SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 28 de novembro de 2018

NAQUELES TEMPOS (A VIDA E OS OFÍCIOS DE MINHA GENTE)



*Rangel Alves da Costa


Dona Alice Feitosa fazia sabão em pedra num fogão de lenha do quintal. Misturava sebo, cinzas e outras essências da terra, mexia e remexia o tacho grande com um pano amarrado na cabeça e o suor também virando sabão. E nas beiradas das fontes as seriemas, as nambus e as codornas, saciavam suas sedes ao entardecer. Um tempo de sertão ainda sertão...
Zé de Bela era alfaiate sem igual, com cortes, costuras e recortes, aprimorados no sul e trazidos para o seu ateliê num canto de casa humilde. Como um Clodovil sertanejo, a sua moda era refinada e exigente, bem costurada e alinhavada, pronta para ir aos salões, missas e procissões, da Festa de Agosto. E mais ao longe, pelas paisagens mistas de verdor e acinzentado, a bela flor do mandacaru deitava ao chão sertanejo o último respirar de sua beleza durada apenas uma noite, pois dura apenas uma noite a linda e sublime flor do mandacaru. Um tempo de sertão ainda sertão...
Maninho, ora pois pois, era o chef mais famoso e requisitado do lugar. Vindo das beiradas dor rio e depois alcançando larga experiência na gastronomia carioca, trouxe na bagagem os melhores cozidos, as melhores massas, as comidas de nome esquisito, mas de uma gostosura que só. Depois de preparados os pratos, e cheio de trejeitos e euforias, assenhorava-se de um pé de balcão e mandava botar mais uma. E de repente já estava dançando, dobrando os quartos, cantarolando um velho e apaixonado bolero: “Quem eu quero não me quer, quem me quer mandei embora...”. E pelos arredores, quando o tempo dava para ser assim, as mulheres na debulha do feijão de corda, os homens botando feijão pra secar, o milho seco sendo ensacado. Um tempo de sertão ainda sertão...
Chegava o tempo de festa e com a festa também o sapato novo pelas mãos do engraxate Manezinho Tem-tem, o tripé de retrato de Seu João Retratista, o parque ecoando no alto-falante O Milionário, de Os Incríveis. Tempo de festa também tempo de pintar a casa, de comprar corte de pano e flores de plástico novas. Panelas e louças lavadas nas águas do Tanque Velho, e depois os panos estendidos em cadeiras para tomar sol por cima das calçadas. Mas as más línguas diziam que era apenas para se amostrar. Eita povinho! Um tempo de sertão ainda sertão...
Delino tinha banana, Zé de Iaiá tinha farinha, Mané Azedinho e Joãozinho de Neusa o feijão. A cozinha sertaneja quase num lugar só, pois os vendeirim entrelaçados na vizinhança. Um jogo de sinuca na mercearia de Ermerindo, e de vez em quando também um encontro de repentistas. Um jogo de bilhar no salão de Angelino. Uma cachaça da terra no Bar de Zé de Lola. E de repente o sertão inteiro se enchia de graça com a forrozança que não faltava: Zé Aleixo, Dudu Ribeiro, Zé Goití, Dida, Agenor da Barra. E o forró comia no centro e só parava quando João Valentim virado em rato entrava pelos salões em fuzuê. E bem acima de todos aquele sol maior do mundo sol e a lua mais bela da vida, os horizontes de seca e de chuva, retratos tão sertanejos. Um tempo de sertão ainda sertão...
Maria do Piau Duro aparecia na esquina com rodilha na cabeça e um cesto de peixe miúdo salgado. Não dava pra quem queria. A bala de mel de Tonho Bioto era boa, mas era perigoso de um vendedor estar sem juízo na hora da venda e jogar na cabeça do comprador toda pirulitada. Mariá descambava pra beira do riacho com uma trouxa de roupas na cabeça. Quem vai querer arroz-doce de Baíta? Eu quero. Eu quero. Eu quero e não consigo afastar a saudade! Tudo num tempo diferenciado de sertão. Um tempo de sertão ainda sertão...
Hoje as memórias estão encharcadas nos lenços das saudades. Alguns ainda lacrimejam as ausências e as distâncias, mas outros desejam apenas estender os lenços nos varais e a tudo fazer esquecimento. E restará apenas um retrato na parede de uma vida e de um tempo, de um povo e de seu fazer, nalgum sertão do passado.


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Lá no meu sertão...


Sobre o Cangaço, sobre Lampião? Não sou nem defensor nem acusador. 
Sou pesquisador!



Luz de lua e estrela (Poesia)



Luz de lua e estrela


Do negrume da solitária noite
do breu da tristeza noturna
eu fiz a lua fulgurar
eu fiz descer estrelas
eu fiz a luz brilhar

o meu amor distante
e eu assim entristecido
e emudecido de saudade
não colhi nos seus retratos
aquele amoroso sorriso
de amor maior em nós

mas acendi a luz do luar
chamei as estrelas a bailar
e quando luziu em fulgor
eu já era inteira dela
e do seu imenso amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - escola com partido, mas sem ideologia partidária



*Rangel Alves da Costa


Impossível escola sem partido. Ora, escola é para formar consciências, para ativar as criticidades, para nortear pensamentos. Neste sentido, nunca ela estará isenta de ideologias e partidarismos. Os conteúdos escolares já carregam em si uma gama de ideologias, ora ocultando realidades históricas ora acentuando interesses. Muitas vezes, os alunos engolem sem saber. E também sem saber vão sendo moldados pelos ensinamentos repassados. Contudo, isso é muito diferente de o próprio professor se tornar - a partir de suas ideologias - num norteador de opiniões e crenças. O professor deve ensinar, orientar, nortear, mas não repassar suas próprias crenças e opiniões. Não deve fazer isso com assuntos alheios aos conteúdos e muito menos naqueles aspectos que envolvam política. Seria totalmente descabido que um professor de esquerda desejasse “esquerdizar” seus alunos, ou um professor de direita quisesse “direitizar”. A escola não pode aceitar ideologias partidárias, sob pena de a sala de aula se tornar em palanque político e num interminável confronto de ideias.


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terça-feira, 27 de novembro de 2018

A FLOR QUE AFLORA NO MANDACARU



*Rangel Alves da Costa


Olhai os lírios do campo com suas belezas nascidas da simplicidade, mas olhai principalmente para nossa sertaneja flor do mandacaru e sua beleza tão frágil e tão transitória.
Olhai os jardins da vida com seus pássaros e madrigais, com seus aromas e perfumes, suas cores e suas belezas, mas olhai também para a flor do mandacaru com sua seiva de tão curta existência.
Olhai o que possa maravilhar o olhar, o que possa encantar a visão, mas não se esqueça de olhar o nascer e o existir da doce e meiga flor do mandacaru. E nela talvez aviste o significado da vida.
E você, que é tão prepotente, tão vaidosa, tão egoísta, que usa de tanta desfaçatez nas suas relações com os outros, veja só o que acontece com a beleza exuberante da flor do mandacaru.
Nasceu ontem ao entardecer, já estava brotada nos braços abertos do mandacaru e ontem foi gestada como flor sem igual: coisa mais linda, coisa mais bela, a natureza em perfeição maior!
Mas hoje, já logo ao amanhecer, começou a perder o seu viço, as suas cores, o seu encanto. A flor do mandacaru simplesmente definha. Desde o entardecer de ontem ao alvorecer de hoje, aquela lindeza toda em algum lugar do sertão.
A lua e os seres da noite se ajoelharam perante sua majestade. O brilho da lua caía como dourado nas suas pétalas esbranquiçadas e nas suas hastes amarelo-avermelhadas. Uma verdadeira paixão noturna.
Contudo, bastou que o sol aparecesse para que a flor do mandacaru começasse a morrer. Sim, dura apenas uma noite a linda flor do mandacaru. Sim, de pouca existência é a bela flor do mandacaru.
Algo assim parecido com o que temos como vida. Ao nascer, imagina-se uma eternidade, em existência sem fim, mas para de repente ter o mesmo destino da flor do mandacaru. Nascer, fulgurar e expirar.
Então repito: você, que é tão prepotente, tão vaidosa, tão egoísta, que usa de tanta desfaçatez nas suas relações com os outros, possui menos tempo de vida que a flor do mandacaru.
Por maior beleza que tenha ou imagine ter, sempre será uma flor qualquer perto da flor do mandacaru. E para não existir no momento seguinte. Significa dizer que o seu o brilho e seu resplendor não dura mais, na existência, que a flor do mandacaru.
Por ser a vida transitória demais, aonde tudo vem e tudo passa, sequer os seus instantes são devidamente aproveitados. Por isso cuidado. Cuidado em querer ser mais espinho que flor. Cuidado em não querer ser além daquilo que é.
Muitas vezes, a beleza é apenas um espelho de fingimento. Muitas vezes, a escultura corporal é apenas uma curva ao precipício. Muitas vezes, o encanto repassado por onde passa, é apenas um silvo de cobra de bote armado.
A grande diferença está no fato de que a flor do mandacaru morre para nascer outra flor no mesmo lugar. E quando a flor humana morre, não há nada que a faça renascer. Apenas morre sem adeus e nos escombros do esquecimento terá seu destino.


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Lá no meu sertão...


Em Pedro Alexandre (Serra Negra), na Bahia, perante o casarão do coronel João Maria de Carvalho





O lugar do amor (Poesia)



O lugar do amor


O amor cabe num Salmo?
o amor cabe num Evangelho
o amor cabe numa Bíblia?
o amor cabe em palavras belas?

o amor nunca cabe em escrita
o amor sempre extrapola os livros
sempre vai além da imaginação

mas o amor cabe num olhar
cabe inteiro dentro do coração
cabe na ação e no fazer amoroso
e cabe mais ainda dentro da verdade.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - a triste noite dos arrependidos



*Rangel Alves da Costa


Existiu e ainda existe: a triste noite dos arrependidos. Lua que prateia ao alto, lua que passeia ao alto, lua que brilha nas distâncias e além. Mas por que não alegra ao menos um pouquinho aqueles arrependidos que se escondem nos seus quartos escuros, soluçando pelos travesseiros, lacrimejando entre as frestas, nos escondidos das camas e dos sofás? Quando a noite cai é sempre assim. Chegam os medos, os questionamentos interiores, as culpas, os erros dos erros, as vontades de fazer o que deveria ter feito e não fez? Por quê? Por quê? Por que fiz isso, por que agi assim, por que não pensei de outro modo? Oh, ela me amava e eu a deixei. Oh, quanta insensibilidade em não querer ouvir suas razões. Oh quanto egoísmo em meu coração, quanta indiferença no meu ser. Talvez uma só palavra, um sorriso, um pouco de atenção, ou talvez até uma simples promessa. Mas nada feito. E agora, a dor que dói lá também dói aqui. E o pior: eu também a amo!


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segunda-feira, 26 de novembro de 2018

UMA HISTÓRIA QUE VAI MORRER



*Rangel Alves da Costa


No último sábado, dia 24, estive visitando o Poço de Cima e me deparei com uma situação que desde muito eu já vinha temendo. Não só pelo abandono que encontrei numa daquelas últimas casinhas históricas do berço de nascimento de Poço Redondo, como pelo que poderá ocorrer em pouco tempo: o desaparecimento total daquele casebre.
Em diversos escritos eu já havia denunciado o estado de abandono em que se encontra o Poço de Cima. Se não fosse a abnegação de um grupo de jovens, a exemplo de Enoque Correia e João Vitor, a Capela de Santo Antônio já estaria como cova aberta em seu cemitério. Recuperada, cuidada, hoje se mostra imponente. A mesma sorte que parece não alcançar os demais marcos históricos daquela primeira povoação.
Sorte de Poço Redondo que ainda conta com o cordão umbilical de seu nascimento. Poço de Cima, com efeito, é o cordão umbilical de toda a história de Poço Redondo. Mas até quando continuará existindo o elo vivo entre o passado e o presente? Até quando estudantes, pesquisadores e outros interessados, poderão encontrar as paredes toscas que no passado acolheram os Sousa, os Lucas, os Cardoso, os Feitosa?
Apenas três casas de barro e cipó (com uma já em parte refeita em bloco) continuam existindo às margens da estrada principal. A primeira é a mais preocupante, pois logo na entrada da antiga povoação e a mais deteriorada. Cerca de um quilômetro após a saída da cidade, numa parte mais elevada, logo é possível avistar a casinha de barro, já quebrantada de tempo e nos últimos sopros de vida. Abandonada desde muito, sem qualquer morador que lhe jogue uma mão de barro, vai caindo pedaço a pedaço.
Um cenário triste e desolador. Uma visão lamentosa e agonizante. Sim, apenas uma casinha de barro com quatro cômodos e um “puxadinho” que servia como cozinha, mas uma residência familiar, um local onde famílias conviveram e pessoas foram gestadas. Casa onde no passado as vozes diziam das chuvas e das secas, onde o fogão de lenha abrasava e fazia fervilhar a panela de barro, onde a meninada se espalhava porta afora, onde a lua e o sol procuravam sossego pelas suas frestas.
Ali, perante os seus restos, é como se eu ainda ouvisse e visse o passado. Um cavalo alazão sendo amarrado num pé de pau logo adiante, a velha senhora catando remédio de raiz e flor para curar qualquer mal, o velho senhor pedindo uma xícara de café, a mulher dizendo que o cuscuz já estava pronto e que já ia ser colocado à mesa. Mas nem precisava dizer. Pelos ares o cheiro perfumado do café torrado, do cuscuz ralado, da carne cortada em varal e preparada na banha de porco. Que cheiro bom aquele cheiro de sertão antigo! Mas o que resta agora?
Resta o prazer do reencontro e a dor pela despedida. Como uma visita a um enfermo já sem esperanças, bem assim a tristeza pela certeza que não durará muito tempo para que restem somente os escombros daquela casinha histórica e ainda tão importante no livro chamado Poço Redondo. Quem dera que eu estivesse enganado, que eu estivesse alardeando demais. Contudo, não vejo esperança nenhuma. Desde muito que venho implorando para que a administração municipal tome alguma providência, no sentido de preservar não só a casinha como todo o Poço de Cima. Mas nunca fui ou sou ouvido.
Trata-se de uma propriedade particular, é verdade, mas a administração municipal possui diversos mecanismos legais para proteger seu patrimônio histórico. Poderia desapropriar, tombar, firmar convênio para realizar melhorias e não permitir o desabamento, dentre outras possibilidades. Mas nada é feito. Enquanto isso, a destruição total se aproxima e logo mais nada mais restará.
Agora o mais preocupante. Bem ao lado da casinha estão fazendo uma grande e imponente construção, talvez uma moradia luxuosa ou prédio com outra finalidade. E quem estiver diante da casinha, logo avistará a grandiosa obra em rápido andamento. E será que o seu dono permitirá que algo tão luxuoso fique bem ao lado de uma casinha velha e abandonada? Dificilmente aceitará. Por isso mesmo os seus dias contados.
Infelizmente será assim. Dói saber que não durará muito tempo para que parte da história de Poço Redondo desapareça assim. Assim como um nada imprestável e que apenas é derrubado. E pronto. E amanhã, amanhã quem quiser relembrar os seus restos que vá tirando logo uma fotografia. Apenas isso restará. Infelizmente assim.


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Lá no meu sertão...


Grande Sertão - Veredas!






O eterno amor (Poesia)



O eterno amor

O eterno amor
com toda sua eternidade
vive apenas o instante
do amor na sinceridade

uma vez traído
o amor jamais será refeito
pois a plenitude perdida
faz do amor imperfeito.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - a chuva que cai agora no sertão



*Rangel Alves da Costa


Quanto extasiamento, quanta alegria. Visões que parecem ser de uma felicidade repentinamente surgida, de um grande prêmio recebido, de uma graça maior concedida. Povo em alegria, povo em festa, olhos maravilhados, corações agraciados. Mãos que se elevam em preces, rosários que passeiam nas mãos, promessas sendo pagas, e santos sendo desenterrados. Mas por que tudo isso? Ora, por que chove no sertão. Não é nem chuva forte, de trovoada, alentada, mas bastando ser chuva. Depois de tanto esperar, depois de tanto sofrer, depois de tanto desesperar, qualquer chuva cai como dádiva maior. E logo a esperança que seja a primeira nuvem de muitas, que sejam os primeiros pingos de muitos, e para que encham barragens, verdejem os campos, tragam nova vida ao sertão. Por isso tanto festejo, tanto encantamento e tanto contentamento. Correm pelas ruas, dançam pelas poças, pulam nas biqueiras. É festa. Chuva no sertão é festa.


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domingo, 25 de novembro de 2018

DOGIVAL, RELEMBRANDO O SAUDOSO AMIGO



*Rangel Alves da Costa


Recordo-me agora daqueles idos de estudante de Direito na Universidade Federal de Sergipe, quando o sempre acanhado sertanejo de Poço Redondo, sem muita vontade de tecer amizades com aqueles colegas de garbo e sobrenome (na sua maioria), contentou-se por inteiro ao encontrar, no mesmo curso, outro inesquecível sertanejo: E sertanejo de raiz e tronco, pois legítimo buraqueiro: Dogival.
Já éramos acostumados com os corredores da UFS, pois tanto ele como eu oriundos de outros cursos. Contudo, sem os laços de profunda amizade nascidos a partir do curso jurídico. Creio que por sermos sertanejos, por possuirmos linguagem e visão de mundo aproximadas, então começamos a criar um mundo à parte naquele mundo acadêmico. Conversas sobre nossas raízes, enredos de um sertão tão presente em nós. E foi assim que eu e Dogival começamos a tecer verdadeira amizade.
Um encanto de pessoa, um ser humano maravilhoso. De mais idade que eu, também mais baixo, sempre bem vestido com camisa de botão e mangas curtas, trazia nos cabelos uma marca de viva memória: cabelos bons, cheios sem serem compridos, sempre tão bem penteados que se deitavam sobre a testa como que engomados. E mais o sorriso franco, amigo, sincero. E mais a postura mista de seriedade e extrema cordialidade. Este, em feições aproximadamente retratadas, o amigo Dogival.
Nascido nas terras buraqueiras de Porto da Folha em 12 de agosto de 1947 e batizado como Dogival Alves da Silva, mostrava-se sempre como pessoa interativa, culta, estudioso, inteligente. Além de professor e formado em Direito, era também graduado em Ciências Vernáculas (Português/Francês). Na juventude, resolveu ser seminarista (Seminário Menor, em Propriá, e Seminário Maior, em Aracaju), daí sua profunda religiosamente e apego ao sagrado. Enquanto docente, lecionou na rede estadual, no Arquidiocesano e no Tiradentes, dentre outros. Contudo, ainda na flor da idade, ainda no viço dos ofícios da vida, passou a contrair uma enfermidade e faleceu em 14 de dezembro de 2016, aos 69 anos de idade.
Do seu maravilhoso legado, além da incomparável memória afetiva, Dogival deixou um lar formado por esposa e filhos admiráveis. Ana Sá, sua esposa, e os filhos Dogival Filho, Robson e Adriano (e quatro netos), emolduravam docemente o seu viver. Ainda hoje todos se norteiam pelo seu legado e é como se presente ainda estivesse entre todos. Sua esposa Ana continua uma apaixonada. Não há um só dia em que ela não se recorde de seu saudoso amado, a quem chamava de “Meu Pequeno Príncipe”. 
Nas palavras da esposa Ana Sá: “É difícil encontrar palavras que descrevam todos os seus predicados! Menino culto e de uma simplicidade extraordinária! De uma pureza inigualável e de uma extrema responsabilidade. Fora tantas outras virtudes indescritíveis. Passei a lhe tratar de "Meu Pequeno Príncipe" para fazer jus àquele que cuidou da sua rosa com tanto carinho e a fez ver que era única. O mesmo deu asas àquela rosa tão pequenina e com tão pouco brilho! A incentivando a continuar estudando, trabalhando e a apoiando na realização de todos os seus sonhos. Sua serenidade e simplicidade eram a tônica para vivermos sempre harmonizados. Nos seus últimos anos, sua maior realização foi levar uma vida simples. Sempre em contato com a natureza e realizando múltiplas tarefas. Foi um retorno às suas origens. Apesar da sua partida aos 69 anos, sua vida foi bastante intensa e nos deixou um grande legado e amor infinito. Concluo com lágrimas banhando a minha face. Mas, satisfeita por haver cumprido o que havia lhe prometido”.
Sim, após ser diagnosticado com enfermidade já avançada, o amigo Dogival recolheu-se a um pequeno e confortável sítio, onde passou a compartilhar da natureza seus últimos sopros de existência. E então partiu. Partiu passarinho. E ainda voa nas alturas perante os céus de todos que o amaram.


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Lá no meu sertão...


Com o povo amigo do meu sertão



A pedra e eu (Poesia)



A pedra e eu


Estava tão triste
e na pedra sentei
a pedra calada
e calado fiquei
ouvi um soluço
logo me assustei
a pedra chorava
um lenço lhe dei

então perguntei
qual tristeza sentia
e a pedra respondeu
que a dor lhe feria
mas a minha dor
a dor que eu sentia
e para afastá-la
ela assim sofria.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - olhar de nudez



*Rangel Alves da Costa


O olhar do homem não tem jeito não, só pensa em safadeza perante a mulher que passa. Mas não toda mulher, logicamente. Sempre acontece com aquelas que fingem estar vestidas, que fingem não rebolar ou que rebolam sem fingir, que vestem uns shortinhos mostrando tudo ou que parecem vestir para despertar a nudez. E são muitas assim. Não pode dizer que está vestida aquela que coloca uma tirinha de pano nos seios e um pedaço de pano na parte de baixo. Tudo provocação. E também para dizer que está sendo assediada. Mas como, se ela anda praticamente nua? Mas nem precisava fazer assim, pois, como dito, o olhar do homem logo cuida de tirar toda a roupa. Moça bonita que passa, pode ter a certeza que segue completamente nua aos olhos do homem. O homem tira a roupa da mulher de macacão, de roupão, de vestido logo, seja de que for. Ela passa e o olhar vai torando peça por peça, até deixá-la completamente nua. Depois, depende de cada uma. Se quiser voltar ou não.


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sábado, 24 de novembro de 2018

NA BOCA ABERTA DA NOITE



*Rangel Alves da Costa


Vou começar a falar da boca da noite através de outras bocas. Eis que a boca é a porta de tudo, é por onde se segue adiante, é onde começa outra vida ou realidade. Na boca do ventre, na boca da mata, na boca do rio, na boca da morte. E tantas bocas entreabertas esperando o momento chegar.
A boca está no poema: “Calei a boca e tomei o corpo, e como não houve mais qualquer resposta, me apossei de tudo. Do grito, do céu da boca, da boca cheia de minha boca vazia de tanto voar em beijos...”. E também no epitáfio: “Oh, lábios que agora emudecem a tristeza de não ter dito adeus!”.
No meio da noite a criança abre a boca chorosa e ecoa toda sua vontade de aporrinhar o silêncio. Ela, apaixonada, mirando o luar imenso que surge, começa soluçando para em seguida querer gritar. E mais adiante, e por todo lugar, as bocas trêmulas conversam com suas saudades, os tempos idos, as boas e dolorosas recordações.
E mais tarde, quando a solidão chega agonizante, a noite se transforma num labirinto cheio de bocas enormes, desdentadas, horripilantes, querendo sugar a quem sofre por merecer. Mas eis que chega um lábio, que chega um carinho suave fechando a boca medonha da noite e selando num beijo a felicidade do reencontro. 
Dizem que o peixe morre pela boca; o guloso também. A boca bebe a água da vidraça molhada e poeticamente deixa estampado o lábio sedento. E as tantas bocas esquecidas quando as palavras raivosas ou apressadas saem pelos ouvidos e as narinas. Cale a boca já morreu, quem manda na sua boca sou eu. Por isso vou navegá-la. Mas se a boca der a permissão, a licença.
Mas de todas as bocas, não nego, sempre preferi a boca da noite. Desde o amanhecer ao entardecer que vou me preparando para a chegada do momento mágico, misterioso, cativante, delicioso e também assustador. Porque a boca tem face, e também a outra; é verso e reverso. E nela há uma cortina, um palhaço e uma lágrima.
Tão bela e necessária é a boca da noite que a sua chegada exige um rito todo especial. Como ritual de passagem, não é qualquer um que poderá recebê-la sem que a alma e o espírito, e tudo o mais que envolva o ser, estejam devidamente preparados. A noite doa, agracia, mas exige muito de quem irá recebê-la. Sob pena de sumir na sua boca.
Quando a tarde toma em sua mão o pincel de cores avermelhadas, e logo mais, parecendo angustiada, vai sombreando toda a tela, toda a paisagem, então logo pressinto que a noite chegará. E o horizonte vai se abrindo para o negrume descer, tudo vai sombreando ainda mais, e toco no lábio do tempo para sentir a boca. A boca da noite.
Como ainda é apenas boca quase fechada, apenas entreaberta, sem que a noite tenha chegado completamente, então passo a imaginar o que quero encontrar mais tarde. Contudo, há uma imensidão de tempo entre o sombreado da noite e o seu abraço inteiro. E o que acontecerá mais tarde certamente estará na dependência do que o corpo, a mente e o espírito sintam antes de tudo acontecer. Na boca da noite.
Por isso que a boca da noite é bela e feia, é alegre e triste, é amiga e hostil. Vem trazendo uma saudade boa, uma recordação cativante, uma vontade danada de estar ao lado de alguém importante ao coração, um desejo profundo de um diálogo amoroso, um abraço apertado, um deitar no colo da pessoa amada. Mas também o medo terrível da solidão, da certeza que novamente sofrerá olhando a lua, mirando as estrelas, viajando sem sair do lugar.
Boca de uma noite faminta, de lábio vermelho, de lábio carnudo, de lábio sem cor, de lábio apenas lábio. E sonha em se abrir para receber um beijo, se sentir molhada, amada, apaixonada. Ou talvez para a palavra, para dizer que espera da noite o que o ser consciente espera da existência: ter o que merecer.
E por isso mesmo espera a felicidade. Ainda que a boca trêmula e o coração apertado pressintam que ainda não será naquela noite. Nem com outra boca.


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Lá no meu sertão...


Sertão - Poço Redondo





Olhos que choram (Poesia)



Olhos que choram


Os olhos são nuvens
os olhos são mares
os olhos são tempestades
os olhos são rios
os olhos são temporais
são dores de saudade
são punhais afiados
e enxurrada sedenta
levando tudo

os olhos são lágrimas
e suas águas escorrem
e transbordam no ser
e devastam a alma.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – Sr. Belliet



*Rangel Alves da Costa


Não, o Sr. Belliet não merecia ser esquecido dessa maneira. Virtudes? Em demasia, até. Não houve ser humano mais generoso que o Sr. Belliet. Não fez mais por que era pobre. Sim, pobre demais e mais empobrecido ainda por que compartilhou com os igualmente necessitados tudo o que tinha. Quando faleceu, contudo, quase não é sepultado por falta de quem o levasse à última moradia. Muito diferente aconteceu com o Sr. Jollivet. Ora, um sovina, um rabugento que levou somente a vida a negar. Dinheiro no banco, em ações, em empresas, debaixo do colchão, enterrado pelos cantos, mas jamais ofertou um centavo a qualquer desvalido. Quando bateu as botas, porém, o infame foi cortejado com pomba e galhardia. Deu nome a praça, a rua, a repartição. Um mau caráter, um ignominioso, mas com nome aberto por todo lugar. Ainda bem que alguém pegou tinta e pincel e corajosamente cravou embaixo: Os calhordas estão mortos ainda em vida. Este é apenas um verme.


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quinta-feira, 22 de novembro de 2018

CHARLES, ALINHADOR TAMBÉM DE VIDA



*Rangel Alves da Costa


De vez em quando Charles posta retratos e mensagens reafirmando seu prazer e principalmente o agradecimento pelas vitórias alcançadas em cada passo de sua profissão de alinhador de veículos. Mostra fotos de seu local de trabalho, dos serviços realizados, de mais uma tarefa cumprida.
O que isso significa? Nada mais que a demonstração de que sua luta, sua peleja contínua, está sendo recompensada. Bem assim mesmo, amigo Charles, pois as vitórias surgem assim na dedicação e no prazer pelo que faz. Do outro lado, no ser pessoal e humano de Charles, tem-se também a certeza de uma personalidade honrada e decente, e que já remonta às suas raízes familiares.
Poço-redondense de raiz e flor, sertanejo gestado na luta e tenacidade de seus pais, a verdade é que seu caminho foi sendo construído a partir de tais exemplos. Ora, quem não se recorda de bom grado e prazer na memória do pai de Charles?
Quem não se recorda daquele vaqueiro, daquele carreiro, daquele homem do mato e da cidade, daquele amigo de todos chamado Francisco Xavier Nunes Filho, o saudoso e tão querido Chico de Celina? Pois é, Charles é filho de Chico de Celina, de Chico e Dona Genivalda Bomfim. Batizado como Charles Bomfim Xavier, até os dezesseis anos viveu e conviveu com a terra, com o chão sertanejo e suas lides.
Nos passos do pai, foi vaqueiro, amassador de bicho brabo, amigo do curral, do cheiro do estrume e do rangido da porteira. Mas os tempos tornaram-se difíceis demais. As secas não só castigavam como espantavam pessoas e bichos, as estiagens não só espanavam sonhos como esvoaçavam as esperanças.
Então um dia, chorando mesmo choro do bicho, Charles foi além da porteira da fazenda e seguiu caminho. A cidade o chamava na esperança de outros afazeres. Assim se tornou carpinteiro antes mesmo de completar a maioridade. Mas o filho de Chico e Dona Genivalda queria dar voos maiores, e neste intento rumou a São Paulo.
Foi nestas distâncias que começou a aprimorar e a se firmar no ofício de alinhamento de veículos, na parte mecânica de automóveis. Mas a saudade era grande, o desejo de retornar mais ainda. E foi assim que depois de dez anos ele retornou ao seu berço amado, ao seu sertão.
Trazendo na bagagem todo o seu aprendizado, seu objetivo maior era chegar a Poço Redondo e conseguir o espaço que fosse possível para exercer a profissão e, enfim, poder colocar uma placa dizendo “Charles Alinhamento, Balanceamento, Cambagem e Suspensão”. Ou apenas “Charles Alinhador”.
E conseguiu. Graças a Deus conseguiu. Hoje Charles é um dos profissionais mais requisitados na região sertaneja, prestando serviços com qualidade e garantia. Contudo, importa mesmo revelar a moldura comportamental que o envolve e o caracteriza.
Charles é um persistente trabalhador, é profissional ético e respeitado, mas principalmente um ser humano afável, sempre amigo, acolhedor, digno de carregar sobre si o orgulho de sertanejo e de orgulhar sua terra. Um moço generoso e bom, na mais pura expressão da palavra.
Mas, como dito, também reflexo de suas raízes e de suas extensões familiares, pois também irmão de Gisélia, de Teinha, de Chiquinho, de Evaldo e Dinarte (estes filhos de Chico com Dona Noélia). E meu amigo. E por isso mesmo, abraço-te Charles.


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Lá no meu sertão...


Minha Poço Redondo - 65 anos!





Límpido (Poesia)



Límpido


Sem maquiagem
sem máscara ou disfarces
assim deve ser o amor

sem ilusões ou fantasias
sem ocultos nem escondidos
assim deve ser o amor

para que o coração sorria
e a face alegre e tão pura
possa dizer te amo

para que os braços enlacem
e a boca em doce beijo
possa dizer te amo.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - a mulher que me vem em sonhos



*Rangel Alves da Costa


Tenho uma namorada e toda noite ela vem me visitar em sonhos. Mesmo que eu não queira sonhar, ainda assim ela chega. Creio que me ama de verdade. Basta que eu comece a cochilar e ela chega. Contudo, sempre chega de um jeito diferente. Só o nome não muda: Filozinha. Às vezes chega sorridente. Às vezes chega toda nua. Às vezes chega entristecida. Às vezes falando demais, ou em silêncio, outras vezes. Às vezes me abraça e me beija tanto que eu penso que vou cair da rede. Às vezes vai logo tirando minha cueca para fazer amor. Às vezes nem sei o que faz, pois sinto o prazer. Toda noite assim. E admito que também já estou gostando dela. Eu queria falar, dizer tudo, mas nunca posso. Sempre estou dormindo. E talvez por isso mesmo que fico meio entristecido depois de acordar. Sem namorada, sem nada, na solidão. De vez em quando, já em tempo de chorar, corro pra rede e procuro adormecer. Mas ela nunca completa assim. Apenas ouço sua voz que diz: Vá viver que na noite voltarei!


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quarta-feira, 21 de novembro de 2018

EM BUSCA DE PAZ



*Rangel Alves da Costa


Eu estava em Curralinho. Era um domingo véspera de Carnaval. A povoação ribeirinha ainda estava calma, silenciosa, singela na sua mais profunda feição. Sozinho, saí cedinho de casa e sozinho coloquei os meus pés naquelas paisagens molhadas e de beleza sem igual. Caminhei de lado a outro, procurei asas para seguir ao outro lado, avistei pequenas canoas sonolentas e adormecidas. As águas passavam lentas, mansas, espelhando um azulado brilhoso e ensolarado. Conversei com as águas que chegavam junto a mim, conversei com um velho barco e um animal que se enxugava ao sol depois de ser banhado. Conversei com gente não. Das águas ouvi que não adiante pressa para o que sempre há de seguir seu caminho. Do barco ouvi que a espera não cansa se um tempo melhor há de vir. Do animal ouvi que tantas vezes temos que forçadamente silenciar ante os açoites e os lanhos na alma. O que eu falei, o que eu perguntei? Muito, muito. Falo muito mais em silêncio. Depois desses diálogos, afastei-me de onde havia mais gente e sentei numa mesinha perante as águas. Então calei as palavras do meu silêncio e deixei que meus olhos dialogassem com a natureza. E que diálogo perfeito! De tudo havido, hoje só resta essa fotografia. E a saudade, a saudade, a saudade. E como eu queria estar aí agora. Como eu preciso estar aí agora. Curralinho seria a minha Igreja e sua paz seria uma Bíblia aberta no mais belo dos salmos. E o meu Deus sentaria ao meu lado e sua mão estenderia em minha direção.
Sim, Curralinho é paraíso, é santuário, é mosteiro, é pedestal, é montanha de reflexão. Horas e horas, dias e dias, às suas margens eu ficaria, e unicamente mirando suas águas, seus arredores, sua calma e seu viver. Tanto faz que pessoas passem, que carros cheguem, que buzinas ecoem pelo ar, que músicas afastem o silêncio. Ora, a calma, a paz, o silêncio, o prazer, tudo isso está interiorizado. Eu mesmo navego sem sair do lugar. Eu subo num barco e vou de canto a outro sem sair do lugar. Mergulho, eu tomo banho, permaneço por muito tempo dentro das águas, mesmo sem sair do lugar. Pássaro lá em cima, ora sou eu. Sou a nuvem, sou o sol, sou a montanha, o capim rasteiro, o bicho que passa, a serra adiante, a casinhola perto da curva do rio. E assim por que tudo está no meu desejo e no meu pensamento. E ao lado do rio, às margens do rio, nunca encontro motivo para pensar em outra coisa senão em vida, em bondade, em divindade, em poder da criação. Tudo tão significativo que de repente um pedaço de pau se torna em profunda indagação. A solidão do barco se torna em profunda reflexão. E juro que dificilmente um lugar de cimento e asfalto poderia permitir abrir este livro tão grandioso. E talvez até escrever no espelho das águas:

Leve e lenta que passa
mansidão de água e sua graça
o meu olhar navegante
e uma viagem em rompante
sou eu que também vou
no rio que chama e vai
sou que singro a mansidão
num barco de coração
e sem jamais querer aportar
vou e mais longe vou
até onde o Velho Chico levar.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Bonsucesso, Povoação ribeirinha em Poço Redondo/SE



Menina bonita (Poesia)



Menina bonita


Traquino destino
no coração feminino
que já crendo amar
outro amor foi encontrar
para reescrever a vida
tendo noutros braços guarida

mas venha menina bonita
sequer meu coração acredita
que do nada assim surgido
eu tenha sido um escolhido
para ser chamado de amor
e amá-la como o destino desejou.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - a útil e boa solidão



*Rangel Alves da Costa


Em meio a algazarras, alaridos, buzinas, arrogâncias, nada melhor que a paz do silêncio. Perante a palavra fria, a palavra arrogante, grossa e destemperada, nada melhor que o distanciamento. Ante a brutalidade humana, a violência pela violência e a maldade como rotina, nada melhor que o exílio entre quatro paredes. Então, hora de reconhecer a utilidade e a bondade da solidão. Com efeito, ser solitário não é tão ruim assim. Pelo contrário, pode ser proveitoso, prazeroso, uma forma de cultivar e cativar uma relação de si para si. E na solidão a meditação, a reflexão, o livro aberto, o reencontro, a pessoa em si mesma. E, muitas vezes esquecida de si mesma, a pessoa enfim se reencontrará e sentirá o quanto é importante gostar do seu eu quase sempre ausente.


Escritor
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terça-feira, 20 de novembro de 2018

“ANDO DEVAGAR PORQUE JÁ TIVE PRESSA...”



*Rangel Alves da Costa


Sou o verso da canção. Ou sou a canção inteira em cada verso. E por isso “Ando devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso porque já chorei demais...”. Muito caminhei, muito já segui pela estrada. E também muito aprendi.
E mais aprendi com as pontas de pedras, tocos, espinhos e armadilhas, do que mesmo com as sombras e as flores dos beirais da estrada. Muito mais aprendi com as tempestades e os vendavais, com os furacões e os temporais, do que com as calmarias escondendo indesejadas situações.
Os lobos uivaram pertinho de mim. As serpentes armaram seus peçonhentos botes. As agarras afiadas se lançaram em minha direção. As presas vorazes e famintas se agigantaram sobre mim e sobre os meus sonhos. De repente, do nada surgindo o inesperado aterrorizante e amedrontador. De tudo isso eu me esquivei, eu saí ileso, eu venci.
Mas, podem acreditar, diferente é enfrentar as armadilhas humanas, as falsidades humanas, as covardias humanas, principalmente as traições. Quantas facas e punhais em sorrisos e abraços. Quantas baionetas e mosquetões em cumprimentos e afagos. Quantos facões e fios afiados nas palavras ocultadas na mentira. Uma lástima a selva humana.
Nada mais sórdido e vergonhoso que a selva humana. Pessoas que não se contentam em serem pessoas. Gente que não gosta de ser gente. Sempre preferem ser a bestialidade, a maldade, a aleivosia, a infidelidade, a deslealdade.
Ainda bem que os labirintos podem ser vencidos. Ao caminhar, ao seguir em frente, o destemor vai deixando para trás aqueles que se contentam em nada ser. E nada melhor do que, vencendo o mal, ir seguindo em frente, ir tocando a vida. E, sem pressa, trilhar a estrada-vida como se fosse andando na própria mão.
E enfim poder descansar debaixo de um sombreado. E enfim poder beber água fresca da fonte. E enfim colher a doce fruta do mato para saciar a fome. E enfim deitar sobre a relva tendo na memória um poema de esperança e encorajamento. E também, quem sabe, poder levantar asas.
Sim, levantar asas e voar. Não precisa sair do chão para voar. O homem livre, liberto, andante cheio de si mesmo, sempre tem o poder de levantar voo e ganhar os espaços. Como é bom sonhar, como é bom planejar o melhor para os dias, como é bom abrir janelas e portas e deixar entrar borboletas e passarinhos.
Nem precisarei olhar para trás. Mas ao olhar, sem pretensão de retornar ou sentir saudade do que já não vale a pena viver, apenas dizer que nem tudo foi tão ruim. Da dor e na dor, no sofrimento e na angústia, no dilaceramento e na lágrima caída, um livro se abriu trazendo mil lições. E como aprendi.
Agora mais fortalecido, mais encorajado, mais cheio de planos e sonhos. E levando na mente e no coração a lição da bela canção: “Ando devagar porque já tive pressa, e levo esse sorriso porque já chorei demais... Como um velho boiadeiro levando a boiada, eu vou tocando os dias pela longa estrada, eu vou. Estrada eu sou...”.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Café da Emancipação Política de Poço Redondo



Maria minha (Poesia)



Maria minha


Maria minha
abra a janela agora
e aviste minha saudade
naquele passarinho triste
naquela folha sem alegria
na canção terna da ventania

minha Maria
abracei seu corpo e parti
com olhos molhados segui
para logo voltar e te amar
e atrás ficou o meu sertão
com a flor do meu coração

amo-te minha bela Maria
tanta saudade Maria minha
faça um café e estenda a rede
pois tô com fome e com sede
de um tiquinho de amor e paz
e só você quem me satisfaz.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - estancando de vez a ferida



*Rangel Alves da Costa


Pensei, repensei, decidi. Mas não era nem pra ter pensado, mas decidido logo. Mas decisão tomada foi de estancar de vez a ferida. Ora, não tinha mais nenhum cabimento eu estar me ferindo por conta própria, alimentando chagas, fazendo disseminar as pústulas e as sangrias. Não. Isso acabou. Quem me deve vai me pagar, quem brincou comigo vai receber o troco com juros e correção. Fui bom. Nunca deixei de ajudar. Estendi a mão quando a outra mão me veio em esmola. Tirei da lama quando já parecia sem saída. Ergui, levantei, fiz reviver, dei dignidade. Mas qual o troco recebido, qual o agradecimento. É melhor deixar pra lá. Tenho até vergonha de dizer. Mas agora vai ter. Quem me sangrou não me sangra mais, quem me feriu não me fere mais. E, se quis um outro caminho, que siga até encontrar os espinhos. E nem que chore ou pranteie, nem que me chegue chorando de barriga vazia, nada mais terá. Terá, sim, que lembrar o que fez e sofrer o que eu padeci. Até que desça à escuridão dos que já vivem em terra sem salvação.


Escritor
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segunda-feira, 19 de novembro de 2018

POR ENTRE ESQUINAS E LABIRINTOS



*Rangel Alves da Costa


Manuel Bandeira, em poema de expressividade cruenta, havia suposto a existência de um estranho animal sobre os lixões. “Vi ontem um bicho na imundície do pátio, catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, não examinava nem cheirava: engolia com voracidade. O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem”. Eis o retrato de “O bicho”, tão verdadeiro como voraz, e ainda avistável pelos lixões e por todos os lugares.
“O bicho, meu Deus, era um homem”. Que testemunho tão indigno aos olhos de um ser humano. Mas que presença tão constante e costumeira aos olhos do ser humano. E quantos bichos haverão de estar agora pelos mesmos lixões, pelas ruas insensatas e desumanas, pelas marquises solitárias e perigosas, pelos becos carcomidos de vícios, pelas vielas sangrentas e amedrontadas, pelos barracos disformes e nus. Por entre esquinas e labirintos vive a realidade social mais contundente e mais negada. Todo mundo vê bicho, todo mundo sente a presença do bicho. Mas é bicho, e então se afasta. Mesmo sabendo que não é bicho, mas tão humano quanto o espelho de si mesmo.
Uma selva humana em meio aos homens de bem, assim se imagina. Uns dizem se tratar de feras perigosas. Outros dizem que vivem sempre prontos para o ataque, e por isso mesmo é melhor fugir de suas presenças. Já outros, simplesmente ignoram os uivos, os berros, as ruminações, os olhos famintos e as mãos estendidas. E dizem ainda: nem todos são iguais, e por isso tais diferenças que não nos cabe resolver. E seguem adiante, com olhos atentos, amedrontados, temendo sempre serem alcançados por uma diminuta ferocidade: um menino magro e quase nu que pede esmola. Que tempos, que mundo!
Eu também todos os dias vejo bichos na imundície do pátio, catando comida entre os detritos. Meu olhar não pode fugir aos bichos que se estendem adormecidos por cima de bancos de praças, debaixo de marquises, em meio às calçadas, num canto qualquer. E creio que todo aquele que não finja enxergar, certamente também avista a selva humana que está pelos becos, pelas ruas, pelos escondidos da cidade. E também dentro daquilo que se tem como lar. Barracos caindo, moradias de papelão e madeira, quatro paredes frágeis com uma tosca cobertura por cima. E a fome grassando, a carência doendo dentro de cada um, a ausência de prato, a inexistência de comida.
Não há como negar que realidades assim estão por todos os lugares, nas grandes e pequenas cidades. A noção de bicho está exatamente no espanto causado ante o avistamento dessa realidade. Tem-se que não é da normalidade humana viver catando restos e detritos para se alimentar. Tem-se que foge ao comum entendimento que seres humanos ainda se submetam a restos putrefatos das bolsas de lixo colocados em calçadas. Muitos ainda imaginam que mesmo tendo pouco no seu dia a dia, as pessoas não digerem as podridões que encontram pelas ruas.
Tudo uma questão de sobrevivência. Verdade que o bicho do mato se alimenta bem melhor que o homem. As aves carnicentas se alimentam de restos podres por disposição digestiva. Predadores se alimentam de outros animais por que necessitam sobreviver. Em épocas de seca ou de falta de alimentos, sempre reinventam seus alimentos. Contudo, negam aquilo que não desejam, ainda que estejam famintos. Mas com o homem não acontece assim. O homem não tem a palma pinicada em cesto no lugar da pastagem verdejante. O homem não tem o caroço mastigável quando lhe falta o broto. Com o homem é diferente. Ou tem ou não tem.
Qual a escolha a ser feita quando não há mais comida? O que se deve fazer quanto não resta mais tostão nem vintém para comprar tiquinho disso ou daquilo? Qual atitude tomar perante o choro dos filhos e o passar das horas sem qualquer esperança de alimento? Situações dilacerantes para um ser humano suportar. Por perto e pelas distâncias, quantos fogões sem panela, quantas panelas sem alimento, quantos pratos vazios, quantos pais desesperados ante o pedido dos filhos? O que fazer, então? Mendigar, pedir, implorar, catar, animalizar-se. E logo perante uma sociedade que teme o bicho.
Mas não só pela falta de alimento padece a pobreza ou a indigência. A selva social vive repleta de bichos cheios de dores. A penúria é imensa e dolorosa, mas outras angústias também tomam conta desse perverso tempo. Os miseráveis das drogas e outros vícios, os que tiveram as portas fechadas e passaram a ter o desalento como lar, os que padecem como inúteis e discriminados nos corredores dos hospitais, os que desacreditaram na vida e vivem no pêndulo da mesma vida. E quanto abandono de pais pelos filhos. E quanto dói sentir a sociedade cada vez mais desumanizada pelos egoísmos e acumulações materiais. E para nada.
Agora mesmo eu vi um bicho. Ora, quanta insensibilidade no meu olhar e quanta frieza na minha atitude. Pediu e dei-lhe um copo d’água. Com o cuidado para que minha mão tão limpa não se aproximasse muito da dele. Ele poderia morder.


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