*Rangel Alves da Costa
Eu estava
em Curralinho. Era um domingo véspera de Carnaval. A povoação ribeirinha ainda
estava calma, silenciosa, singela na sua mais profunda feição. Sozinho, saí
cedinho de casa e sozinho coloquei os meus pés naquelas paisagens molhadas e de
beleza sem igual. Caminhei de lado a outro, procurei asas para seguir ao outro
lado, avistei pequenas canoas sonolentas e adormecidas. As águas passavam
lentas, mansas, espelhando um azulado brilhoso e ensolarado. Conversei com as
águas que chegavam junto a mim, conversei com um velho barco e um animal que se
enxugava ao sol depois de ser banhado. Conversei com gente não. Das águas ouvi
que não adiante pressa para o que sempre há de seguir seu caminho. Do barco
ouvi que a espera não cansa se um tempo melhor há de vir. Do animal ouvi que
tantas vezes temos que forçadamente silenciar ante os açoites e os lanhos na
alma. O que eu falei, o que eu perguntei? Muito, muito. Falo muito mais em
silêncio. Depois desses diálogos, afastei-me de onde havia mais gente e sentei
numa mesinha perante as águas. Então calei as palavras do meu silêncio e deixei
que meus olhos dialogassem com a natureza. E que diálogo perfeito! De tudo
havido, hoje só resta essa fotografia. E a saudade, a saudade, a saudade. E
como eu queria estar aí agora. Como eu preciso estar aí agora. Curralinho seria
a minha Igreja e sua paz seria uma Bíblia aberta no mais belo dos salmos. E o
meu Deus sentaria ao meu lado e sua mão estenderia em minha direção.
Sim,
Curralinho é paraíso, é santuário, é mosteiro, é pedestal, é montanha de
reflexão. Horas e horas, dias e dias, às suas margens eu ficaria, e unicamente
mirando suas águas, seus arredores, sua calma e seu viver. Tanto faz que
pessoas passem, que carros cheguem, que buzinas ecoem pelo ar, que músicas
afastem o silêncio. Ora, a calma, a paz, o silêncio, o prazer, tudo isso está
interiorizado. Eu mesmo navego sem sair do lugar. Eu subo num barco e vou de
canto a outro sem sair do lugar. Mergulho, eu tomo banho, permaneço por muito
tempo dentro das águas, mesmo sem sair do lugar. Pássaro lá em cima, ora sou
eu. Sou a nuvem, sou o sol, sou a montanha, o capim rasteiro, o bicho que
passa, a serra adiante, a casinhola perto da curva do rio. E assim por que tudo
está no meu desejo e no meu pensamento. E ao lado do rio, às margens do rio,
nunca encontro motivo para pensar em outra coisa senão em vida, em bondade, em
divindade, em poder da criação. Tudo tão significativo que de repente um pedaço
de pau se torna em profunda indagação. A solidão do barco se torna em profunda
reflexão. E juro que dificilmente um lugar de cimento e asfalto poderia
permitir abrir este livro tão grandioso. E talvez até escrever no espelho das
águas:
Leve e
lenta que passa
mansidão
de água e sua graça
o meu
olhar navegante
e uma
viagem em rompante
sou eu que
também vou
no rio que
chama e vai
sou que
singro a mansidão
num barco
de coração
e sem
jamais querer aportar
vou e mais
longe vou
até onde o
Velho Chico levar.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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