*Rangel Alves da Costa
Quanta
memória boa rebusco agora. Vejo-me caminhando em direção à cozinha da casa e,
um pouco mais adiante, à porta troncha que dá passagem ao quintal.
Já não
avisto nem minha avó nem sua avó. Minha bisavó subiu aos céus encantada de
tempo. Agora só restam as cozinhas e os quintais nas lembranças.
Na
cozinha, de barro batido ou na taipa mal-acabada, o fogão de barro tomando um
canto inteiro. No barro estendido, blocos ou tijolos sustentando a grelha.
Boca de
fogão aberta, faminta, querendo muita lenha e muito mais carvão. A madeira
queimando vai se contorcendo como de dor de partida, e para logo virar brasa e
carvão.
Por cima
da grelha ou apenas dos blocos, sentindo a labareda e a fúria ardente do fogo
em chamas, a panela de barro, a chaleira antiga, o tacho para fazer doces.
Depois de
tudo cozido, preparado, fervido, as cinzas juntadas para serem recolhidas. Mais
ao lado, no outro canto, uma trempe com pote em cima.
Pote
pequeno, mas de boca graúda, sempre com água suficiente para que a caneca não
se afundasse tanto. Abaixo, no fundo do pote, uma rodilha sempre molhada.
E também
um pano todo branquinho para tampar a boca. Quando o pote fica suado, ou a
rodilha para reter a água ou a lama vai se formar mais abaixo.
Um pouco
acima do pote, penduradas na parede em pequenas forquilhas, três ou quatro
canecas d’água, todas de alumínio e sempre brilhosas de tanto serem arejadas.
Ao centro,
uma pequena mesa de madeira velha tendo por riba um jarro com flores de
plástico. Não há casinha de antigamente onde não houvesse um jarro com flores
mortas.
Flores de
cinzas, acinzentadas, quase sem cor, mas tão cheias de vida naquele viver
humilde. Endurecidas de tempo, quebradiças dos anos, mas sempre ali.
Um
alguidar em cima de uma banquinha, uma fruteira por riba do guarda-comida de
pouco uso. Já envelhecido demais, mas sempre bonito na sua madeira de lei.
Mas o
guardado lá dentro é de valor sem igual: um jogo de porcelana herança familiar.
Tudo sempre assim, tudo sempre no seu lugar.
De vez em
quando um cheiro de café torrado, um aroma gorduroso de tripa assada, um
perfume especial de cuscuz de milho ralado.
Saindo
desse velho e primoroso ambiente, logo adiante o quintal. Que saudade daqueles
tempos dos quintais, daqueles cercados com árvores frutíferas e galinhas
ciscando ao redor.
Onde estão
os quintais, os belos quintais com seus cantos de plantas medicinais, do boldo,
do manjericão, do mastruz, da raiz curativa pra qualquer doença?
Quintais
de poleiros, de mamoeiros e cajueiros, de varais e de tanques de lavar roupa.
Quintais de tronco largo para sentar, de tamborete para fumar o cigarrinho de
palha, de purrão para juntar água de chuva.
Quintais
de pontas de vacas e de meninos brincando de fazendeiro. Não. Não existem mais
os quintais. Mas ainda assim eu vou além da porta da cozinha só para imaginar
outros tempos.
Quintais
de molduras de saudades, de instantes para os reencontros com o passado. É no
quintal que o radinho de pilha é ligado e onde o olhar vagueia em inesquecíveis
imagens. O vento sopra e vai secando uma lágrima descida num canto do olho.
Quintais
que iam avançando e de repente já davam na mata, nas catingueiras, nas
umburanas e aroeiras. Um bicho corre e de repente já está no quintal, querendo
entrar na cozinha. Então o cabo de vassoura é levantado para espantar a
aparição repentina.
Quantas
lágrimas são derramadas por cima das roupas sendo lavadas e enxaguadas nos
tanques velhos dos velhos quintais. E também quantos soluços são exalados
perante as roupas estendidas nos varais, com seus braços abertos querendo voar.
Ali está
uma mulher estendendo a roupa e cantarolando uma velha canção: “Tardes
sertanejas que se vão, logo chamam as luas do sertão. E eu aqui tão triste, ai
como dói meu coração...”. Será minha mãe? Será sua mãe? Não sei. Não sei. Só
sei que dá saudade. Eu sei.
Os
quintais já não existem mais. Mesmo nas cidadezinhas interioranas, poucos são
os quintais que ainda podem ser encontrados. As velhas cercas foram
substituídas por muros, o chão das plantas e dos bichos foi transudado em
cimento frio.
Abrir a
porta da cozinha e seguir mais além já não causa sensação prazerosa alguma. Não
há o canto de um passarinho, não há uma fruta caída, não há ovo de galinha a
ser recolhido. Também não há mais a plantinha curativa no canto nem o velho
tamborete.
E da porta
da frente em diante apenas o asfalto, a buzina, a azucrinação do dia. Um viver
que é vida, mas não é tão viver na vida.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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