo dos panos, finge viver e até a felicidade. Guardo dela um retrato. Tão bela e tão singela. Mas a encontrei tão irreconhecível naquele lábio lilás. E tão irreconhecível estava que também não me reconheceu. Chamou-me para o sexo em troca de troco. E eu, que um dia havia lhe prometido o mundo, apenas baixei a cabeça e me vi chorando.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O SERTÃO E AS HORAS LAMURIOSAS


Rangel Alves da Costa*


Lamuriosas são as horas mais tristes, mais dolorosas, que causam mais sofrimento e consternação. Lamúria é lamentação, é queixume, é contínua expressão de dor diante de um infortúnio. E as lamúrias sertanejas estão presentes desde o instante em que se noticia a morte de alguém.
Os tempos são outros, as dores retraíram-se ao patamar do simples pesar ou tristeza. A vida em si perdeu grande parte de seu significado, e a morte muito mais. Não se lamenta mais uma perda como antigamente, não se chora mais a despedida como noutros tempos. A vulgaridade ou desprezo pela vida acaba transformando a morte num mero acontecimento.
Até mesmo as sentinelas, que consistiam em ritualisticamente guardar o falecido até a hora da condução à última morada, já não existe mais na profundidade requerida no passado. Não há se entoam mais os cânticos de despedida, as rezas de encomendação da alma, as ladainhas de adeus, as incelenças para a boa acolhida no mundo celestial.
Atualmente, a maioria dos velórios mais parece um encontro qualquer de pessoas que desde muito não se viam. O defunto é esquecido no meio da sala enquanto as conversas se prolongam, as piadas correm soltas, os sorrisos e as alegrias tomam conta do ambiente. Poucos são os choros ouvidos ou as lágrimas avistadas. O velório, pois, se tornou apenas numa oportunidade de encontro entre parentes e amigos, e não como ritual de pesarosa despedida.
As imposições do progresso, dos modismos e dos descasos humanos, ainda não se arvoraram totalmente da região sertaneja. Quanto mais distante for o sertão mais a morte é sentida, o defunto é respeitado e a despedida é mais sofrida. Assim acontece porque a vida ainda é tida como bem precioso, como dádiva divina, e será lamentado mesmo um falecido de idade bastante avançada.
Ainda hoje, basta que seja anunciada a morte de alguém e o sofrimento pode ser reconhecido em cada pessoa, principalmente naquelas de maior proximidade. As lágrimas ainda são verdadeiras, os desmaios também, bem como os choros incontidos, os gritos e lamentações incontidas. E logo velas são acesas entre preces de adeus.
Noutros tempos, quando as povoações eram formadas por núcleos familiares, compadres e conhecidos, e onde todo mundo conhecia todo mundo, a morte de alguém significava um pouco de perda em cada um. O sofrimento generalizava-se de tal modo que era difícil distinguir entre um familiar e um apenas conhecido. Também a força da religiosidade aprofundava ainda mais o sentimento perante aquele ato de chamamento divino.
Mas não somente após a morte se verificava tal conflagração sentimental e lamuriosa. O prolongamento de uma enfermidade de uma pessoa já a fazia cercada por cuidados especiais e visitas constantes de amigos. Estes sempre apareciam levando remédios caseiros, chás, ervas, e principalmente muitas orações e palavras de conforto. E não raro que muitos passassem as noites ao lado da cabeceira. Assim acontecia quando já se percebia que não havia mais cura.
Diante de um quadro irreversível, ou mesmo pela fragilidade de um corpo já muito enfermo e envelhecido, os últimos suspiros de vida eram dados na presença de muitos. O silêncio era entrecortado com choros velados, lágrimas que desciam parecendo gritar, corações tomados de aflições e faces sem poder disfarçar a dor e o sofrimento. E o instante final era acompanhado por uma exasperação incontida de gritos, gemidos, choros profundos e confissões lutuosas.
Dali em diante tudo ao redor parecia estar transformado. Não se falava noutra coisa senão sobre aquele infortúnio. As faces continuavam entristecidas, os olhos sempre chorosos, as vozes embargadas, a dor pulsante por todo lugar. As roupas deixavam de ser coloridas para ganhar tons escurecidos, enlutados. Muitos sequer varriam as casas após a morte nem permitiam que rádios ou vitrolas fossem ligados.
O velório era o mais autêntico possível, original no jeito de ser e de expressão do sentir. Flores do campo ao redor do defunto, a imagem do Senhor em cima de um pedestal, muitas velas acesas, choros e lamentos, lágrimas de conforto dirigidas aos familiares. Os homens de cabeça baixa e chapéu à mão reverenciando o defunto, as mulheres com vestes negras e até com véus também escuros encobrindo as cabeças.
Quando os homens se retiravam as mulheres faziam ecoar os mais tristes dos cantos fúnebres, os hinos sertanejos de despedida. E por aqueles descampados ecoavam vozes lamuriosamente cadenciadas, em rezas, sentinelas e ladainhas que mais pareciam lamentos chorosos cantados. O cenário tão triste se tornava ainda mais comovente com aqueles adeuses entoados pelas sofridas vozes sertanejas.
Depois o morto era levado pelos braços de amigos até o cemitério. Todos a pé, caminhando lentamente, sempre acompanhados dos cantos de despedida. E por muito tempo ainda o choro e a dor pela perda. Não só na face e no coração como no próprio vestir, eis que o luto fechado era respeitado por um ano inteiro. Tudo após um momento de dor, dando início às horas lamuriosas.


Poeta e cronista
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Restos (Poesia)


Restos


O amor
veio ao entardecer
trouxe-me uma saudade
e depois partiu

o amor
chegou ao anoitecer
trouxe-me a recordação
e depois sumiu

o amor
fez-me construir alicerces
fez-me erguer esperanças
e depois destruiu.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: Poço Redondo, uma criança de 62 anos


Rangel Alves da Costa*


Hoje, dia 25 de novembro, meu berço de nascimento está aniversariando. Foi nesta data que alcançou seu status de independência e teve sua emancipação política reconhecida. Anteriormente, uma povoação sertaneja do município de Porto da Folha, nos carrascais sergipanos do São Francisco, teve seus destinos entregues às próprias a partir de então. E já nasceu grande, como o município de maior área territorial em Sergipe, e de muitas grandezas históricas, principalmente porque foi nas suas terras que a 28 de julho, na Gruta do Angico, que o cangaço tombou de morte com a emboscada a Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros. Mas o tempo não foi prodigioso com o seu desenvolvimento e crescimento, eis que ainda padece de grandes sofrimentos e desesperanças. Mas tudo há de mudar, pois ainda numa idade de formação, de impulso e de encorajamento. Pensando bem, Poço Redondo, aos 62 anos, é novo demais para estar tão acabado assim, tão feio assim, tão desprezado e abandonado assim. Na idade dos tempos, é ainda criança de colo. Um dia haverá de ser cuidado como filho amado e por mãos que sejam da terra, que conheçam suas carências e necessidades. E assim crescer para orgulho de todos. QUEM DERA MINHAS MÃOS AFAGÁ-LO E CARINHOSAMENTE DIZER: QUE O TEU DESTINO NÃO SEJA APENAS DE SERTÃO SOFRIDO, MAS DE SERTÃO RENASCIDO PARA AS GRNDEZAS DA VIDA!


Poeta e cronista
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terça-feira, 24 de novembro de 2015

MENINO NU


Rangel Alves da Costa*


Os tempos são outros, modernos, avançados demais. Contudo, apenas para umas coisas e outras não. A nudez, por exemplo, se tornou num espanto e prática de ato obsceno, com previsão penal para tal conduta, mas não deixou de refrear os atentados ao pudor que são cotidianamente cometidos por todo lugar. Quer dizer, criminalizou-se uma prática que jamais será respeitada por grande parte da sociedade pervertida pelo próprio meio. Contudo, é a conotação sexual da nudez que fere a lei e avilta o pudor público. Mas como, se a conotação sexual já se tornou cultura avessa?
Difícil delimitar a conotação sexual da nudez perante a sociedade que respira sexo, depravação, devassidão. Na verdade, o que a lei quis foi vestir forçadamente o povo, pois este nasce nu e por muito tempo andou completamente desnudo. Ainda hoje, principalmente entre as sociedades tribais, a nudez é a forma correta de andar, conviver e se mostrar ao mundo. Igualmente ocorre com os naturistas, ainda que tenham de buscar local permitido para se despir. Querer vestir o corpo como proteção é bem diferente de apenas vestir uma parte, sob a justificativa que esta vai de encontro aos princípios sociais. Princípios estes que já se depravaram.
Tem-se, pois, que o vestir como imposição e a nudez como criminalização, foi uma invenção da sociedade moderna. E talvez por medo da própria libido aflorada. Mas para esconder o que, se o feio é a roupa que se veste para encobrir o estado natural do homem? Mas para mostrar o que, se a completa nudez é menos pecaminosa que as “mini” que se usa para provocar a sexualidade com muito mais intensidade? Mas para dizer o que, se a nudez é socializadora, comum, e as vestimentas provocam divisão social, preconceito e discriminação? Ademais o nu é a verdade do corpo, seu espelho, sua feição, enquanto a vestimenta é a dissimulação e o meio para que o pensamento escancare o nu.
Como tudo se propaga no âmbito da cultura, aos poucos a sociedade foi forjando uma tradição no vestir, ainda que, insista-se, a nudez seja a vestimenta básica de todo mundo. Daí que, nos dias atuais, os olhos da sociedade - ou daqueles mesmos olhares acostumados a se deparar com outros tipos de nudez por cima de roupas - torna-se até inaceitável não ter uma roupa completa ou decente para vestir. Neste sentido, a nudez da pobreza é tão feia quanto a própria pobreza. E logo dizem que é falta de respeito uma pessoa viver quase mostrando as partes íntimas.
São coisas difíceis de aceitar numa sociedade moderna, dita aberta, pluralista, e tida como anti-conservadora. Prega um retorno ao estado natural, mas nega a nudez do indivíduo. Forçou que o nativo usasse folhas para esconder as genitálias, aplaudiu quando a nobreza se encobriu de pesadas roupas, exigiu que todo mundo andasse vestido, mas não cuidou de exigir regras no comportamento humano. Por consequência, o que se tem são roupas usadas exclusivamente para sexualizar o corpo, para transformar o vestir numa nudez explícita e desavergonhada.
Não se olvide que a pouca roupa, de modo premeditado e por insinuação, provoca muito mais que a nudez completa. E os olhares desnudam completamente a pessoa por causa da invenção do vestir. Acaso a nudez fosse ainda o comum sobre o corpo humano, certamente que os comportamentos seriam bem diferentes. Ora, se isto já ocorreu com a meninada, e num tempo de a criançada andar, correr e brincar, como veio ao mundo, então logo se tem que foi a própria sociedade que passou a se comportar diferente. Havia o menino nu e a menina quase nua, mas num ambiente de vida sem a perversão de agora.
Noutros idos, era costumeiro que até os oito anos, ou até mais, o menino permanecesse despreocupadamente sem roupa, tanto dentro de casa como pelos arredores. Até pelas ruas. De repente e um monte de menino nu era avistado correndo atrás de bola, soltando pipa, reinando perante o permitido pela idade. Era fato tão usual na vida interiorana que ninguém olhava de forma espantosa nem comentava a respeito. Um menino nu era igual a um menino vestido, simplesmente porque se avistava o menino e não o seu corpo nu.
Os meninos todos nus, magricelas ou mais rechonchudos, zanzando por todo lugar como se estivessem como vestimenta completa. Elas, as meninas, na mesma idade, apenas de calcinha. Todos vivendo o seu mundo, a sua idade, a sua infância e sem a vigilância de olhares maldosos ou sob o risco de pessoas degeneradas. Não havia um só olhar maldoso perante aquela nudez, não havia qualquer má intencionalidade perante aqueles sexos desnudos, não havia qualquer tentativa de abuso, assédio ou perversão.
Há de se observar que as genitálias dos meninos não mudaram. A nudez é a mesma, e certamente que andariam nus se a modernidade permitisse. Contudo, agora a devassidão e os transtornos sexuais são tamanhos que nem precisa a nudez para despertar as volúpias mais desavergonhadas. Mas os meninos não mudaram, nem os seus corpos, vestidos ou nus. Apenas a maldade humana.


Poeta e cronista
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Uma canção de amor e saudade (Poesia)


Uma canção de amor e saudade


E se
ao invés do vento
a brisa
ao invés do açoite
o perfume
sou eu
chegando na tarde
para o abraço
e o afago

e se
ao invés da nuvem
a lua
ao invés da chuva
a estrela
sou eu
descendo na luz
para dizer
te amo

e se
eu não chegar
e a lua sumir
eu não chegar
e a chuva cair
sou eu
em algum lugar
assim triste
a chorar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: meus amores perdidos


Rangel Alves da Costa*


Hoje, aos 52 anos, sou uma soma de amores perdidos. Recluso por opção, silencioso por devoção, solitário por destino, acaso deseje recordar o que seja amor tenho de voltar ao passado e nele encontrar os amores perdidos. Paquerei muito, namorei muito, beijei muito, tive relacionamentos mais duradouros. Já me dei e me doei, já recebi e já retribui, e hoje vivo na mais miserável situação amorosa. Ou talvez na hibernação depois de tanta efervescência de vidas. Não sei por que, mas a verdade é que jamais disse adeus e depois parti sem olhar pra trás. Jamais terminei com qualquer das namoradas, nunca pus fim aos romances mais alongados. Logicamente que todas as vezes fui simplesmente expulso dos corações, dos corpos, dos sexos, dos sentimentos. Todas as vezes fui esquecido, negado, relegado. Todas as vezes fui forçado a aceitar os términos, os fins e os sumiços. Todas as vezes fui tratado de tal forma como se um indesejado estranho estivesse em meu lugar. Não quero citar nomes, não pretendo culpá-las pelos ocorridos, não pretendo me fazer de vítima nem dizer que agiram erroneamente. Se assim aconteceu, certamente motivos existiram. Mas até hoje não conseguir entender quais seriam as motivações para os desprezos, os adeuses, os abandonos. Nunca maldisse o corpo, o sexo ou a alma. Sempre fui amante, poeta da sedução, andante de flor à mão e pronto para entregá-la. Talvez aí esteja o meu erro, talvez aí resida o meu infortúnio amoroso: entreguei flores demais. Quis amar demais. E acabei assim, no silêncio e na solidão.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 23 de novembro de 2015

FLORES ARTIFICIAIS NA JANELA


Rangel Alves da Costa*


Depois de colhidas, dispostas em buquês, enfeitando arranjos ou colocadas em vasos bonitos, as flores do jardim não duram mais que alguns dias. Dizem da efemeridade na existência das coisas mais belas. As pétalas vão perdendo o viço, a cor, definhando, até se desprenderem já esqueléticas e feias. E o jarro tão bonito e enfeitado de repente se torna solitário e triste. E a pessoa também.
Certa feita uma mocinha disse ao namorado que preferia ser presenteada com flores de plástico, num simples buquê artificial, a ter de sentir o mesmo destino e sofrimento da flor nascida em jardim ou estufa. E acrescentou dizendo que as flores artificiais não trazem ilusões, não precisam de água para forjar sobrevivência, não vão entristecendo com o passar das horas, não perdem a simbologia da flor. E das outras flores somente os espinhos restarão.
Com flores de plástico não teria ilusões. As rosas permanecerão rosas até que num tempo distante o plástico resseque e se dobre pela idade. As orquídeas continuarão orquídeas até que a poeira vá tomando conta de suas entranhas e envelhecendo as pétalas. As violetas permanecerão violetas até que um novo arranjo chegue para tomar o seu lugar. Depois de jogadas ao lixo serão apenas restos de flores. E diferente ocorre com as flores naturais. Estas permanecem poesia mesmo depois de murchas.
Para muita gente talvez não haja qualquer diferença entre flores naturais e artificiais. Avista e sente as flores apenas como enfeites, como algo agradável aos olhos ou mesmo porque ficam bonitas dentro de um jarro enfeitando uma mesa ou qualquer móvel de uma casa. As flores são apenas enfeites, servem apenas para modificar as cores do ambiente, jamais as considerando na sua simbologia. O que simbolizaria uma flor artificial?
Talvez a noção de flor, a ideia de flor, a aparência de flor. Em muitos casos, nem assim acontece, pois as flores são vistas apenas como plásticos coloridos, enfeitados. Contudo, mesmo sendo raros, há casos em que as flores artificiais falam e provocam muito mais que qualquer jardim primaveril ou o mais belo buquê de flores que possa existir. E não apenas por questão de sentimento, mas porque - mesmo que a pessoa não tenha consciência que assim aconteça – reflete o próprio ser, traduz com exatidão o seu instante de vida.
E com isso dizer que as flores de plástico se amoldam às pessoas na justeza de suas angústias, de seus sofrimentos, seus estados de solidão, suas aflições e melancolias. E também por simbolizarem formas sem conteúdos, corpos sem essência, apenas aparências e ilusões. Existem pessoas que são verdadeiros jarros enfeitados de flores artificiais: são apenas as formas. Por fora uma aparência forjada, mas por dentro o mais cruel dos outonos. Ou ainda a demonstração da mais absoluta verdade: nada fingir do sofrimento que definha a alma.
Por isso mesmo que ter um jardim florido não significa nada a quem se reconhece como um mísero jarro de flores artificiais. O jarro está à mesa como a pessoa está na vida, o plástico vai se mostrando resistente na mesma ilusão que a pessoa tem na vida. Ou simplesmente pela imaginação de que a flor imutável, sólida, permanente, que não precisa de água ou sol, se amolda ao próprio jeito de ser e viver da pessoa. Ledo engano, pois se estará fugindo ao verdadeiro significado da flor artificial colocada num canto qualquer. E depois esquecida.
O plástico da flor afeiçoa-se à negação da vida. Uma vida plástica, efêmera, empoeirada, esquecida, relegada ao sofrimento. E o que dizer quando a dona de um jardim florido sequer recolhe uma flor para perfumar sua manhã e seus olhos parecem brilhar ante o jarro velho com algumas flores artificiais carcomidas pela idade? Ora, apenas se compraz com o sofrimento.
Um jardim florido adiante e mesmo assim um jarro de flores artificiais à janela. Eis o retrato mais fiel do sofrimento. Lá dentro a pessoa também não nega sua artificialidade perante a vida. Não quer nem aroma nem perfume, apenas que a poeira do tempo cuide de seu destino. E como flor de plástico seja esquecida em qualquer chão.


Poeta e cronista
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Além do olhar (Poesia)


Além do olhar


As belezas de um rio
sempre encantam o olhar
mas somente os que amam
avistam mais que um mar

uma noite enluarada
sempre traz ao olhar poesia
mas somente os que amam
avistam céu estrelado no dia

o silêncio e a solidão
tornam em aflição a saudade
mas somente os que amam
tornam em brisa a tempestade

somente os que amam
encontram as joias perdidas
desvendam mistérios profundos
encontram na vida outras vidas.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: as velhas parteiras


Rangel Alves da Costa*


As velhas parteiras estão como que esquecidas pelos rincões interioranos. Hoje em dia, apenas raramente se utilizam os ofícios das mãos calejadas e experientes das velhas senhoras. Mas noutros tempos foi bem diferente. Nos dias de antanho, quando não havia hospital, maternidade ou mesmo posto de saúde nas distâncias matutas de meu deus, quando as dores de parir começavam a surgir o primeiro pensamento era seguir em correria atrás da velha parteira. O jumento era chamado ao dever e o aflito esposo esporava o lombo do bicho em tempo de enlouquecer, pois tinha pressa de logo chegar e trazer no mesmo passo aquela senhora. Geralmente no meio da noite, sob a luz do candeeiro, então aquelas mãos mágicas se lançavam aos mistérios sagrados e através de meios os mais impensáveis. Uma bacia de água, panos, toalhas, tesoura e a experiência de muitas vidas trazidas ao lume. Sem saber ler nem escrever, vivendo na pobreza e no abandono, morando em tapera de cipó e barro, aquela velha senhora ganhava uma importância indescritível nos momentos mais difíceis. Ou ela prestava os seus cuidadosos préstimos ou tanto a criança como a mãe podiam correr risco de morte. Mas elas, aquelas velhas parteiras sertanejas, como se agissem por inspiração sagrada em cada parto, somente sossegavam quando a criança chorava à luz da vida. E elas, com olhos também marejados de satisfação, levantavam os pequeninos ante as mães para dizer se era homem ou mulher. E depois retornavam cortando veredas até que novamente batessem à sua porta pedindo ajuda. E assim cem, duzentas ou mais vidas nascidas daquelas mãos humildes. E por isso mesmo madrinhas por gratidão de um sertão inteiro.


Poeta e cronista
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domingo, 22 de novembro de 2015

ALCINO E RANGEL (O FILHO CONFESSA)


Rangel Alves da Costa*


Difícil de compreender e mais ainda de acreditar, mas confesso que somente agora, já passados três anos de seu falecimento, é que verdadeiramente estou mais próximo a Alcino, meu pai.
Até aquele novembro de 2012, fui simplesmente filho. Mas a sua partida acabou me colocando numa proximidade tal que o reencontro como se fosse em vida. A partir de então tenho me dividido entre o que sou e o que ele era. Ou ainda é.
Explico por que. Após sua partida me debrucei na sua biografia. Não é fácil escrever sobre um pai, pois se corre o risco de fugir à realidade para sentimentalizar os escritos. Tudo fiz para apenas transcrever a pessoa, sua obra e sua memória.
Desde aquele instante entrei num mundo de Alcino que eu, apenas como filho, ainda não conhecia em profundidade. Ao analisar seus escritos, encontrei valores que permaneciam desconsiderados para mim. Ao enveredar no seu legado, passei a compreender sua importância enquanto escritor, pesquisador, estudioso do cangaço, conferencista, poeta, radialista e sertanejo.
Certamente que eu já conhecia a produção de literária de Alcino, mas não sua importância dentro do contexto nordestino, do cangaço, do messianismo, da saga do povo matuto, da preocupação maior com a terra, com a gente e com a história.
Fato também relevante se deu no entendimento de sua importância perante outros estudiosos e pesquisadores da saga cangaceira. Somente após sua partida é que conheci o entrelaçamento profundo e as grandes amizades construídas no mundo acadêmico, nos seminários, bem com a partir das correspondências mantidas com ilustres escritores.
A evidência de tais aspectos foi surgindo na construção da biografia. Contudo, quando comecei a me envolver na apuração de seu acervo, no sentido de preservação e manutenção, bem como para posterior formação de um memorial, então é que o filho se viu novamente diante do pai.
Como Alcino era muito cuidadoso – e até ciumento – com os seus livros, discos, manuscritos, rascunhos, correspondências, fotografias, enfim com o que escrevia e também com o que lhe servia como base de pesquisa, eu nunca quis me intrometer demais no seu mundo. Mas a situação já era outra. Ele havia partido e a mim cabia ser o guardião de suas relíquias.
Quando afirmo que a mim cabia cuidar de suas relíquias, não pretendo afastar a responsabilidade dos demais filhos. E são muitos os meus irmãos. Contudo, há um fator que sempre me uniu a Alcino muito além da condição de filho: a propensão à escrita e o amor ao sertão. O amor incondicional de Alcino pela terra sertaneja é o mesmo sentido pelo seu filho.
Coisas do destino, talvez. Mas dizem que sou o filho mais parecido com Alcino, com relação à feição. Já outros vão além para reconhecer na minha obra uma herança paterna. De qualquer modo, sempre bom que haja tal reconhecimento. Sinto orgulho de tudo isso.
Hoje, confesso mais vez, convivo com Alcino a cada instante, principalmente quando estou em Poço Redondo. Agora, confesso ainda, tenho Alcino ao meu lado e o compromisso fraterno de preservar sua permanência, não somente em mim, mas por todo o sertão.
Quando lutei contra o mundo para dar vida ao memorial, só Deus sabe a força do destino que me conduzia. Ainda luto com todas as forças que tenho, mas consciente que assim teria de ser. Ninguém constrói uma obra grandiosa sem grandes sacrifícios. E sei do merecimento de meu pai para a minha contínua luta.
Foi o memorial que novamente colocou pai e filho dentro da mesma casa. E um na presença do outro. Tudo ali é Alcino, é Dona Peta, é família, é história, é sertão. E eu com a dádiva divina de cuidar dessa moradia que acolhe a tudo e a todos com tanto amor.
Os caminhos de Deus são assim: apenas uma estrada, mas chamando a cada um para encontrar seu destino. E o meu é me dividir entre o que sou e o que Alcino ainda é.


Poeta e cronista
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Lágrima (Poesia)


Lágrima


Lágrima
um pingo
uma gota
que vem
que cai
e assim vai
a encharcar
a fonte
o rio
o mar

e eu
a sofrer
a chorar
e o olhar
a brotar
o rio
o mar
além
e sem
amar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: a existência de Deus


Rangel Alves da Costa*


Deus existe e não precisa ser comprovada sua existência. Nem todo mundo acreditada, mas Deus existe. Até mesmo o ateu sabe de sua existência. O simples fato de negá-lo implica apenas em não aceitá-lo. E nisso um induvidoso reconhecimento. Além dos mistérios celestiais, de seu trono no céu e de seu reinado lá do alto e sobre tudo, Deus está por todo lugar da vida terrena. Está na boca das pessoas, no pensamento, na recordação, na fé, na religiosidade, no coração e em tudo. Mesmo vivendo esquecido por alguns, a qualquer instante estes o chamam. Basta um temor e outro nome não é invocado, apenas o nome de Deus. O Deus do horizonte, da paisagem, da fauna, da flora, dos rios que correm, das águas mansas, da melodia da natureza. O Deus da Bíblia, da igreja, da missa, da prece, do oratório, da oração, do pedido, da vela acesa. O Deus ao abrir a janela ao alvorecer, o Deus da voz silenciosa ao repousar, o Deus na face do filho e da filha. O Deus oculto, mas cuja face é pura iluminação. O Deus da esperança, da promessa, da abnegação. E o Deus quando da sensibilidade, do humanismo, da fraternidade, do acolhimento, do reconhecimento e do amor ao próximo. O Deus do altar no coração e como condutor nas ações. O Deus que se ama e se teme, o Deus que se indaga, mas não se pode negar. Até o Deus da solidão. Em instantes assim, ele é o único que continua ao lado.


Poeta e cronista
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sábado, 21 de novembro de 2015

O FORRÓ DE JAIME


Rangel Alves da Costa*


Com o falecimento de Miltinho, responsável pela preservação e continuidade da tradição forrozeira no sertão sergipano de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, alguns logo sentenciaram o fim do autêntico forró pé de serra como animação costumeira de chinelado e ralabucho. Com efeito, somente Miltinho mantinha a preocupação de não deixar esmorecer o autêntico forró de salão e aquelas raízes tão profundamente fincadas no povo sertanejo de mais idade.
Amainando as preocupações dos antigos forrozeiros, verdadeiros apaixonados pelo compasso suado e o vai-e-vem requebrado, alguns sanfoneiros continuaram puxando o fole no salão de Miltinho. Mas nada mais era como antes. Sem a presença do comandante maior, mesmo forró de casa cheia tinha a mesma animação nem o mesmo contagiamento de antes. Por consequência, os forrós foram se rareando e somente em épocas festivas o salão reabre suas portas.
Logicamente que tudo isso causava um desânimo danado nos apaixonados pelo velho e bom pé de serra. Ademais, era até incompreensível que em pleno sertão o seu habitante mais tradicional de repente se visse apartado da sanfona, do zabumba, do pandeiro, do triângulo, do cantador, do forró como expressão maior. Foi então que o empresário Jaime Mendonça teve a ideia de aproveitar um espaço aberto num seu empreendimento e ali colocar à disposição do forró e dos forrozeiros.
Foi a tábua de salvação forrozeira. A partir de então, todos os sábados, geralmente a partir da boca da noite e se estendendo até dez horas ou mais, a sanfona come solta ao lado do Alto de Tindinha, num espaço adjacente ao Posto Bijota, todo cimentado, seguro, com o frescor da aragem sertaneja, e distando menos de um quilômetro do centro da cidade. E é a coisa mais bonita de se apreciar: a velha guarda sertaneja ali reunida, dançando sem parar, sem pagar um tostão, num fôlego e disposição maiores que o da juventude.
A iniciativa de Jaime – que não somente fornece o espaço como cuida do bem-estar de todos e paga ao tocador e seu grupo - prosperou de tal forma que a fama do forró ultrapassou fronteiras. Todo sábado uma verdadeira procissão de forrozeiros, entre homens e mulheres, chega das redondezas sertanejas e até municípios mais distantes para aproveitar a festança matuta. Quem está na cidade sequer imagina a forrozança animada de logo depois da ponte.
É uma verdadeira romaria. Ônibus são fretados em Canindé exclusivamente para o chinelado bom, veículos de todas as placas estacionam para o “funrufá da moléstia”. Há um carteiro de Nossa Senhora da Glória, rapaz ainda moço, que não perde um só forró. Que chova ou faça sol, e ele marcando presença. E assim muitos outros que veem no Forró de Jaime a oportunidade de reencontrar suas raízes e cultivar suas tradições mais antigas.
Mas o Forró de Jaime só alcançou tal fama e importância pela organização que possui. Jaime fornece o espaço, paga o sanfoneiro, mas quem toma frente para tudo sair a contento é o vereador Aderaldo Caldeira, contando sempre com a ajuda de João e outros da velha guarda cabocla. Segundo o próprio Aderaldo, há também uma preocupação em socializar as oportunidades. Ou seja, não há um só sanfoneiro responsável pela festança, mas dando a cada um a chance de ganhar sua parte. Assim, um sábado é reservado a Olivan, outro sábado a Vera, ou mesmo os dois numa só noite, ou ainda outros tocadores. O próprio Aderaldo de vez em quando puxa o fole com gosto. Sabe mais fazer política, mas ali o dançador quer mesmo é o som do fole roncando.
E quando o fole ronca é um deus nos acuda. Pedro Rosendo puxa uma de lado e sai numa maestria forrozeira de deixar qualquer um de queixo caído. Zé Bina se transforma em menino novo e parece não querer mais parar de dançar. Fernando rodopia pelo salão de fazer voar a saia da companheira. Até Eraldo de Chico Bilato se mostra passinho de ouro naquele encantamento matuto. É coisa verdadeiramente de se admirar. Senhores com oitenta anos e mais num fôlego de espantar. Senhoras já tidas como velhas por muitos e ali numa graciosidade dançadeira e numa afoiteza que só vendo. E o forró correndo solto.
Toda vez que chego ali logo recordo de Miltinho. Todo forró tem a sua feição e a sua memória. E certamente que Jaime mandará levantar uma placa dizendo “Espaço Forrozeiro Miltinho”. Nada mais justo.


Poeta e cronista

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Poema (Poesia)


Poema


Fiz um poema
na pedra
fiz um poema
no mar
fiz um poema
no ferro
fiz um poema
no ar
fiz um poema
na areia
em todo lugar

aonde passe
por onde passar
ali um poema
escrito a chamar
ali um poema
querendo beijar
querendo abraçar
leia o poema
procure decifrar
a inspiração
de tanto amar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: mundo medo


Rangel Alves da Costa*


O mundo está mesmo às avessas. O nome do mundo agora é medo, medo, medo? A vida agora é medo, medo, medo? Tudo agora é violência, violência, violência? Como viver nesse mundo/medo em meio a uma vida/medo e onde tudo é terror, sangue, dor, sofrimento, aflição, espanto, desgraça, tristeza, lágrima, morte? O que fizeram daquele mundo do Criador e dado ao homem para viver em paz, harmonia, amor e fraternidade? O que fizeram daquele mundo de homem racional, responsável pela sua própria sobrevivência, humilde e partícipe das conquistas do próximo? Será que, de uma vez por todas, expurgou-se de todo coração o amor, a sensibilidade, a compreensão, os bons sentimentos? Não, a sociedade não desperta assustada depois de sonhos ruins ou pesadelos terríveis. Não, a população não está fantasiando o mundo que não é o seu nem uma vida que não é a sua. Não, ninguém está inventando nada, dizendo por dizer sobre mais um atentado, sobre mais catástrofe humana e ecológica, sobre mais veias abertas e sangue jorrando por todo lugar. Não, o homem não está mentindo, é tudo verdade, é tudo realidade. Na dor, a constatação: o mundo desumanizado sangra, a vida insensibilizada sofre, o ser inocente simplesmente morre.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 20 de novembro de 2015

“AINDA SOU MOÇO, MAS JÁ TIVE CEM ANOS OU MAIS”


Rangel Alves da Costa*


Qualquer pessoa se espanta ao ouvir a declaração acima. Logo se imaginaria a pura insanidade naquele que dissesse que ainda está moço, mas na verdade já teve cem ou mais. Ninguém em sã consciência acreditaria que alguém regredisse na idade, primeiro envelhecesse para somente depois ir ficando cada vez mais novo até chegar à infância. Seria a existência de cabeça pra baixo ou a idade do homem trocando de tempo.
Mesmo que não acreditem ou que me chamem de louco, insano, maluco, doido de pedra, ainda assim ouso afirmar que “ainda sou moço, mas já tive cem anos ou mais”. Não sei bem até quantos anos cheguei, mas com certeza muito mais do que qualquer velhice que se tenha agora. Hoje em dia chamam de velho aquele que está com sessenta anos – ou até menos -, sem saber, contudo, que tal idade está ainda a caminho, e bem distante, do verdadeiro envelhecimento. Para citar um exemplo, com mais de oitenta anos e eu ainda sequer me achava na idade adulta. Sempre imaginava dançando a valsa da adolescência.
Desse modo, que não se imagine a minha idade num percurso lógico, numa linha temporal para frente. Que não se imagine que nasci, fui criança, cheguei à idade adulta, vou envelhecer, até chegar o tempo de despedida. Quem afirmar assim estará incorrendo em desarmonia com a minha existência. Logicamente que nasci, fui criança, adolescente e tudo o mais, só que numa mudança de tempo. Bastou que avistasse a vida e a realidade ao redor, então já não tinha mais aquela idade. Corpo de criança, mas com uma idade muito além do que poderia imaginar qualquer vã filosofia.
Assim, contra toda lógica que possa parecer, fato é que cheguei à velhice antes de envelhecer. Na verdade, já fui muito mais velho do que sou agora. Não sei nem mais quantos anos já vivi, porém a única certeza é que já fui bem velhinho. Nada de história bíblica, daquela descrição onde um viveu quatrocentos anos, outro seiscentos, e assim em diante. Também nada de Matusalém, o avô de Noé e que viveu perto de mil anos. No Gênesis está a sua história. Mas a minha está na verdade para ser acreditada.
E quando eu era mais velho enfim pude viver todas as alegrias da existência. Sábio, filósofo, profeta, conhecedor do mundo e da vida, então soube separar o joio do trigo e caminhar sem medo pelos lírios que ondulavam floridos pelos campos. Mesmo muito velho, brinquei como criança brinca, desandei mundo afora como menino faz, malinei sem parar como todo pequenino faz. Mas eu sabia onde brincar, onde correr, o que fazer, quando parar.
Quando eu era mais velho, muito mais velho, então foi quando me senti um adolescente realizado. Andava envolto em sonhos, planos, arriscando aqui e acolá, procurando amor, buscando amar. O que diferenciava erram os erros, pois sabia que não deveria ir além do permitido pela idade. E velho, mas como adulto vivendo, então frutifiquei nos quadrantes do mundo. Fui feliz na medida da possível felicidade.
Assim eu compreendia que deveria ser. Contudo, o meu erro maior foi ter chegado à velhice sem antes ter vivenciado as outras idades no seu tempo próprio. Mas o que mais me doía era saber que assim jamais deveria ser, pois o que valoriza a vida é o instante vivido perante a idade, e não pelo envelhecimento.
Eu era velho demais e sabia o peso que isso recaía sobre mim. Tudo fazia para avistar as outras idades da vida com a liberdade merecida, com as reinações necessárias, com os perigos que não se pode evitar. Ser velho demais tem esse problema: entristece por conhecer demais. Quer fazer diferente e não faz, e porque conhece demais. E isso não é viver. É apenas esperar que o velho tronco esmoreça e caia sobre a terra sem flores.
Quantos anos tenho hoje? Não sei. Só sei que nasci um dia, cheguei a um tempo distante, e depois retornei sem idade precisa. Se sou velho ou novo tanto faz. Quando velho, muito velho, aprendi que a vida é o instante. E ele que procuro viver em qualquer idade.


Poeta e cronista
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