SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 30 de abril de 2011

RETRATO DE FAMÍLIA (Crônica)

RETRATO DE FAMÍLIA

Rangel Alves da Costa*


Casa que se preze guarda em cima de qualquer móvel o retrato da família. Quando não cabe tudo num só porta-retrato, as fotografias vão sendo espalhadas em molduras próprias, numa o casal, noutra os filhos ou com outras arrumações.
O tempo vai passando e aqueles rostos com a jovialidade de um dia, simplesmente vão deixando aos espelhos que os recobre a dolorosa tarefa de mostrar o envelhecimento nos tons amarelecidos que vão surgindo. As cores turvas nos espelhos são as rugas que vão se formando lá dentro, ainda que a feição seja a mesma na fotografia.
Hoje os cabelos estão embranquecendo, mas nem parece aquele penteado vistoso do retrato; no sorriso que parecia tão espontâneo e tão bonito, hoje a sisudez do entristecimento; do olhar que parecia querer saltar de vivacidade resta apenas uma sensação de vazio sem brilho e que de vez em quando vai se molhando em gotas pelos cantos.
Ah, essas molduras antigas, envernizadas, parecendo trabalhadas à mão, quanta solidão te guardam. O ontem ali, na quietude silenciosa dos dias, se falasse, se avistasse o hoje, e como espelho se mirasse, ai também quanta agonia.
Estava no meu silêncio, na minha saudade, na minha vontade de reviver passos do passado e de repente, como sempre faço, o meu olhar repousa e os encontram novamente. Não os que avistei ainda hoje, conversei ainda ontem, tenho convivido sempre, mas aqueles que são os mesmos e que são outros.
São outros porque eu apreciava muito mais dos aspectos como eles eram na fotografia, no porta-retrato, na lembrança. Talvez num tempo de possível paz, havia certeza de ter uma família, ter o imenso prazo dessa linhagem familiar, desde o mais mocinho à ponta mais alta na árvore da ascendência.
Meus avôs, meus pais, meus irmãos e eu, tudo cabendo na sala-de-estar, todos nós com as faces de então, com as idades de então, espalhados pelos móveis, sempre à vista do olhar que os reencontrava para depois perguntar por que mudamos tanto, nos transformamos tanto. Por que somos ainda e não somos mais?...
Muitas vezes aproximei o porta-retrato do meu olhar e quis enxergar bem de perto aquele sorriso de menino que o tempo me tomou sem pedir licença. Depois sigo em direção ao espelho e, ainda com a fotografia na mão, tento sorrir o mesmo sorriso, imitar aquele gesto de um dia. E descubro que não somente o sorriso sumiu, mas que também sou apenas a cópia daquilo que os dias permitem me revelar.
Porém, o que mais me doi não é a vida que distorce o retrato, não é a mudança imposta em cada fotografia, não é o tornar tão diferente daquilo que fomos um dia. As pessoas crescem, envelhecem, mudam mesmo, e não seria possível desejar que o retrato de ontem refletisse a imagem de hoje. Não, isso não.
O que realmente doi, e faz doer muito - ainda que os outros digam que a vida é assim mesmo e que temos de acostumar – é a fotografia que parece também morrer com a pessoa que já não está entre a gente. Numa relação dolorosa, o retrato do ente querido cada vez mais também vai precisando de uma vela para ser enxergado.
Isso doi, e doi muito, mas não poderia ser diferente. Se não bastasse a dor incontida da perda, da lembrança que sempre traz aquela imagem querida à memória, temos que viver por muito tempo ainda nos despedindo para, enfim, talvez aceitar essa trama do destino. E a fotografia entende essa nossa angústia, esse tamanho sofrimento, e também vai tramando um lento distanciamento que é para o nosso bem.
Se eu olhasse para o porta-retrato agora encontraria nove sorrisos alegres, jovens, saudáveis, meninos. Reencontraria minha mãe sorrindo como ela lindamente sorria. Mas por que olhar agora, se é noite e a saudade dela já me basta nessa eterna aflição?



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Pássara (Poesia)

Pássara



Pássaro, passarinho
pássaro feminino
pasariforme
passarinha
pássara
ave canora
nome tão estranho
de tão belo voo
porque não voa
não tem penas
não tem bico
não faz revoada
porque você
você pássara
passarinha
ave tão minha
que passa
que encanta
que canta
mas só sobe no ar
quando o ninho
está feito
e vamos amar.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - Penúltimo (Conto)

DESCONHECIDOS – Penúltimo

Rangel Alves da Costa*


Completamente insana, mas não menos assustada com o pássaro preto que fazia rasantes sobre sua cabeça, Sofie começou a gritar que não levasse seu filho não, e repetindo sempre o mesmo temor, ao invés de entrar para a igreja, como esperava o completamente atordoado coronel, correu em direção ao precipício e num passo desprendeu-se do seu brinquedo e desapareceu.
O coronel, percebendo que não havia nada a fazer para salvá-la, apenas procurou proteger-se da ave que nervosamente rondava o local e estava prestes a entrar porta adentro, ordenando que esta fosse imediatamente fechada. Caminhou agitado, ansioso, embrutecido, perante os seus prisioneiros e, sem olhar para qualquer um, gritou mandando que soltassem as mãos do velho padre. Este teria que imediatamente dar início aos preparativos para a celebração da missa.
O velho homem da igreja, enfraquecido, cansado, com os braços doloridos após tanto tempo sendo mantidos amarrados, quando foi liberado praticamente não sabia nem o que fazer. Lembrou que sua maleta com objetos e vestimentas apropriadas para a celebração haviam ficado na casa e, até amedrontado por ter de fazer isso, pediu para ir lá vestir os paramentos e trazer os outros objetos necessários.
Esperava ser açoitado por ter feito tal pedido, mas se surpreendeu ao obter tal permissão, ainda que acompanhado e sob a dureza de outras recomendações. Assim, ainda sem se voltar um só instante para os pescadores, os rapazinhos e as moças ali mantidas em vigilância absoluta e ainda com as mãos amarradas, o coronel levou o padre até a porta e ficou meio escondido do lado de dentro por medo do pássaro, aguardando apenas o seu rápido retorno.
Quando o velho e arrependido homem da igreja entrou na casa e seguiu até o quarto, empurrando a porta para colocar os paramentos, foi surpreendido por alguém que avançou sobre suas costas, tapou-lhe a boca com a mão e em seguida, após mostrar o rosto, colocou o dedo diante dos lábios pedindo silêncio. Feito isso, indicou a janela entreaberta, mostrando que se ele quisesse fugir teria de ser por ali.
Perplexo diante de tal situação, completamente tomado de pavor quando pôde olhar no rosto de quem havia lhe atacado, ainda que tentasse gritar nenhum som sairia diante de tão medonha ocasião. Os olhos do padre não acreditavam no que viam, sendo dominado por um homem esquisito, com cabelos desgrenhados, maltrapilho, aspecto de louco, porém de bom tratamento. Era o profeta Aristeu.
Sempre rondando a casa, fazendo de tudo para não ser avistado, Aristeu não só viu quando Pureza foi levada para o quartinho dos fundos, como quando o velho padre desceu da igreja para se dirigir até ali. Atento a tudo, agindo estrategicamente e sabendo as consequencias do que estava fazendo, não só libertou a pescadora dos encantados como livrou o padre da sanha do maldito homem, para em seguida tomar o lugar do religioso.
Assim, após a fuga do padre pulando a janela, abriu sua maleta e percebeu que ali tinha tudo que tanto precisava. Uma batina escura, objetos próprios para o culto e outros panos que compunham o hábito. Contentou-se com a batina e teve uma genial ideia, utilizar um daqueles panos numa espécie de capuz, impedindo que o seu rosto fosse rapidamente reconhecido. Ademais, só precisaria se ocultar daquela forma até entrar na igreja.
O profeta ficou um perfeito sacerdote, ainda que aquele capuz lhe desse uma aparência medieval. Sempre de cabeça baixa, saiu do quarto e seguiu em direção às escadarias que levavam à igrejinha. Está chegando a hora, dizia a si mesmo. E pelo ar o pássaro preto agitava-se, subindo e descendo, fazendo volteios infindos ao redor do templo, como se procurasse qualquer brecha para entrar.
Ao chegar à entrada, sempre vagarosamente à moda dos celebrantes, baixou ainda mais a cabeça diante do coronel que acenava do lado de dentro para que se apressasse, para que entrasse logo para ter início a celebração.
O profeta estilizado até nos trejeitos, caminhava seguindo o coronel, com uma mão carregando a maleta e outra fazendo o sinal da cruz de um lado para o outro, em direção ao pequeno altar. Porém, já chegando à altura do pequeno púlpito, lugar onde as escrituras sagradas são lidas, se assegurou que o sinistro homem não percebia e virou um pouco o corpo, levantou o capuz e deixou ser reconhecido pelos pescadores.
Surpresa e espanto geral, num misto de bocas repentinamente abertas e murmúrios de “ooohs!!!” em uníssonos sons, ressonando pelo ambiente fechado e chamando a atenção do coronel, que se virou rapidamente para ver o que era. Mas tudo voltou à normalidade no instante seguinte, de modo que o profeta não havia se denunciado.
Ao se voltar para ver de onde saíam aqueles sons característicos da visão de algo surpreendente, Demundo Apogeu intuiu que seus olhos estavam vendo muito menos do que deveriam enxergar. Pela rápida passada de olhar perante o grupo de prisioneiros, não percebeu a presença nem do maluco linguarudo, como ele chamava Aristeu, mas principalmente de Soniele. Virou-se novamente e confirmou a suspeita. Os dois realmente não estavam ali.
E nesse momento um grito horrendo irrompeu e se alastrou: “Onde estão aqueles dois? Tragam aqueles malditos até aqui agora mesmo!”. E no mesmo instante prometeu triplicar o pagamento do chefe dos capangas se trouxesse Soniele e o profeta antes mesmo da missa acabar.
E disse ainda que aquilo era uma questão de vida ou de morte, devendo a todo custo arrastar eles de onde estivessem. E apressou o capanga dizendo que se não cumprisse sua ordem poderia comprar passagem para o outro mundo, pois o mataria ainda naquele mesmo dia. Sem ter opção, até mesmo com medo de se tornar vítima da sanha assassina do homem, o pistoleiro arregimentou apressadamente dois homens e subiram num barco em direção à vila dos pescadores.
Assim que deu a ordem ao capanga o coronel voltou-se para aquele que pensava ser o padre e mandou que começasse a celebração. Sempre de cabeça baixa, o profeta deu início ao ato com estas palavras:
“Meus irmãos de dor e sofrimento, neste momento Deus mais fortemente nos abraça para proteger contra a fúria, a mentira, a barbaridade, o engodo, a vileza, a crueldade e o instinto assassino desse homem amaldiçoado que está aqui. E este tão infame homem, pecador por natureza e cruel mentiroso por desejo próprio, não é outro senão Demundo Apogeu, maldito coronel da mentira...”.
Estupefato, como que paralisado diante de tais palavras, o coronel quis imediatamente reagir, mas as forças não lhe atendiam. E teve que continuar ouvindo:
“Assassino, cruel, mentiroso é o que ele é. Sempre viveu da mentira e com esse dom dos imprestáveis roubou a felicidade de muitos. Talvez vocês não saibam, mas este homem da mais pura infâmia tem uma filha que mandou para prostituição porque a pobre coitada da mãe dela não foi capaz de ter um filho homem. Como a esposa dele, desse falso coronel, não podia ter filhos, ele jurou arranjar um filho homem para presenteá-la e engravidou uma mocinha chamada Custódia. Por não ter nascido filho homem, pegou a menina e entregou a uma dona de cabaré chamada Sofie, criando-a para servir de puta, como realmente aconteceu. E o nome dessa puta é Soniele, filha do coronel...”.
“Atirem, atirem, matem esse falso padre!”, implorou o coronel, quase sem palavras, tomado de uma dor indescritível. Contudo, misteriosamente não foi atendido pelos capangas. E uma outra voz se fez ouvir, dessa vez a do menino Carlinhos:
“Na verdade, a dona do cabaré, que era Sofie, ficou com a menina e deu ao coronel um filho que havia parido, de uma relação com um dos freqüentadores da casa, pedindo que o coronel espalhasse que o menino era filho deles. Assim, Gegeu nunca foi filho do coronel, mas sim a menina Sofie. Os dois não tinham nenhum parentesco, não era nada um do outro, a não ser uma paixão que nasceu e que nunca pôde trazer felicidade porque Sofie sempre disse a Soniele que se afastasse de Gegeu porque eles eram irmãos. E foi por isso que ela sempre evitou o rapaz, fazendo com que ele sofresse mais e mais e até chegasse o dia de cometer o suicídio. A coitada da mocinha foi descobrindo tudo e hoje vive se culpando por não ter correspondido ao amor de quem também tanto amava. E tudo por causa desses dois, que são culpados pela morte do rapaz e agora querem dar o mesmo fim a ela. E é por isso que ele quer Soniele aqui, para matá-la e tentar apagar de vez o erro cometido...”
E o profeta voltou a falar: “Mas não somente isto, pois ele quer Soniele aqui também para pedir perdão. E assim que ela o perdoar, uma maldição que existe nele vai retomar suas forças e depois quem matará a mocinha não será mais o mesmo, mas o pássaro preto de bico assassino que vai sair do seu corpo e atacar. Mas ele não conseguirá, pois o pássaro já vive em outra pessoa, uma pescadora que vocês conhecem, chamada Pureza, cujo último ato de maldade será contra o próprio amaldiçoado”.
E de repente, surgindo de uma brecha qualquer, o pássaro deu um voo certeiro em direção ao coronel e este caiu estendido com o peito sangrando.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

sexta-feira, 29 de abril de 2011

AINDA SE VIER NOITE TRAIÇOEIRA...

AINDA SE VIER NOITE TRAIÇOEIRA...

Rangel Alves da Costa*


Mesmo escurecida e misteriosa, a noite é tão encantadora que se torna difícil imaginar que nas suas horas o mundo, de repente, se desfaz em pranto. Muitas vezes por um gesto, um fato, um sinal do tempo e da vida.
Tudo é tão silencioso lá fora, a lua apenas ilumina, a janela está aberta e é possível ouvir os sons das folhagens dançando ao vento pelo jardim. Se não houver jardim, tudo vem na imaginação e dança o mesmo bailado, murmura a mesma felicidade, porque a noite permite esse viajar.
Hoje não quero um copo de uísque nem de vinho. Na penumbra da luz apagada e com a luz da vela iluminando somente o que quero enxergar, prefiro muito mais um cálice de saudade, uma dose de lembrança, um trago de bem-querer.
Amo esses momentos porque me permitem embriagar de tanta coisa bonita acontecida e contentar-me em pagar a conta ainda que pelos instantes de dor e sofrimento que surgem. É o amargo sabor da dose que temos de beber na sobrevivência. É sempre assim, na festa onde se finge a felicidade.
Apagar a vela e acender a luz não me faz enxergar nada a mais se meu coração de quietude começa a bater mais forte lembrando-se de tantas coisas de todas as noites de noites assim.
Primeiro ele se pergunta por que quase toda dor e sofrimento, se não surgem na noite, com certeza é nela que retomam sua experiência de reabrir feridas e fazer gritar o olhar que mira a fotografia, o sentimento que revive alguém, o corpo que reencontra sua solidão.
Prefiro sempre o silêncio das lembranças e recordações, os momentos de remexer baús e memória, do que a tristeza anunciada, a angústia visitante, o desespero repentino. Mas não tem jeito se não podemos dizer que o mundo e os outros se esqueçam da gente por um instante.
Nem esquecem nem nos deixam esquecer, pois o fatídico e doloroso sempre nos chega bem antes que a privação realmente ocorra, que a dor se expresse naquilo que a gente gosta ou ama, que a notícia nos chegue desesperada e desesperadora.
Ora, mas bastaria essa angústia rotineira, essa amargura tão conhecida e sempre presente nas noites assim tão noites. Mas não, há sempre um telefone que toca, uma campainha que alerta, um vizinho que grita, um pressentimento ruim.
Nada pior e mais angustiante do que o pressentimento que nos invade de todas as formas para nos dizer que tomemos mais um copo de água para encher a fonte perversa dos olhos. E que não adianta mudar nada, não adianta querer mudar o destino, não adianta pensar que as coisas sejam diferentes.
E nesses momentos aumenta a fé, cresce a fé em Deus, há o apego maior à força da fé e começamos a acreditar que na prece ou na oração aqueles pensamentos ruins passarão como o próprio vento. É muito difícil que nessas horas as pessoas lembrem que tudo na vida é desígnio de Deus, ainda que a dor pareça ser insuportável.
E de repente a pessoa já está chorando. Bem antes que tudo se confirme a pessoa já está chorando, pois são muitos e imensos os mistérios que nos chegam nessas noites traiçoeiras. E somente Deus para nos fortalecer para estes e os próximos embates.
E com razão diz a bela canção:

“Deus está aqui neste momento
Sua presença é real em meu viver
Entregue sua vida e seus problemas
Fale com Deus, Ele vai ajudar você.

Deus te trouxe aqui
Para aliviar o teu sofrimento
É Ele o autor da Fé
Do princípio ao fim
De todos os seus momentos.

E ainda se vier noites traiçoeiras
Se a cruz pesada for, Cristo estará contigo
O mundo pode até fazer você chorar
Mas Deus te quer sorrindo.

Seja qual for o seu problema
Fale com Deus, Ele vai ajudar você
Após a dor vem a alegria
Pois Deus é amor e não te deixará sofrer.

Deus te trouxe aqui
Para aliviar o seu sofrimento
É Ele o autor da Fé
Do princípio ao fim
De todos os seus momentos.

E ainda se vier noites traiçoeiras
Se a cruz pesada for, Cristo estará contigo
O mundo pode até fazer você chorar
Mas Deus te quer sorrindo”.

Talvez um sorriso amanhã, depois dessas dores das noites traiçoeiras.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Num dia qualquer (Poesia)

Num dia qualquer



Ainda não te olhei
porque ainda não sei enxergar
ainda não te encontrei
poque ainda não sei caminhar
ainda não te procurei
porque ainda não tenho estrada
ainda não te toquei
porque as mãos ficaram no corpo
ainda não te abracei
porque o corpo ficou esquecido
ainda não te beijei
porque o meu lábio sumiu
ainda não me apaixonei
porque a paixão nasce do amor
e não sei o que é amor nem amar
mas um dia qualquer
em qualquer dia qualquer
você passará diante de mim
e me tornarei existente na vida
e na vida o mais feliz e amado
nesse destino de tê-la ao meu lado.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 98 (Conto)

DESCONHECIDOS – 98

Rangel Alves da Costa*


Pureza fez um bom blefe, havia trapaceado. Impôs características de quase morte ao coronel para ver se este caía no seu intento. O homem estava debilitado mesmo, mas do corpo completamente tomado pelo ódio, e não porque a compleição física estivesse assim se deteriorando de um momento para outro. Agora que ele havia mordido a isca, só restava prosseguir no seu objetivo, de modo a que o velho tubarão caísse de vez na armadilha.
Então a pescadora respondeu: “O pássaro da maldição não vai entrar completamente no seu corpo se a sua mente, que seria a guia para fazer o que quiser com a maldita ave, está dividida entre o seu presente e o seu passado. Se o coronel quiser se livrar do passado que tanta aflição lhe traz, então vai ter que tentar reparar os erros cometidos. Como não se pode voltar no tempo e refazer as coisas de um modo diferente, então só cabe dizer a verdade e pedir perdão”.
Nesse momento o coronel deu um chute numa banquinha que ela foi se estraçalhar na parede. “Perdão, perdão, essa palavra não existe saindo da minha boca, mas apenas entrando nos meus ouvidos. Não cometi nenhum erro assim tão grave que tenha de pedir perdão a quem quer que seja. Essa desgraça do passado morreu, como vai morrer essa desgraça que veio do passado chamada Soniele”.
E completou, arremessando outro objeto na parede: “Prendam essa mulher no quartinho dos fundos e tranquem a porta bem trancada. Quando der fome e sede ela vai mandar me chamar para trazer de volta esse pássaro que me pertence, ainda que por maldição”.
Perguntou onde andava sua cúmplice Sofie e foi informado que ela estava trancada no quarto cantando umas cantigas pra menino dormir e não queria sair de jeito nenhum. Coisa mais esquisita, achou o coronel. Não quis incomodar a mulher e saiu de casa em direção à subida na rocha que levava à igrejinha.
Precisava passar o olho naqueles prisioneiros e ele mesmo ter a certeza que a maldita da Soniele estava lá toda mansinha e fragilizada. Do mesmo modo ia puxar o linguarudo do maluco pelo braço e entregá-lo a um dos capangas, presenteando-o para que este mesmo escolhesse a melhor forma de matá-lo.
Já era começo da tarde, e do outro lado do rio, na vila dos pescadores, Soniele fazia repetidas preces e orações. Com o peito tomado de aflição, a cada instante chorava e temia pelo destino dos seus amigos. No seu pensamento o martírio de como encontrar um jeito de atravessar para o outro lado. Tinha que fazer isso logo, sob pena de a noite chegar e não conseguir se apresentar de surpresa para desmascarar o infame casal diante de todos.
Contudo, sempre ao lado do retrato de Gegeu, cada vez mais se sentia entristecida por não ter correspondido o seu imenso amor. Para satisfazer os outros, mentiu pra si mesma e para o mundo, deu de si e perdeu parte do coração, daquilo que era verdadeira paixão. E naqueles momentos de angústia e desespero sentia cada vez mais a presença dele, como se realmente estivesse ao seu lado, querendo tocar, querendo falar.
E estava mesmo. O falecido Gegeu estava ali. O prazo que lhe fora dado para viver um pouco mais daquele amor que não pôde usufruir em vida estava se esgotando, e a cada momento chegavam dois anjos, um de asas de sublime alvura e outro em tons enegrecidos, para lembrar que as portas já estavam prestes a se fechar. E isso lhe causava enorme tristeza, uma agonia infinda de ter de partir de vez e deixá-la ali sem que os problemas dela estivessem resolvidos.
Então, num momento maior de desespero ele decidiu contrapor-se às ordens superiores e firmou decisão de que somente se desprenderia de vez das forças que ainda o uniam ao mundo dos vivos se levasse sua amada consigo. Assim, sem saber, Soniele estava fadada a morrer para satisfazer seu amado.
Mais distante dali, subindo lentamente os degraus, o coronel também estava decidido a acabar com aquele tormento todo antes que a lua brilhasse no seu ponto máximo no céu. Sabia que se passasse desse momento as forças e os poderes misteriosos já teriam sido atingidos pela espada de São Jorge. Daí em diante somente no outro dia para que o seu outro ser, o novo e muito mais poderoso coronel, começasse a se espalhar pelo ar e ser reconhecido e aceito pelos enigmas que interferem na vida dos mortais.
Faria tudo para que Pureza, então sua prisioneira, derramasse sobre sua cabeça um simbólico pingo de sangue do pássaro preto e então traria para si, a um só tempo, a plenitude de sua força física e a força da maldição contida na ave. Então bastava que o seu pensamento guiasse o voo da ave maldita rumo ao que quisesse imediatamente destruir.
E quando isso fosse conseguido, dali há instantes, após a celebração da missa e do reencontro da ave com seu amaldiçoado ninho, poderia fazer tudo, estaria em condições de fazer a revelação que quisesse. Ninguém poderia mais ao menos dizer que tinha agido certo ou errado. Qualquer desgosto que lhe fosse causado e a ave levantaria voo com os olhos vermelhos, o bico afiado, sedento.
E se perguntassem ao coronel porque a missa seria tão importante diante de seus nefastos planos, certamente não encontrariam resposta. Mas a verdade é que através da presença da igreja as forças reinantes no lado obscuro da montanha seriam combatidas com a intervenção divina presente no templo, extirpado aquele ar impuro e infecto, afastada a ameaça de mais tarde um mal rebelar-se contra outro mal, e então, proclamando falsamente diante de todos o seu lado de benignidade e reverência religiosa, ele estaria livre para implantar o reinado que tanto desejava: da submissão de todos pela força da sua maldição.
Assim, completamente tomado por ideias de crueldade e perversidade, ele se pôs diante do cruzeiro e deixou que a sombra da cruz ali erguida se estendesse sobre o seu corpo, depois abriu os braços e se sentiu a própria extensão da divindade. Não viu, contudo, que deixou aquele lugar sem que pudesse fazer mais qualquer tipo de sombra e que o sombreado formado pela cruz agora se estendia pelas encostas, pelas águas do rio, pela vila dos pescadores e mais adiante e infinitamente.
Parou diante da porta fechada da igreja, sempre guarnecida por vigilância, e gritou para que trouxessem a prisioneira Pureza e avisassem à companheira Sofie que se apresasse, pois o momento tão esperado começaria dali há instantes. Sempre apontando para o lado onde a montanha descia em verdadeiro precipício, no mesmo local em que o Padre Climério havia se jogado, deu algumas ordens ao chefe do capanga e depois mandou que ele mesmo fosse apressar o que havia ordenado.
Todo contente, com postura imponente à entrada do templo, não demorou muito e mandou que aquela porta principal fosse aberta. Já ia entrando quando ouviu um grito vindo lá de baixo, da casa: “Coronel, a prisioneira fugiu!”, berrou o chefe dos capangas. Atordoado com a notícia, entrou em estado de desespero quando viu o pássaro preto voando ao redor da montanha e se aproximar do cruzeiro.
Entrou apressadamente puxando um dos capangas pelo braço e gritando aflito: “Fechem a porta, fechem a porta. Não matem esse pássaro, mas não deixem ele entrar!”. Mas a porta não foi fechada porque o vigia assustado falou: “Coronel, Dona Sofie vem chegando”.
E a ex-madame surgiu do lado de fora, caminhando em direção à entrada, parecendo uma enlouquecida. Completamente nua, sem nenhum fio de pano sobre o corpo, trazia nos braços, sempre balançando e ninando, um bebê de brinquedo.


continua...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

quinta-feira, 28 de abril de 2011

QUANDO OS PÁSSAROS MORREM (Crônica)

QUANDO OS PÁSSAROS MORREM

Rangel Alves da Costa*


Manhã chuvosa, sempre mais triste do que a tristeza que sempre vem, é para lembrar dessas coisas mesmo. Lembrar um monte de coisas e ter que entristecer, sofrer, e muitas vezes não há como ser diferente.
E como a gente começa a sentir como a vida possui situações dolorosas, coisas de cortar coração. Surgindo de uma coisa simples, como a própria chuva que cai, e uma imensidão de ilações surgem para confirmar o que vivemos tentado esconder.
Por que esse banco de jardim estava quase caindo e eu nunca fui perceber; essa árvore de galhos mortos agora mais fantasmagóricos quando a chuva faz escorrer seu sangue escurecido; esse chão repleto de folhas boiando, passeando no olhar como náufragas da omissão; esse jardim que era tanto meu e que de repente o esqueci e abandonei? E por quê, por quê e por quê?
Doi-me ser preciso que essa chuva venha inundar minha manhã para que eu tome conhecimento de tudo isso, tenha certeza do que não fiz, saiba que muita dor no olhar e no íntimo poderia ser evitada e não foi por minha própria culpa.
Não posso fingir que me chegam tantos sentimentos cortantes sob pena de o sol fazer esquecer tudo novamente, deixar tudo como está, apenas deixar para fazer os reparos necessários um dia qualquer. E se amanhã amanhecer chovendo novamente, o que me direi se não fizer nada agora?
O pior não é somente o galho apodrecido, a folha espalhada, o banco quebrado, o jardim praticamente abandonado. E se eu encontrasse o meu amigo passarinho, o meu grande amigo de asa e bico, que sempre fez moradia no meu jardim, morto, esparramado por cima dessas águas que se acumulam?
Nunca pensei como me sentiria se encontrasse numa dessas manhãs o meu amigo pássaro morto. Galho nasce todo dia, folha existe aos montes, banco é reconstruído, jardim pode ser transformado num paraíso verdejante a qualquer momento. Mas se o meu passarinho agora estivesse boiando por ali, por cima daquelas águas?
Conheço a dor de perto. Aliás, já vivi e senti todas as dores da dor, já fui vítima e réu em diversas situações dolorosas. Morri e renasci mudado, prometendo a mim mesmo que tudo faria para não mais sofrer, para não ter mais que suportar tanta dor. Mas tudo isso sempre fez parte do mundo lá fora, onde a grande maioria das pessoas vive para engendrar o sofrimento nos outros.
Mas aqui nesse jardim nunca tinha me vindo à mente uma dor tão misteriosamente dolorida como essa advinda da suposta morte do meu passarinho. E de repente, apenas com o pensamento que parece avistar o meu amigo virando de pernas pro ar numa poça d’água, tudo começa a parecer angustiante demais. E essa chuva que continua, e essa chuva que não quer cessar...
Com a visão do meu pássaro morto boiando por cima das águas sinto que muitas das dores sofridas não passaram de medos e meras aflições. Ainda que o sofrer fosse indubitável presença, mesmo assim não seria suficientemente forte para dizer que era verdadeiro sofrimento. Ora, eram apenas poeiras transformadas em furacões porque não conhecia o sofrer verdadeiro.
Agora com a simples imagem do meu passarinho no seu leito de morte posso sentir que a dor tem outros limites. Muitas vezes o ser humano não merece uma lágrima sequer, qualquer sentimento honesto de comoção. Ele não é passarinho, não sabe apenas viver, procura meios para o que o pior aconteça.
Mas com meu passarinho é diferente, pois ele é a pessoa que eu queria ouvir, sentir e tocar. E ainda assim sinto tudo que ele sempre quis me dizer: quando os pássaros morrem, morre também um pouco do jardim e de quem os ama. E com as pessoas busca-se apenas o esquecimento.
E essa chuva não passa, não cessa e preciso avistar meu amigo pássaro. As águas trazem mais folhas, mais lixo, mais tudo. E não quero tanta dor, não quero tanto e tão verdadeiro sofrimento...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Limites (Poesia)

Limites



É bom sonhar que tudo é possível
carregar no peito esse belo sonho
na certeza que a esperança é invencível
e barreiras e armadilhas transponho

não querer demais no que for sonhado
a exata medida do amor que espero
pois tudo em você é imenso e adorado
apenas que me venha assim tão sincero

sabemos o quanto podemos amar
e sem disfarces esse amor ser tudo
sem fazer festa com nosso tanto adorar
pois o corpo grita quando mais está mudo.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 97 (Conto)

DESCONHECIDOS – 97

Rangel Alves da Costa*


Por mais que os capangas do coronel vasculhassem aquela margem de cima a baixo jamais iriam encontrar o profeta. O esfarrapado, malcuidado e tido como louco Aristeu não se encontrava mais na vila dos pescadores.
Ao menos por instantes ou dias ele estaria ausente. Com um propósito que somente ele sabia, com imperiosa obstinação, entrou nas águas e foi nadando cuidadosamente até a outra margem. Não se sabe o local exato, mas agora ele estava no outro lado, escondido nas proximidades da casa do coronel e da montanha da igrejinha.
Já com Soniele foi diferente, pois se procurassem com mais atenção a teriam encontrado facilmente, pois ela estava o tempo todo dentro do rio, por trás de umas pedras. Foi Carlinhos quem pensou numa maneira dela não ser encontrada e teve a ideia daquele banho forçadamente mais demorado.
Se Soniele fosse encontrada e levada para o outro lado e entregue nas mãos do ensandecido casal, sorte alguma lhe restaria. Agora era capricho e geniosidade do coronel recebê-la como escrava amarrada diante de seus pés. Foi o que imediatamente concluiu Carlinhos quando ela o chamou apressadamente no quintal e revelou o grande segredo.
Cada palavra que ela dizia, molhando em lágrimas cada passo do passado, era como se a maior parte de sua vida não tivesse sido vivida. E desabafou para o pequeno amigo, palavras que ele também sofreria para guardá-las até que ela mesma as revelasse ao mundo.
Tinha caminhado pela vida mentindo a si mesma e a seu corpo, sendo inimiga da sua paz e da sua honra, rejeitando toda a esperança e felicidade. Mas por quê? Carlinhos não perguntou assim, mas quis saber o motivo de tudo aquilo que ela dizia com outra pergunta: “Valeu a pena nunca ter revelado nada?”.
“Agora eu posso, mas antes eu não podia revelar nada!”, concluiu Soniele, com a face marcada pela dor da revelação. E disse ainda que se acontecesse alguma coisa com ela, ao amigo caberia revelar perante todo mundo esse segredo. Isso teria que ser feito ainda naquele dia, mas se algum acaso a impedisse ele tinha o dever de contar toda a verdade, doesse a quem doesse.
Depois dessa rápida conversa ele passou a compreender ainda mais aqueles gestos de ódio e vingança perpetrados pelo casal. Assim, as outras pessoas, inclusive ele e Yula, apenas serviam de isca para os planos do agora reconhecidamente tenebroso homem.
Matar qualquer um, desde que fosse para colocar as mãos nela, seria coisa absolutamente normal naquela mente perversa. Por isso precisavam ainda mais redobrar os cuidados, vez que não valiam realmente nada. Ademais, tinha que se observar que era uma mente perversa sendo manipulada por uma mente doentia, revoltada pelos erros do passado e totalmente enlouquecida pelos tais pecados acumulados, que era Sofie.
Sabendo que poderiam ser vítimas da vingança do coronel, desejaram boa sorte a amiga e ficaram observando enquanto ela corria abaixada rumo ao rio. Já estava com roupa apropriada e por lá era só se encontrar um lugar onde não fosse avistada. E foi por entre as pedras e boa parte do corpo mergulhado que ela ouviu quando os amigos foram sendo trazidos para a margem ali pertinho.
Quando o chefe da investida achou que o grupo dos verdadeiros prisioneiros já estava completo, sem faltar realmente ninguém, ordenou que fosse dividido em dois para a subida nas canoas e rápida travessia. Deveras curta demais a travessia, pois em cerca de quinze minutos já aportavam na margem diante da casa do coronel.
E depois o grito avisando do trabalho primorosamente realizado, do dever cumprido com a prisão de todos e sem qualquer resistência. Da frente da casa mesmo, porém sem se aproximar das embarcações, o coronel gritou: “Trouxeram todo mundo mesmo, principalmente aquelas três pessoas que eu disse como eram?”. E o capanga respondeu: “Sim, coronel, todo mundo. Antes de partir mandei revirar tudo novamente e não ficou nem sombra por lá”. Então o coronel mandou que os levassem para cima da montanha, para serem, juntamente com Dona Doranice e os outros, trancados na igrejinha.
Desembarcaram e seguiram em medonha procissão, todos com as mãos amarradas por trás, à moda dos prisioneiros, dos escravizados, dos encaminhados aos locais de castigos e campos de concentração. A jornalista Cristina, seu amado João, o menino Carlinhos, os recém apaixonados Yula e Carol, a encantada Pureza, os pescadores Tonico, Siribá, Clotilde, Gerúsia, Queró, Calazans, Hedera, Tiziu, a jovem Gabi e os meninos Santinho e Merinha, dentre outros.
Ao colocar os pés no chão, Pureza olhou na direção da casa do coronel e gritou bem alto dizendo que tinha um recado de um pássaro para lhe dar. Diante do barulho o coronel saiu à porta, porém só viu quando a pescadora recebia um bofetão por trás e depois era empurrada até rolar pela terra. Mesmo caída, recebendo pontapés para calar, gritou ainda mais alto: “Coronel, o pássaro preto mandou lhe entregar de volta a maldição. Venha buscar coronel!”. E disse isso com um esforço tremendo para não deixar sair de dentro de si o pássaro raivoso que queria voar.
De onde estava, Demundo Apogeu não pôde ouvir a frase completa, mas não duvidava que tinha escutado alguma coisa relacionada à pássaro preto e maldição. Pensou rapidamente sobre o significado dessas palavras, sua importância para ele naquele momento, e olhou novamente para ver da boca de quem havia partido. Contudo, a mulher ainda estava caída no chão, sem possibilidade de ser identificada naquele instante.
Deu alguns passos naquela direção e berrou novamente para que levantassem aquela pessoa e a trouxesse à sua presença, imediatamente. E assim foi feito. Sob os olhos ao mesmo tempo curiosos e preocupados dos amigos, Pureza foi erguida e levada à presença do temível homem. De tão suja e desfigurada que estava, quase irreconhecível nas suas vestes molambentas, com arranhões pelos cotovelos e pernas e cabelos de todo o vento, o coronel mandou que antes jogassem um balde de água por cima.
A água do rio caiu sobre o rosto da mulher do tempo ribeirinho, seus olhos voltaram a brilhar com mais intensidade, fez com que o pássaro interno continuasse no seu ninho, a feição se afigurou novamente como a mais indestrutível das rochas. Mas sem poder e sem pretender mostrar qualquer sinal de sua imensa força e poder, preferiu ser apenas mulher, ser apenas a pescadora, ser apenas a ribeirinha. Mas não deixava também de ser a senhora dos encantados.
Deixou que os olhos comandassem tudo e fixou o olhar verdadeiro e penetrante no rosto misteriosamente alterado do coronel. Não tinha mais as marcas fortes de antes, mas apenas uma feição de sofrimento carregando um olhar que parecia já sem força e sem brilho. O ódio, o rancor, o arrependimento escondido, a raiz de tanta maldade agora querendo brotar na própria pele enrugada, tudo isso tornava o coronel num ser estranho e por isso mesmo talvez muito mais perigoso.
Juntando forças, Pureza nem esperou ouvir nada e foi logo dizendo: “Coronel, agora estou percebendo que a maldição lhe fazia bem. A sede de sangue do pássaro preto, que era uma parte importante de sua pessoa, lhe fazia bem e parecer sempre forte. Você está sentindo falta da ave maldita coronel, pra estar assim tão debilitado? Quer ter ela de volta e pra fazer com ela o que você quiser coronel?”.
Os dizeres da pescadora foram como flechas atingindo o alvo. O coronel se abalou e quase não sabia nem o que dizer. Num relampejo lhe vieram as palavras possíveis: “O que você quer para me trazer de volta o pássaro da maldição?”.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

quarta-feira, 27 de abril de 2011

EU, MEU AVÔ E MEU PAI (Crônica)

EU, MEU AVÔ E MEU PAI

Rangel Alves da Costa*


Minha descendência tem cheiro de mato, é enraizada na mais árida terra sertaneja, tem suor que corre nas veias como o sangue desbravador da própria vida. Sou sertanejo, da mesma matriz matuta do meu pai e do meu avô.
Meu avô, um bicho do mato, coração selvagem numa alma sem igual. Meu pai, domado pelo destino, pensou ter crescido e feito homem na criança ranzinza que ainda é. E eu, o que sou, como sou?
Meu avô não sabia ler nem escrever, mas era doutor em tudo, principalmente na arte da sobrevivência no sertão. Meu pai cresceu autodidata e depois aprendeu demais, não nas letras que se cultiva e não se aprende, mas na arte de pesquisar e descrever a própria vida. E eu, o que sei, o que faço?
Meu avô era homem de poucas palavras e de largos gestos, de poucos dizeres e muito exigir, daquele tipo que nasceu para liderar como espelho do que é e pelo olhar do que quer. Meu pai fala demais e impensadamente, eis o maior erro de quem já foi liderança e hoje apenas sente a falta de comandar, daquele tipo que tudo está ruim porque não pode tornar do seu jeito. E eu, como faço, como sou?
Meu avô trançava o vento e moldava as nuvens para sobreviver, plantava uma semente em qualquer lugar e fazia de qualquer coisa em qualquer lugar uma oportunidade para tentar garantir o pão da família e ter seu chapéu de panamá e fumo para o seu antigo cachimbo. Meu pai já encontrou régua e compasso, a vida mais fácil de ser vivida, mas nem por isso menos difícil de se conquistar o espaço para sobreviver. E eu, o que faço, o que sei fazer?
Meu avô não era violeiro nem cantador, não exercitava o cordel nem caminhava pelas estradas repentistas, mas não vivia sem cultivar no seu gosto sertanejo o melhor que a cultura matuta podia oferecer, nos discos de cantadores de repente e trovadores de qualquer lua sertaneja. Meu pai seguiu nesse mesmo passo, trouxe esse gosto pelo popular como devoção de filho do sertão, mas ampliou isso tudo, enveredando pelo prazer em ouvir a autêntica viola caipira e os causos dessas caatingas sangrentas. E eu, como sou, do que gosto?
Meu avô lidou com tudo, foi qualquer trabalhador, teve bodega e bar, armazém e depósito de fardos e mais fardos de algodão e sacos e mais sacos de milho e feijão, teve pensão e caminhonete de frete, teve caminhão de transporte, teve uma fazendinha e uma rede de estender na varanda. Meu pai teve muito mais e muito menos. Para não dizer o que ele teve e o que tem, basta lembrar o poema de Drummond dizendo que hoje só resta uma fotografia na parede, e como doi. E eu, o que tive, o que tenho?
Meu avô era homem calmo demais, ouvindo atentamente tudo e chegado a pacificador nas mais difíceis situações, mas tudo isso apenas para esconder o sangue quente que queria saltar das veias, a voz assustadora que dizia tudo de uma vez só, a arrogância quando de outro modo não poderia ser diferente. Meu pai é o galho que se quebra em pessoa, pois está tranqüilo e sereno e de repente já é espeto querendo ferir a todos, de forma inusitada e até impensada. E eu, o que sou, como sou?
Meu avô era sertão, sertanejo, exemplo de tudo que por aquelas terras já brotou, por isso tão autêntico como o seu vasto e embranquecido bigode e seu chinelo de dedo; simplicidade que gostava de ficar de cócoras com uma varinha riscando o chão. Meu pai é outro sertão, é a terra que ele descreve, as histórias que ele conta, os versos e as melodias que compõe. É o sertanejo que está nos seus livros sobre o cangaço e Lampião, no amor pela viola de Tonico e Tinoco, no programa da Rádio Xingó, nas suas músicas gravadas por duplas famosas. E eu, o que sou, o que faço?
Meu avô era Ermerindo. Meu pai é Alcino. Tudo dos Alves e dos Costa. E eu sou Rangel. E tudo o que sou, como sou, o que faço, o que sei e tudo o mais o que há duvidar nem perguntem a mim. Sou tudo e todo meu avô e meu pai. O resto não passa de um humilde sertanejo que vive reabrindo os caminhos que o levarão de retorno a seu Poço Redondo.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Será amor? (Poesia)

Será amor?



Se for amor
amar é doença
doi de causar dor
tortura imensa
se tudo acabou

Se for amor
amar é mistério
voo sem voo
sorriso no sério
não sei onde vou

Se for amor
amar é folguedo
de laço enfeitou
um lindo brinquedo
o coração alegrou

Se for amor
amar é paixão
maravilhoso sabor
fruta da estação
desejo que estou

Se for amor
amar é prazer
corpo que se doou
a busca em você
tudo que encontrou

E se não for amor?
amor há de ser
pois amo você.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 96 (Conto)

DESCONHECIDOS – 96

Rangel Alves da Costa*


João pescador estava mais acima do rio jogando sua tarrafa quando começou a perceber uma estranha movimentação. Era realmente muito estranho e não gostava nada do que via. De uma hora pra outra forasteiros, e cada um com a cara mais feia do que a outra, atravessavam para o lado da vila dos pescadores e se embrenhavam nas matas.
Caçador era quem infelizmente fazia isso, noutros tempos onde os animais de caça eram fartos. Mas pelo que via nenhum daqueles tinha jeito de caçador. Ninguém levava espingarda, mochila de mantimentos nem cachorros. Chegou o barco mais pra perto da vila, prendeu a corda bem defronte de sua choupana e foi correndo avisar à sua amada Cristina e à amiga Pureza.
Nem precisou falar muito e a pescadora dos encantados tomou a palavra:
“Tá chegando a hora, tá chegando a hora. Todos vocês se preparem porque tá chegando a hora. Esses homens que você viu certamente tão a mando do covarde do coronel. Mas o tempo dele tá contado, vou cortar-lhe o bico sem nem dó nem piedade. Mas quanto a vocês pouco poderão fazer diante da força e covardia desses capangas de vintém. E não podem fazer mesmo nada porque o destino já tá traçado e a gente não pode mudar um tiquinho assim do que tem de ser e será. Eles não vão matar ninguém não, disso tenham certeza, mas farão algum mal, isso sim. Por isso mesmo é que João vá avisar aos outros pescadores e Cristina corra lá pra casa das meninas pra alertar todo mundo. Mas diga que se acalmem, não procurem reagir nem mostrar valentia desnecessária. Tem que ser valente mais tarde, no momento certo que há de chegar. E mais de perto diga a Soniele que o momento mais importante da vida dela já tá chegando e que por isso mesmo nada de tão ruim assim acontecerá antes que tudo se cumpra...”.
“E você Dona Pureza, que falou em todo mundo, e você o que vai fazer?”, perguntou João. E ela continuou:
“Eu vou ficar aqui esperando pra ver o que é que esses bandido quer. Vou zanzar a vida deles e fazer de tudo pra que se enraiveçam e me leve de castigo à presença do coronel, pois preciso muito olhar na cara daquele safado e dizer uma coisa. Eu bem que poderia chegar lá de outro jeito, até voando se eu quisesse, mas prefiro que ele não desconfie ainda...”.
Então foi a vez de Cristina perguntar preocupada: “Dona Pureza, a senhora tem certeza que está bem? Eu não estou maluca e sei que ouvi muito bem a senhora dizer que bem poderia chegar lá voando. E que história é essa?”.
“Oh, minha filha, um dia vocês saberão, mas agora é impossível que eu fale qualquer coisa. Mas tenho asas, saiba. Todo mundo também tem asa, mas as minha são diferente e ainda tão separando o vento bom e o ruim pra voar. Não quero voar num vento ruim, é muito perigoso”.
Ninguém ficou entendendo nada. As explicações da amiga deixaram os dois apaixonados de beira de rio ainda mais perturbados. Mesmo assim, com a cabeça cheia de interrogações cada um foi pro seu lado, ainda que depois desse breve encontro tivessem ficado com uma vontade danada de ficar juntinhos o dia inteiro. Essa vontade era bem maior em João, que pressentia muito próximo o momento de se separarem.
No casebre das mocinhas, mesmo que muitas coisas importantes tivessem que ser conversado, Yula e Carlinhos não falavam noutra coisa senão sobre Dona Doranice. Queriam voltar até lá para ao menos resgatá-la junto com as demais, porém sabiam que isso era impossível naquele momento. Mas se soubessem o que estava acontecendo no outro lado do rio, na casa do coronel, certamente que iriam até lá mesmo nadando.
Novamente revestida de madame de cabaré, de cafetina gerente de prostitutas, com echarpe aveludada envolta ao pescoço, estola de tecido francês descendo pelos ombros e circundando um sedoso longo, de rosto pintado disformemente, com batom vermelho indo muito além dos lábios e um insuportável cheiro forte de perfume misturado com uísque, Sofie apareceu assim espalhafatosa, soltando terríveis gargalhadas diante de suas visitas. Estava de arma em punho e apontada em direção a Dona Doranice.
Num misto de susto e desespero, sendo ameaçada por aquela mulher novamente enlouquecida, quase não encontrou palavras. Gritaria facilmente se a prudência não lhe recordasse que não se deve despertar repentinamente a fúria dos loucos. Buscou forças para permanecer calma, chamou por seu Deus em pensamento e falou serenamente:
“Oh, Sofie me dê essa arma e sente aqui. Venha, temos que conversar minha boa amiga...”. “Boa amiga o que, sua velha imprestável, sua quenga velha, sua desmancha prazeres. Por causa daqueles infames e nojentos que lhe chamam de avó é que ainda não podemos dar um fim nessa situação toda e acabar com a vida daquela Soniele. Se você anda com eles, então a culpa é sua velha nojenta!”.
E partiu pra cima da viúva e deu-lhe dois enormes bofetões que esta caiu sobre umas cadeiras. Quando a insana já estava segurando nos cabelos brancos da velha senhora surgiu o coronel dizendo que por enquanto bastava, que o destino dela e dos demais já estava selado e que a morte logo os calaria de vez.
Ali jogada por cima da madeira, com o corpo afetado pelas agressões, ainda assim a única coisa que veio imediatamente à mente de Dona Doranice foi dizer: Meu Deus, meu Deus, perdoai, ela não sabe o que faz! Meu Deus, meu Deus, perdoai, ela não sabe o que faz! E em seguida ouviu como se uma voz conhecida soprasse no seu ouvido: “Você é muito boa aos olhos do Senhor e Ele te protegerá. Eis o sal da vida. Nesse paraíso, eis o sal da vida”. Era a voz do falecido, não havia que duvidar.
As duas assessoras a todo instante pensavam em reagir, tomar a arma, contra-atacar, mas com dois capangas protegendo os patrões seria muito difícil. Tiveram apenas de suportar terem as mãos amarradas e levadas aos empurrões até as escadarias na rocha que faziam caminho para a igrejinha.
Ainda na casa, pelas frestas de uma das janelas, o velho padre observou todo o desenrolar desses acontecimentos sem poder acreditar no que via. Correu para o quarto e pegou a maleta para fugir imediatamente de lugar tão diabólico. Mas assim que botou o pé na porta dos fundos tropeçou numa botina suja de lama. Caiu e começou a chorar com a arma apontada na sua cabeça. Então teve que jurar que celebraria a missa mais bonita do mundo. E em seguida foi levado também amarrado para o templo da montanha.
Do lado da vila dos pescadores, não demorou muito e os homens do coronel começaram a fechar o cerco. Surgiam dos quatro cantos, vindo do fundo e dos lados, numa circunferência que não deixava opção de fuga para ninguém, a não ser tentando escapar pelas águas. De repente e todas as casas já estavam invadidas, os barcos eram rebocados com seus pescadores, as armas impunham o silêncio no vexame e no susto.
Em seguida todos tiveram as mãos amarradas e foram conduzidos aos empurrões e zombarias para a beirada do rio, formando um verdadeiro círculo de prisioneiros. Antes que as duas canoas chegassem para transportá-los ao outro lado, o chefe dos capangas mandou três homens fazerem a busca novamente pelos barracos para ter a certeza de que ninguém havia ficado escondido. Voltaram dizendo que reviraram tudo e nem sombra de pessoa.
Não sabiam ainda, mas duas pessoas não estavam entre os prisioneiros: o profeta Aristeu e a mocinha Soniele.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

terça-feira, 26 de abril de 2011

INVENTOS UTÓPICOS PARA UM MUNDO REAL (Crônica)

INVENTOS UTÓPICOS PARA UM MUNDO REAL

Rangel Alves da Costa*


Torquato, velho amigo de não sei de onde, sempre foi crítico da inutilidade da maioria das invenções. Segundo ele, antes de se pensar em inventar alguma coisa para vender, para simplesmente dar lucro, as pessoas deveriam pensar em inventos que fossem para utilidade sentimental e espiritual do próprio ser humano.
E não se cansa em dizer que quem inventou o veneno deveria ter inventado o antídoto exato; quem inventou o projétil deveria ter inventado o escudo; quem inventou a lâmina deveria ter inventado a couraça; quem inventou a arma deveria primeiro ter testado nele mesmo; quem inventou a prisão deveria ter inventado outra polícia; quem inventou a sentença deveria ter inventado a existência de um parente do outro lado.
Contudo, verdade é que ele nem gostava de comentar muito sobre os inventos totalmente desnecessários, segundo dizia. Adepto de uma vida baseada no direito natural, dizia que o ser humano deveria ter como bases de conduta aquelas ações consideradas como validamente corretas pelos povos, sem imposição alguma para terem validade e cuja lei maior seria o homem na sua conduta moral e perante suas mais positivas virtudes.
Indignado com tantas e absurdas invenções, ora colocando o pescoço do homem na guilhotina, ora criando pureza na espécie com base na cor da pele, ou ainda a arma de destruição que tem o poder de matar uma nação inteira com um só ataque, cismou com isso tudo. E disse que qualquer dia iria para o seu quintal e lá, debaixo do pé de goiabeira, começaria a criar aquilo que o homem cada vez mais necessita e nunca teve tempo de inventar.
Inventar mecanismos sensoriais na atividade humana, de modo que certas palavras sejam automaticamente pronunciadas, sem que o homem tenha de lembrar que elas existem, e adequadas segundo cada situação. E das palavras constantes desse mecanismo estariam, por exemplo, obrigado, boa tarde, bom dia, boa noite, como vai, muita saúde e muita paz. Mas principalmente eu te amo, gosto de você, você me faz bem.
Inventar um mecanismo possibilitando que o olhar possua os mesmos sentimentos que o coração. Se tudo primeiro é sentido pelo coração, que automaticamente dispara expressões de repulsa, dor, revolta, amor, aflição, tristeza, angústia ou alegria, o mesmo poder passaria a ter o olhar. Assim, não precisaria que os olhos primeiro vissem para depois o coração ser consultado, pois o próprio olhar já se indignaria ou sorriria com a situação observada. A dor, o grito, o pavor, a gargalhada, tudo seria tão imediato quanto necessário.
Inventar mecanismos capazes de impedir que pessoas desonestas, corruptas, indignas, canalhas, covardes, fofoqueiras e de outras péssimas virtudes, ao menos se aproximem de pessoas honestas, honradas, de boas condutas. Seria como um mecanismo de repulsa. Quando o mau-caráter tencionasse se aproximar da pessoa de bem, uma força de retração impediria o passo e quanto mais ele tentasse avançar mais seria forçado a recuar.
Inventar um espelho que fique sempre diante da pessoa, mas que seja invisível perante os outros. A cada ação, boa ou má, que seja realizada pelo indivíduo, automaticamente esse espelho surgirá à sua frente e este terá que se enxergar e refletir sobre o estado de sua face. O intuito maior desse invento é fazer com que certos indivíduos tenham de se olhar depois de, por exemplo, ferir gratuitamente o outro pela palavra, matar, roubar, cometer injustiças.
Inventar outra pessoa igualzinha aquela que está vivendo e deixá-la sempre em prontidão para tomar o lugar daquela que não está satisfeita com a vida que tem, que não se reconhece enquanto ser humano, que não valoriza sua situação de pessoa, que seja uma verdadeira vergonha para si mesma e para a sociedade. Contudo, assim que a aquela que foi substituída se reconheça e se valorize terá a chance de retornar, até um dia que não tenha jeito mesmo. Porque tem gente que é assim: só sabe viver se for no erro, errando, errado.
Por fim, inventaria a morte como esquecimento. As pessoas morreriam e não deixariam tantas marcas de dor, tristeza e sofrimento.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Soneto de sempre agora (Poesia)

Soneto de sempre agora



Amada minha que ainda não partiu
pois a vida nos enlaça e chama
me faz navegar nesse imenso rio
como um leito de quem tanto ama

e singrar amanhã ou talvez um dia
vez que todo eterno também vai embora
é marcar o encontro na vida tardia
deixando ao destino que faça a hora

essa distância que não será dolorida
porque o amor não fecha a porta
será como encontro na separação

deixando morrer a saudade morta
vivendo tudo que vive no coração
refazer o amor que é nossa vida.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 95 (Conto)

DESCONHECIDOS – 95

Rangel Alves da Costa*


Ainda na beira do rio, os rapazinhos se deram conta do surgimento de outro problema, vez que não poderiam, naquelas condições, voltar para o outro lado, reencontrar Dona Doranice, que nem sonhava com o que estava se passando. E agora, mais do que tudo, corria sério perigo.
E realmente corria grande risco, e não somente ela como também as acompanhantes que ainda continuavam ao seu lado. Verdade é que mesmo antes dessa desfeita ocorrida na vila dos pescadores e perpetrada em parte também pelos considerados netos da viúva, o coronel e sua companheira já estavam procurando o melhor meio de se livrar de todos.
Sofie já havia alertado o coronel sobre as estranhezas de Carlinhos, suas atitudes e suas palavras reveladoras demais. O menino parecia saber de tudo e não procurava esconder nada, até lhe afrontando, tanto pelo que dizia como pelo jeito que lhe olhava. Era perspicaz demais o garoto, afoito demais, extremamente perigoso. Com aquela história de que alguém invisível lhe fazia revelações, podia abrir a boca e descobrir tudo a qualquer instante. Foi o que a ex-madame atiçou no ouvido do coronel, pedindo a tomada de providências drásticas.
De início, revelou o próprio coronel, até que se sentia bem ao lado dos visitantes, da viúva e dos meninos. Mas aos poucos passaram a ter olhos demais, ouvidos demais, se tornando grande ameaça para os seus planos a partir do aparecimento da ex-prostituta. E agora o casal se via com problemas para eliminar de vez a prova viva de tudo, que era a própria Soniele, precisamente por causa daqueles dois.
Ora, sem falar nas proezas e astúcias de Carlinhos, amedrontando a todo instante a companheira do coronel com suas pequenas doses de acusações, Yula chegou a confrontar o próprio senhor dono do mundo ali na beirada do rio. Então todos, indistintamente, teriam que pagar. Primeiro a velha e suas amigas, que já estavam ao alcance, e depois os meninos e todos aqueles que os haviam confrontado na vila dos pescadores.
Nesse intuito, de modo ardiloso e frio, o casal desceu do barco e se dirigiu tranquilamente até a casa. Ele chamou o capanga de lado, deu-lhe uns dois sustos, disse uns dois palavrões e depois, apontando lá pras bandas da igrejinha e do outro lado do rio, ordenou que fosse fazer alguma coisa com urgência.
Dona Doranice estava do lado de fora juntamente com as duas assessoras, apreciando os encantos da manhã. Foram cumprimentadas cordialmente pelos dois e em seguida a viúva perguntou o motivo daquelas pessoas reunidas ali no outro lado há instantes atrás. Mesmo de longe dava para enxergar aqueles vultos ora indo ora vindo e depois se agrupando.
“A senhora enxergou daqui? Pois é, eu e Sofie estávamos visitando os moradores do outro lado, um povo muito pacato e muito bom, de coração imenso e que só pensa em ajudar o próximo. Encontramos os dois rapazinhos lá também, já amigos de todos pelo visto. A jornalista Cristina lhe mandou um abraço e disse que ainda hoje vem aqui lhe visitar. E vem mesmo hoje porque mais tarde vai ter a inauguração da igrejinha, celebrada a missa e amanhã uma bela churrascada pra todo mundo. Hoje não, porque hoje vai ser apenas para a celebração religiosa com uma missa bem bonita, celebrada como ninguém viu antes, cheia de devoção e beleza...”. Dizia o coronel, quando foi interrompida pela viúva:
“Mas vai ser hoje mesmo a inauguração da nossa igrejinha coronel, que coisa maravilhosa. Vai ser quantas horas?”. “Assim que o padre estiver pronto e os pescadores e os outros convidados chegarem. Já convidei todos do outro lado e logo mais estarão aqui para a grande festa religiosa. Mas adianto que vai ser lá pela tardinha, quando o sol estiver esfriando mais, acho que o momento ideal para a grande celebração”.
Era o que dizia e confirmava o coronel, entre a mentira e o cinismo, ao mesmo tempo sorrindo e chorando por dentro. Verdade é que já estava perdendo totalmente o controle sobre si mesmo, sentia isso. Sabia que o homem tomado pelo ódio, pelo desejo insaciável de vingança, possuído pela angústia em não querer aceitar os próprios erros, vai se destruindo aos poucos.
E principalmente ele que nem um resto completo de homem era mais, vez que tinha sempre que doar parte da força que lhe restava para o pássaro preto continuar existindo. Por isso mesmo havia também ordenado que homens de sua confiança fossem escondidos até o outro lado e trouxessem à força aquela que parecia conhecer parte da maldição da ave sinistra. Quem sabe se ela, pescadora conhecedora de muitos mistérios, não reverte essa situação? Perguntava-se.
Mas Pureza já sabia que isso ia acontecer. Assim que o coronel e a esposa saíram dali prometendo vingança, não durou muito e ela foi conversar com seus encantados, remexer no seu mundo de magia e enfeitiçamento, buscar orientação das entidades misteriosas e sobrenaturais. Ela era mulher de rio e floresta, dos mistérios das águas e das noites, das coisas da terra e do além. Era quase uma feiticeira, uma bruxa. Mas era muito mais...
Pegou seus misteriosos instrumentos e outros objetos de grito e canto e se dirigiu pra dentro das matas, lá perto de um pequeno riacho que corria escondido feito cobra embaixo da mataria. E os quatro elementos se juntaram na bacia que virou fogueira, que se transformou em pó e depois ventania, redemoinho medonho diante do olhar de magia. E então logo o pássaro preto pousou ao lado, manso feito um pássaro qualquer. E então o pássaro foi dominado, suas entranhas malvadas invadidas pela magia, seu passo e seu voo, sua sede e sua sanha agora no querer de Pureza, da Grande Senhora dos Encantados. E o pássaro adormeceu de olhos abertos, voou de olhos fechados, tudo havia se transformado. Sua força malvada não dependia mais do coronel, a sede assassina não vinha mais do terrível, mas tudo dependendo agora do desejo e querer daquela mulher, daquela pescadora e seu anzol de destino. E com isso também o coronel passava a ter uma parte de si dependente do querer dela. O que o pássaro tomava do seu corpo para cometer maldades, agora estava nas mãos daquela misteriosa mulher. O que ela faria agora com tanto poder de vida e de morte? O que faria com o próprio pássaro? O que faria com o coronel?
Sem imaginar nada disso, o senhor da maldade, o coronel apressado por vingança, mandou chamar o padre para dizer que a missa seria celebrada mesmo naquela tarde, e que ele estivesse pronto para a festa das almas.
Contudo, não esperou nem o aposentado sacerdote chegar, deixando-lhe apenas o recado para que estivesse em prontidão. Saiu para as beiradas, circulando pelos cantos para mandar que fizessem isso ou aquilo, e cada ordem vinha acompanhada de gestos apontando para a montanha da igreja e para a vila, como se estivesse apontando o que e como os capangas que iam chegando deveriam fazer.
E estava mesmo. Pois não duraria muito para que os homens saíssem às escondidas para colocar em prática as estratégias do coronel. E estas consistiam em trazer à força todos os moradores e outras pessoas que estivessem na vila dos pescadores e levar, também a força, Dona Doranice e suas acompanhantes para dentro da igrejinha.
Até a missa todos deveriam estar prisioneiros do coronel e Sofie lá em cima da montanha, dentro da igreja. Depois da celebração começaria o juízo final.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

segunda-feira, 25 de abril de 2011

TANTOS CORAÇÕES VAGABUNDOS (Crônica)

TANTOS CORAÇÕES VAGABUNDOS

Rangel Alves da Costa*


Talvez somente a ciência amorosa possa explicar porque quanto mais possuem corações vagabundos, sempre amolados para ferir e cheios de ingratidão, mais os seus donos são amados, queridos e adorados.
Um coração vagabundo é, por definição, aquele que fere e sabe ferir sem causar danos irremediáveis; é aquele que ama mais do que o outro, porém finge não amar e tudo faz para demonstrar isso, ferindo a pessoa amada, magoando e maltratando quem tanto se quer; é aquele coração imenso, amoroso e apaixonado, mas que tem por vocação optar sempre pelos fingimentos.
As pessoas portadoras desses corações tão vagabundos possuem características diferenciadas. Elas optam pela malandragem sadia como opção de vida, não levando nada a sério e procurando sempre minimizar o sentimento do outro; são extremamente alegres e contentes, talvez como arma para mostrar que tudo está sempre bem e que não está nem aí para o pior que esteja acontecendo; possuem um papo de dispersar montanha e todas as palavras que dizem parecem carregadas de ironia e de insensatez.
O dono ou a dona do coração vagabundo faz chegar ao ouvido do seu bem amado que está flertando em outras praias, que possui olhar para outras paisagens e que, por isso mesmo, tenha muito cuidado para não perdê-lo. Na verdade, o que realmente quer é sentir a pessoa saindo de si, nervosa e preocupada, de modo que faça o seu circo procurando torná-la cada vez mais dependente de si.
A mentira, não como hábito negativo, mas por opção de joguete, é sempre utilizada pelo coração vagabundo para manipular, reverter situações ou criar situações inexistentes. Diz que vai viajar e pede a alguém que vá dizer à sua amada que estava no shopping mais que bem acompanhado, conversando baixinho no ouvido e até trocando ligeiras carícias.
Diz que não comprou o presente de aniversário porque esqueceu o perfume que ela gosta, a cor preferida de roupa, o livro que ela disse que queria tanto ler. Quando a outra se irrita, então ele entrega, com beijos, tudo de uma vez só. Quando ela fica totalmente desarmada, sem jeito de dar negativas, chega então o momento dele deitar e rolar.
Os corações vagabundos premeditam fazer coisas que não desejam somente para causar raiva e ciúmes nos outros. Chegam ao encontro com cheiro estranho de perfume, com a gola da camisa manchada de batom, com um bilhetinho anônimo e suspeito guardado na carteira, ouvindo uma música e dizendo que ela lhe traz grandes recordações. Sempre procuram esconder o celular ou fingem que estão apagando mensagens apressadamente. Colocam na carteira sempre camisinhas de marca diferente que é pra ela logo imaginar que ele só possa estar fazendo muito uso delas. E não é com ela...
Os donos e donas dessa praga vagabunda que se alastra incontidamente fazem o muito de besteiras sem ao menos atinar para as consequencias. Cada ato e cada passo é como se fosse buscando uma motivação diferente para causar impressão na outra pessoa. Na verdade, é uma estratégia para chamar a atenção e tentar mostrar que são mais espertos e perigosos do que se possa imaginar. Contudo, quase sempre o feitiço cai por cima do feiticeiro.
Coitados desses corações e dos seus vagabundos, coitadas dessas armas e armadilhas que sempre aprisionam os próprios caçadores. Logo se percebe que os que agem assim não sabem fazer nada de outro modo para mostrar que são apaixonados, amantes demais, porém carentes demais da certeza que o outro compartilha desse amor. É como se houvesse um grito em tudo que fizessem dizendo que olhe para mim, cuide de mim, me sinto muito sozinho, te amo muito e não posso viver sem ti.
Assim, de repente os corações vagabundos são encontrados chorando desesperadamente porque se sentem sozinhos, rejeitados, não compreendidos e pouco amados. E como lobos desesperados procuram as montanhas das suas noites para uivar suas lamentações. Pobres desses corações vagabundos, tão espertos e tão carentes.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Amar, mais amar... (Poesia)

Amar, mais amar...



Vamos amar, amar e amar
não canso de dizer, de pedir, implorar
isso é tudo que temos a nos dar e doar
disso é que vivemos sem nada faltar

se tudo fosse sempre assim
a certeza que é começo sem fim
o amor que se perpetua em mim
em você seria da eternidade afim

mas a vida não nos deixa guardar
tanto amor sem do amor retirar
por isso vamos semear e preservar
tanto amor, mais amor, mais amar.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 94 (Conto)

DESCONHECIDOS – 94

Rangel Alves da Costa*


Após o pulo o grito, o berro assustador, medonho. Quando a ex-madame de cabaré se virou e encontrou à sua frente, olhando friamente nos seus olhos, a ex-prostituta, a mocinha Soniele, deu alguns passos para trás e soltou um terrível grito chamando o coronel.
Todos acorreram ao mesmo para ver do que se tratava. Carlinhos foi o primeiro a avistar Sofie de joelhos, cabeça acompanhando as mãos sobre a terra molhada, batendo desesperadamente na umidez e ainda gritando palavras desconexas.
“Foi você quem mandou, foi você quem exigiu. Não diga nada. Ninguém precisa saber. Só faça de conta e pronto. Ninguém precisa saber de nada. Foi você quem mandou, foi você que sempre quis assim. Faça de conta e pronto. Mas ele era meu não e era seu. Ela não era para ser minha porque era sua. Você esqueceu a fralda, vá buscar a fralda. Essa peste tá chorando de novo. Mas me dê que ele é meu e não é seu. Tome que ela é sua. Você não podia deixar que tomassem conta dela assim. A papinha já tá pronta, venha neném, venha. Dorme filhinho, filhinho quer dormir...”.
E se estendeu inteiramente na beira do rio, quase em convulsão, sempre chorando, maldizendo tudo, agora querendo arrancar os cabelos com as mãos. Quando o coronel avistou a companheira naquele estado correu para acudi-la. Não tendo encontrando nada, mas sendo alertado pelos gritos, o capanga logo chegou perguntando quem era para matar, em quem deveria atirar primeiro.
“Atirar em quem, seu abestalhado?”, perguntou o coronel enquanto se abaixava para saber o que significava aquele gesto transtornado da companheira. Mas o mal-encarado respondeu: “Na mocinha ou no menino, atiro primeiro na mocinha ou no menino?”.
Ao ouvir falar na mocinha, o coronel, que na pressa e desespero não tinha avistado Soniele, virou a cabeça para o lado, ergueu-a, encontrou um rosto terno e meigo mais adiante e quase infarta nesse momento. Deixou a mulher como estava, levantou lentamente, quase sem forças, e se encaminhou para próximo de onde estavam Carlinhos e ela. E foi logo dizendo:
“Então é você mesma, não é sua puta rampeira, sua prostituta barata, sua vagabunda? Então é você que se escondia aí nesse mafuá depois de ter feito o que fez, de ter destruído a vida do meu filho, não foi mesmo?”. Totalmente enrubescida, raivosa com as palavras ouvidas, Soniele deu um passo à frente e jogou-lhe na cara:
“Seu filho, quem era seu filho, o Gegeu? Diga agora seu velho safado, diga, tenha coragem, seja o homem que você nunca foi. Mesmo com essa denominação asquerosa e mentirosa de coronel, diga a verdade sobre o Gegeu. Quer que eu diga toda a verdade, quer que eu conte tudinho agora mesmo, quer? Quer que eu diga que eu...”.
E nesse exato momento, antes que ela pudesse dizer o resto, o coronel, totalmente fora de si, quase espumando de tanta sanha furiosa, partiu para cima com o braço erguido pronto para atacar.
“Calma aí, não é assim não. Se ao menos tocar nela com um dedo vai se arrepender. Olhe pra sua esposa e veja que ela não está em situação confortável não”. Era Yula, tomando peito bem à frente do coronel, apontando para Carol que estava com um pé sobre o pescoço da ainda agitada Sofie.
Totalmente afetado pelo que via e sentia, desafiado, rebaixado, sem ter iniciativa alguma, o coronel nem respondeu quando o capanga perguntou se era pra matar todo mundo. “Atirar em todo mundo o que, seu cabra safado. Você atira em ninguém, seu frouxo, seu fuleiro, seu filho de uma égua desparida. Venha atire em mim!”. Quando o pistoleiro olhou raivoso para o lado, pronto para puxar o gatilho, se deparou com a pescadora Pureza que chegava acompanhada da jornalista Cristina.
Olhou a pescadora e ficou realmente amedrontado, envergonhado, baixou a cabeça. Há alguns anos atrás havia saído dali da vila dos pescadores corrido, ameaçado de morte pela amante, que outra não era senão Pureza em pessoa. Havia quem jurasse que ela batia nele.
“Bote aqui essa arma no chão, chegue, bote logo, senão você sabe que vai ser pior”. E o pistoleiro, que já havia mijado nas calças assim que viu a ex-amante, obedeceu ao que ela mandou e se pôs num canto de cabeça baixa, assustado, só olhando medrosamente o que ela ia fazer com a cuspidora de fogo, a pistola.
Pureza mandou que Carol tirasse o pé de cima da mulher e a levantasse, depois se encaminhou para o coronel e disse que era melhor ele pegar sua madame e seu capanga frouxo, subisse imediatamente na embarcação e fosse embora dali, e para nunca mais botar os pés do lado de cá.
Disse ainda que tinha visto o que ele pretendia fazer e não gostou nem um pouquinho do que viu. Por isso mesmo era melhor ele deixar Soniele em paz e ir cuidar de se desfazer de sua maldição, ir cuidar de botar na gaiola do seu coração malvado o pássaro preto de olhos de fogo, pois o mesmo estava sedento de sangue e a próxima vítima poderia ser ele mesmo.
Ao ouvir a menção sobre o pássaro de fogo o coronel estremeceu completamente, ficando num misto de medo e de vontade de guiar o pássaro preto que era sua própria emanação. Se pudesse fazer com que a ave do mal saísse do seu corpo com a sua mente, certamente não estaria agora naquela situação de desonra e desmoralização.
Contudo, o que mais lhe instigou foi ficar sabendo que aquela mulher conhecia alguma coisa sobre sua maldição. E se ela sabia talvez fosse de alguma serventia para os seus planos. Mais tarde compraria, a qualquer preço, a ajuda daquela pescadora, tinha certeza. Achava, como era do seu feitio, que o dinheiro saía por aí comprando a dignidade e a honradez das pessoas.
Os três se encaminharam para o barco sem dizer palavra, apenas com as feições chispadas de ódio e rancor próprias dos derrotados. Ao menos por enquanto, pois já cortando as águas o coronel gritou que não demoraria a voltar e dessa vez para arrasar tudo que houvesse por ali, principalmente as pessoas. Transformaria a vila dos pescadores num bagaço, ou não se chamava Demundo Apogeu.
A jornalista Cristina, que havia chegado acompanhada da pescadora e assistido apenas a parte final da contenda, ainda procurava acreditar no que tinha visto e ouvido e não conseguia. Sabia que mais cedo ou mais tarde o coronel descobriria que Soniele morava ali e certamente a procuraria, mas não para chegar ao ponto de querer matá-la. Por que isso tudo? Perguntava-se intimamente, e só encontrava o segredo como resposta. Porém, pelo que havia percebido, este ainda não tinha sido revelado.
Após a partida do coronel e sua pequena comitiva, todos que ficaram na beirada do rio procuravam palavras para tentar resumir e entender aquela situação toda. Carlinhos estava triste porque ainda não seria naquela manhã que ficaria conhecendo o segredo. Não era justo que depois do ocorrido ele pedisse explicações à amiga. Contudo, mais triste ainda estava Yula, que louco para declarar-se apaixonado e talvez roubar um beijo, sentia que teria de esperar mais um pouco.
Mas a pescadora chamou todos para pertinho de si e avisou que dali em diante havia começado uma guerra e que era preciso que todos estivessem preparados para o pior. Pelo que conhecia do coronel, nada daquilo ia ficar sem troco maior do que o tamanho da compra. A vingança dele seria imediata.
E o pássaro de olhos de fogo apareceu do nada, repentinamente, e ficou voando por cima de onde estavam. Então a pescadora logo teve a ideia de que bem poderia tirar proveito daquela ave fruto da maldição.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

domingo, 24 de abril de 2011

CABARÉ (Crônica)

CABARÉ

Rangel Alves da Costa*


Fique com raiva não, mas é preciso ter uma certa reverência, um respeito diferenciado ao pronunciar essa palavra: cabaré. Madame nenhuma iria gostar que seu requintado ambiente, de ilustres e tão renomados visitantes, fosse visto como um reles meretrício de beira de estrada ou dos esconderijos da cidade.
Madame de echarpe importado vermelho, estola multicolorida e brilhenta descendo dos ombros pelo corpo vestido de longo mais brilhoso ainda, não iria gostar que afrontassem seu “luxer”. Como as mais requintadas butiques onde só entram madames e apertadinhas, ali também oferece exclusividade, desfiles de bundas e peitos à mostra, com a carne latejante e altamente valorizada. Ora, as modelos ali caminham naquela passarela de pouca luz no pleno exercício da profissão mais antiga do mundo.
O ambiente dirigido pela madame com tanto carinho e zelo – até mesmo pelo vasto conhecimento que possui sobre o assunto, vez que antiga praticante daqueles dons eróticos diferenciados -, deve ser sempre visto como pousada e regozijo para políticos, sacerdotes, intelectuais, vagabundos endinheirados, revolucionários de qualquer guerra, solitários rapazolas e até broxas de língua em permanente ereção.
Verdade é que cabarés nesses moldes não existem mais. O progresso aumentou demasiadamente o exercício da profissão, com inúmeras profissionais, de todas as idades, credos, estado civil e raça, burguesas e empobrecidas, a cada instante chegando para disputar espaço e elevando incrivelmente a competitividade. Coisa de fundo de quintal, de casinha miúda, ganhou status de empreendimento, profissionalizou-se, mutinacionalizou-se.
O que ainda continua diferenciando as classes de profissionais é apenas a fachada que se dá ao novo, porém costumeiro, cabaré. Para as grã-finas, de classe social sobressalente, ditas universitárias e com cara da mais pura inocência, pode se denominar simplesmente boate, barzinho, shopping. Se o chamado à função parte para as ruas, através das garotas de programa, então já tem início uma outra face da prostituição.
E isto por que o primeiro programa feito por uma menina dificilmente não lotará logo o auditório. As garotas de programa são, assim, a fronteira entre a prostituição de luxo, altamente valorizada e lucrativa, e a função vulgar, logo de caminho certo para os cabarés de agora, as casas de shows eróticos, os mais altos e mais baixos meretrícios.
De qualquer forma, voltando ao velho e bom cabaré – aqueles mesmos de antigamente -, este era tido e conceituado como estabelecimento popular de entretenimento, principalmente para homens, destinado a shows artísticos com mulheres, shows musicais, orquestras dançantes, comercialização de bebidas e local adequado para obter prazeres sexuais através de pagamento.
Outros, numa linha mais vulgarizada, denominam de lugar onde são encontradas mulheres de recibo, prostitutas. Casa de diversões, geralmente noturna, em que se pode beber, comer, dançar e assistir a espetáculos musicais e outras atrações. Dentre outras atrações, e que são as principais, estão as mulheres, que por ali mesmo dão seu preço segundo as pretensões e os gostos do cliente.
Contudo, sob pena de denegrir a imagem do verdadeiro cabaré, jamais este poderia, nos tempos passados, ser confundido com outros locais de comercialização de sexo que existiam por todo lugar. E eram muitos - e continuam sendo - e sob diversas denominações, mas geralmente com um só objetivo, que é o sexo logicamente.
Assim, cabaré era orgulhosamente cabaré e não bordel (mulheres que estão à borda, ao alcance de qualquer um), prostíbulo (casa onde se fixam prostitutas), lupanar (o prostíbulo de antigamente), puteiro (onde só tem putas), brega (local onde ficam as prostitutas mais desvalorizadas), zona (o brega mais distante e um tanto escondido), inferninho (onde o pecado rola solto) e casa de tolerância (porque as mulheres toleram qualquer um que lhes pague pela relação sexual), dentre muitas outras denominações.
E por que essa reverência toda com relação ao cabaré, já que a finalidade pareceu ser sempre a mesma? Ora, simplesmente porque cabaré é histórico-culturalmente importante, sempre foi, no seu percurso histórico, verdadeiro centro de irradiação de importantes conhecimentos, onde foram travadas grandes e proveitosas discussões, foram discutidas e elaboradas leis e até constituições, serviu como centro difusor de grandes ideias e também de verdadeiro escritório para coronéis, grandes latifundiários, políticos e chefões mafiosos.
Quando Jorge Amado, nos seus maravilhosos romances tematizados no cacau, discorre sobre o cabaré como verdadeira instituição cultural, econômica e histórica, o faz mostrando que dentro de suas portas a nata política, religiosa e coronelista se reunia para decidir não só os próprios destinos, mas também da sociedade lá fora.
Era no cabaré que o coronel do cacau tramava a morte do também coronel vizinho e desafeto; era ali que o mandante político nomeava e exonerava, fazia seus conchavos, fortalecia suas ligações partidárias; ali também o religioso sentava-se à mesa do carteado e gastava todo o dinheiro da igreja; não era noutro lugar que os intelectuais e acadêmicos iam discursar sobre suas descobertas e revoltas, ler poemas para a prostituta francesa nascida no recôncavo.
Hoje em dia a madame está morta. Em seu lugar apareceu a proxeneta, a cafetina, o gigolô, o rufião. Não há nem mais orquestra nem luzes iluminando as belas francesas de araque. Há sim, patricinhas, mocinhas, sem vida, sem norte, apenas prostitutas.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Canção com laço de fita (Poesia)

Canção com laço de fita



Ah, o amor chegou como presente
cheio de colorido e todo enfeitado
tanta surpresa assim de repente
que não foi aberto e logo guardado

quando a vontade a fita desfez o laço
com olhos ávidos e coração ardente
nada encontrou mais que um abraço
e todo amor desejado estava ausente

onde está agora o amor esquecido
que não veio junto com a lembrança
e nesse presente apenas esperança?

onde está agora o que preciso ter
qualquer coisa sem laço e enfeite
qualquer coisa linda chamada você?


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 93 (Conto)

DESCONHECIDOS – 93

Rangel Alves da Costa*


Quando Carlinhos e Yula chegaram pelos fundos correndo e entraram pela porta da choupana sem qualquer anúncio, assustados, cansados, vermelhos de nervosismo e de aflição, as duas mocinhas se espantaram de tal modo no local onde estavam que Carol derrubou uma xícara que levava à boca.
Com o dedo nos lábios indicando que permanecessem em silêncio, em seguida o menino foi dizendo baixinho que ficassem calmas, com muita calma. E gesticulou chamando-as para o lado de fora, numa espécie de quintal sem cercado algum.
Explicou quem havia desembarcado defronte e estavam lá fora prestes a colocar algum plano diabólico em ação. Ora, disse que se estavam ali àquela hora da manhã certamente não seria para fazer uma visita de cortesia. Coisa boa não seria, com certeza. Então perguntou a Soniele o que pensava em fazer.
Esta disse que simplesmente iria abrir a porta e saber se eles estavam realmente ali à sua procura. Se isso se confirmasse teria que saber do que se tratava, pois havia evitado o máximo reencontrá-los novamente e eles sabiam muito bem os motivos. Não tinha nada a ver com a morte de Gegeu, mas pela injustiça que fizeram com ele, que tanto sofreu e morreu sem conhecer a verdade. Se conhecesse a verdade não faria a besteira que fez e talvez hoje estivesse vivo e fosse um homem muito feliz ao lado da mulher que amava.
E nesse momento, ainda que com muita pressa, Carlinhos disse: “Mas a mulher que ele amava era você e pelo jeito ainda ama, ao menos pelo que sei. Então, tem outras coisas por trás dessa história Soniele?”. E esta respondeu: “Tem, tem muita coisa por trás dessa história, mas era sobre isso e outras coisas que eu ia contar pra você hoje. Ainda vou contar sim, vou contar tudo, mas antes me deixe ir até lá saber se eles ainda estão aí em frente e querem alguma coisa comigo...”.
“Mas isso é muito perigoso, Soniele, eles vieram acompanhados de outra pessoa que deve ser o executor de suas ordens. Você não pode sair porta afora assim, desprotegida e para enfrentar pessoas que não sabe quais são suas intenções. Boas intenções você sabe que jamais seriam...”, disse o menino, segurando no braço da amiga.
“Mas eles não podem fazer nada comigo. Ao menos ele, o coronel não pode fazer nada comigo...”. Carlinhos se danava todo com essas palavras que sempre puxavam outras. “Mas por que ele, principalmente, ele, esse velho maldito, não pode fazer nada contra você?...”.
“Porque esse coronel maldito...”. E as palavras foram cortadas por um chamado estrondoso na porta, um baque medonho e violento. Imediatamente Carlinhos disse que corressem pelos fundos, subindo uns montes mais adiante e se escondendo por lá.
Soniele quis rejeitar a ideia, porém não teve nem tempo de dizer qualquer coisa, pois Yula puxou com força nos braças das duas e saiu correndo, cortando o mato rasteiro adiante, subindo em montes de areia, buscando refúgio. As mocinhas não tiveram opção, seguiram tropeçando assustadas.
Outro baque na porta e ainda mais violento. E uma voz medonha se fez ouvir: “Ou abre essa porta ou vou botá-la abaixo agora mesmo”. Carlinhos já estava na salinha da frente do casebre, porém já seguro de que não abriria a porta de jeito nenhum, deixando que arrombassem, se quisessem.
Abrir a porta seria muito perigoso, pois se fossem fazer qualquer mal repentino a Soniele isto seria feito no momento que ela mostrasse seu rosto. Deixando que derrubassem, seja lá o que pensassem em fazer, não seria praticado assim tão repentinamente, exigindo primeiro entrar para depois cometer a maldade ou qualquer outro ato insano.
E um tremendo baque derrubou a porta pra dentro e quase arruína o casebre inteiro. Tudo balançou, quase tudo desmorona. E o agressor, raivoso e mal-encarado, tomou todo o espaço da porta com o seu tamanho. Encaminhou-se pra dentro chutando restos e deu um grito para ser ouvido pelos que estavam do lado de fora: “Chegue aqui coronel!”.
E de onde estava, já se encaminhando para entrada, o coronel deu outro grito: “Faça logo o que Sofie mandou fazer”. E o homem retrucou: “Mas coronel, é pra pegar qualquer um?”. Nervoso, já colocando o pé na porta, respondeu: “Como qualquer um? Pegue quem tiver aí dentro que Sofie precisa tirar uma dúvida e depois você faz o resto...”.
“Mas é só um menino, coronel”, disse o homem, um tanto contrariado. “Como um menino? Aí não pode ter menino nenhum, mas duas meninas, duas mocinhas e uma que me interessa...”. E lançou, totalmente surpreso, o olhar raivoso bem em cima de Carlinhos, que estava ali em pé, resoluto, firme, ao lado da banquinha do porta-retrato, esperando apenas o desenrolar dos acontecimentos.
O coronel não podia acreditar no que via, no que estava acontecendo. A fúria em pessoa, disse enquanto se dirigia para o menino: “Onde ela está, onde está a maldita da Soniele? Ela não pode estar em outro lugar senão aqui. Onde ela está? Diga...”. O silêncio de Carlinhos o deixava ainda mais raivoso, mais enfurecido, mais colérico. E em seguida ordenou ao capanga que fosse procurar pela casa inteira e no quintal.
Diante do menino, com os olhos crispados de raiva, foi despejando sua ira: “Você não deveria estar lá com aquela velha coroca imprestável? O que faz aqui onde não é chamado, conhece ela por acaso, são amigos, já fizeram amizade, ou veio roubar, diga? Roubar o que aqui, essa esteira, essa moringa, esse retrato?...”.
Falou no retrato e procurou enxergá-lo melhor, pois reconhecia ali algo muito estranho. Na última vez que esteve ali, lembrava muito bem, tinha visto o retrato de uma velha senhora, uma fotografia já amarelada pelo tempo. Mas agora via outro retrato e de um jovem que outro não era senão o seu filho Gegeu.
Segurou o retrato e levantou até os olhos. Aproveitando o momento Carlinhos perguntou: “Conhece o grande amor de Soniele?”. O coronel estava como emudecido e paralisado, e ficou mais perplexo ainda quando ouviu da boca do menino: “Por que mentiu o tempo todo pra ele e Soniele?”.
Foi a gota d’água. O temido homem estava completamente desarmado. Se Carlinhos quisesse sopraria no grandioso e indestrutível coronel e este despencaria no chão feito folha morta.
Lá fora, esperando aflita o desenrolar dos acontecimentos, de cabeça baixa, nervosa demais, Sofie deu um pulo ao sentir alguém tocando no seu ombro. Era Soniele.


continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

sábado, 23 de abril de 2011

A MENINA DO DESENHO (Crônica)

A MENINA DO DESENHO

Rangel Alves da Costa*


As mãos pequeninas se moviam pela folha branca, arrastando lápis de cor azul, amarelo, vermelho, de todas as cores, e depois o desenho ficava por lá, em cima da cama, perto da janela, pois a menina desenhava o que via lá fora.
A mãe se aproximava, olhava a criação da filha, achava sempre linda, mas porque merecia ser vista assim e não como um julgamento bondoso. Contudo, ficava se perguntando por que em cada desenho, lá pertinho de alguma nuvem, a menina inseria sempre alguma coisa que parecia não fazer parte da paisagem.
Assim, todas as tardes, logo após fazer as os deveres e aprender as lições da escola, a menina ia pra sua janela com a prancheta, o papel e a caixa de lápis de cor e começava a desenhar o que via ou que vinha na sua imaginação.
Desenhou um castelo medieval, com uma princesa de coroa na cabeça, solitária na sua janela, como se estivesse olhando adiante e esperando o seu príncipe chegar. Por cima, no céu azul de nuvens brancas, pertinho de um sol esmaecido, a menina desenhou um olho fechado.
Quando a mãe perguntou por que aquele olho estava ali e daquele jeito, ela respondeu que era o olho da princesa apertado de saudade do seu amor.
Desenhou uma paisagem bonita, num campo todo tomado de girassóis, e no centro uma casinha ao lado de um enorme moinho de vento. Embaixo desse moinho, com os cabelos esvoaçantes, uma menina parecendo se entreter com a beleza da paisagem ao entardecer. Mas lá no alto, quase no fundo da hélice, a menina desenhou um olho semiaberto.
Quando a mãe viu o desenho tão lindo, porém melancólico demais, perguntou o que aquele olhou nem fechado nem aberto estava fazendo ali. E ela disse que estava assim porque naquele momento a menina desenhada não sabia se ficava triste nem alegre.
Desenhou um rio correndo, num leito bem raso, azul-claro de pouca cor, colocou umas serras em cada lado e mais abaixo umas pedras, e bem ao fundo, debaixo de umas nuvens escurecidas, prontas para chover a qualquer instante, uma cachoeira com um fiozinho de água descendo. E acima da descida da cachoeira, já chegando perto da nuvem mais negra e mais cheia, ela desenhou um olho aberto.
Quando a mãe encontrou o desenho em cima da banquinha e disse que estava maravilhoso, porém muito triste, muito sombrio, até parecendo que se não chovesse logo aquele fiozinho de água da cachoeira iria sumir. E disse ainda à filha que não tinha entendido mesmo o que aquele olho estava fazendo ali. E a menina simplesmente respondeu que se não chovesse o olho ia chorar para fazer a água correr novamente.
Desenhou uma janela bem grande e dentro dela o rosto de uma menina. Só que a menina que estava na janela era ela, desenhada se olhando num espelho. Sendo ela como ela mesma, não enfeitou muito a janela e apenas colocou dois olhos abertos por cima, já chegando ao telhado.
Quando a mãe avistou o desenho por cima da cama tomou um susto. Ergueu o papel de pouca cor e reconheceu a filha na janela. E quanta felicidade se fez naquele coração maternal, vendo que a filha havia se autorretratada e linda como realmente era. Só não entendeu a presença daqueles dois olhos na parte de cima. Perguntou à menina o motivo e esta disse que os dois olhos queriam dizer que ela já estava enxergando tudo na vida.
Desenhou outra janela e dentro dela novamente ela. Ao lado colocou umas folhas secas voando ao vento e um passarinho entristecido. No mesmo lugar desenhou outros dois olhos, sendo um fechado e outro aberto. O aberto fazia descer duas lágrimas.
Quando a mãe encontrou o desenho foi um espanto só. Quase o mesmo desenho, só que agora mais triste, com folhas e pássaro tristonho e aquele olho chorando. Preocupada, perguntou à pequenina porque o desenho estava daquele jeito. E ela respondeu que era porque já estava enxergando certas coisas da vida e o que via lhe fazia chorar.
Desenhou mais uma janela e se colocou dentro dela. Dessa vez se contentou somente com a janela e com ela, não colocando olho nenhum, nem fechado, nem aberto e nem chorando.
Quando a mãe viu o desenho, cheia de alegria porque aqueles olhos estranhos haviam sumido, nem quis comentar sobre o fato. Mas a filha falou e disse que ali não tinha mais nenhum olho porque os dela bastavam para enxergar a realidade e chorar de verdade.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

De mãos dadas (Poesia)

De mãos dadas



Dê-me as mãos ainda
nossa estrada é para eternidade
caminho que jamais se finda
começo e sempre infinidade

dê-me as mãos agora
vamos correr para a felicidade
depressa, vamos logo embora
o que passou não deixou saudade

vamos subir na montanha
lá existe um Deus e uma oração
lá estará nossa comunhão

vamos falar com esse Deus
unir tuas preces com os rogos meus
que na nossa vida não tenha adeus.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 92 (Conto)

DESCONHECIDOS – 92

Rangel Alves da Costa*


O coronel mandou que levassem o velho sacerdote, já afastado do sacerdócio, tirado dum asilo, pra dentro de casa e puxou a companheira para a escuridão dos cantos, perguntando os motivos daquela aflição toda. Então ela contou tudo, não só fez isso como passou a mentir, distorcendo os fatos, agravando-os. E chegou a dizer que os visitantes tencionavam matá-los.
Além do charuto, o coronel fumaçava pelo corpo inteiro. Acreditava em tudo que ela dizia e por isso mesmo afirmou que tinha vontade de ir até lá e eliminar um a um, mas que não tardaria disso ser feito. Contudo, tinham que se preparar para logo cedinho, assim que o horizonte começasse a se iluminar, pois seguiriam em diligência para o outro lado, para a vila dos pescadores, rumo precisamente ao casebre de Soniele.
Às quatro horas da manhã Pureza, que já estava de pé acerca de meia hora botando seu café no fogo, ouviu alguém bater palma na porta do barraco e saiu em correria, e tudo para não acordar a toda contente Cristina que havia retornado tarde da casa de João pescador. Era costume perguntar quem estava do outro lado, mas dessa vez foi logo puxando a porta.
E tomou um susto de arrepiar, chegando mesmo a sufocar um grito, pois do outro lado estava o esfarrapado, o doido varrido, o profeta Aristeu em pessoa e molambos. Sem reação alguma, principalmente pelo espanto naquela hora do dia, nada conseguiu falar e apenas ouviu ele, calmamente, com o aspecto mais lúcido do mundo, dizer que precisava urgentemente falar com ela. Pediu que confiasse nele e não tivesse medo de nada.
Acabou a velha pescadora mandando que sentasse um pouquinho num tronco perto da porta e foi buscar uma xícara de café para oferecer. Aceito de bom grado, pois nem lembrava mais quando tinha experimentado um cafezinho, não procurou fazer rodeios e foi diretamente ao assunto:
“Sei que todos aqui me têm com como louco, como um doido, como alguém que apareceu para assustar e ameaçar todo mundo. Mas não, sou pessoa normal, apenas um ser humano que já conheceu os mistérios do mundo e já andou por muitos lugares tentando descobrir os segredos e os enigmas da vida. Já morei em palácios e em grutas, mas hoje sou apenas um errante com um único propósito na vida, coisa que me foi dada pelas forças superiores e não porque eu quisesse...”.
E a pescadora se encantava com palavras tão inteligentes, querendo apenas saber aonde ele queria chegar. E o profeta continuou:
“Eis que na minha ultima moradia numa gruta em cima de uma montanha bem distante daqui, quase em outro mundo, estava eu meditando quando me veio uma revelação e esta dizia que eu tinha que encontrar as margens do Rio São Pedrito, pois aqui, na vila dos pescadores, haveria a qualquer hora o confronto entre o bem e o mal. Na vila pacífica tudo ia se transformando aos poucos e mais tarde chegariam desconhecidos para costurar a grande colcha da batalha. Essa colcha, toda em retalhos segundo cada morador daqui e desconhecidos, conteria em seus pedaços elementos do bem e do mal. Assim, a colcha que já está estendida para a grande batalha é toda feita com a bondade e a maldade, saindo vencedor aquele que puder descosturar e afastar o outro...”.
“Mas eu ainda não estou entendendo bem”, disse Pureza. Mas o profeta prosseguiu para explicar:
“A senhora vai entender, espere um pouquinho. É que essa batalha vai ser ganha do lado que um menino estiver. E como a senhora já percebeu, chegou um menino aqui tem poucos dias. E está instalado lá com uma velha senhora bem na casa da maldade, que é o coronel. Então a colcha de retalhos ainda está misturada. E tudo bate com a revelação que recebi quando ainda estava na gruta da montanha, que dizia bem assim, ainda me lembro como se fosse hoje: “Somente o menino Carlinhos sabe o segredo que tanto procura. Os livros estão cegos e mudos, seus pensamentos também, mas o menino não. O segredo que tanto procura está num lugar bem distante, numa rua de uma cidade grande, num menino de rua de uma cidade grande. Desça da montanha e vá procurar. Qualquer caminho será estrada, então desça a montanha e vá procurar. Se queres encontrar o segredo, lá o segredo estará”. Esse menino que está aqui veio da cidade grande, e tudo para cumprir a profecia, e somente ele pode revelar o segredo que irá destruir o mal para sempre...”.
“E que segredo será esse?”, perguntou Pureza, toda nervosa.
“O segredo vai ser revelado pelo menino, mas tem a ver com aquela mocinha que mora ali, disso pode ter certeza. Na verdade, é um segredo dela que ele dará conhecimento, que ele revelará. Por isso mesmo eu vim aqui contar essas coisas a senhora, pois sei que é a pessoa que mais entende de profecias e dessas escritas do destino por aqui. E também pra que a senhora diga a seus amigos pescadores e a todo mundo que não estranhem nada dos acontecimentos terríveis que vão começar a acontecer, pois tudo já estava escrito para ser assim. E também para que saibam que não sou o que pensam, pois cada palavra minha tem seu fundo de razão...”
“E quando vai começar a acontecer o pior?”, mais uma vez perguntou Pureza, agora já demonstrando ares de preocupação. E o profeta, já ficando em pé para se retirar, respondeu:
“Hoje, já. Tudo estava previsto para começar após a inauguração daquela igrejinha, porém ela não vai ser inaugurada, ainda que já tenha chegado padre pra celebrar missa”. A pescadora questionou do por que não haver inauguração e ele completou: “Porque igreja não pode ser dividida entre o bem e o mal. Então somente quando o bem vencer essa guerra é que ela vai verdadeiramente abrir suas portas para todos”. E depois voltou para os seus esconderijos.
No outro lado do rio a noite foi mais curta que o normal. Na verdade, nem o coronel nem Sofie dormiram do restante da madrugada até o amanhecer. Trancados no quarto, apenas ficaram tramando maldades em cima de maldades, discutindo estratégias para serem aplicadas logo mais, logo ao amanhecer. Contudo, por mais que soubessem o que deveriam fazer, tudo esbarrava no fator Soniele. O que fazer com ela, destruí-la? E se ela abrir a boca pra dizer o que não deve e não pode?
Nem bem surgiram as primeiras cores da manhã e o coronel e sua esposa já tinham saído do quarto. Porém, não apareceram primeiro do que Yula e Carlinhos, que já estavam lá fora na beirada do rio. Mesmo sem nunca manejarem um barco, verdade é que os dois tinham alugado a mesma embarcação que os havia conduzido para o outro lado no dia anterior.
Yula, que não parava de falar em Carol um só instante, estava mais que ávido para aportar ali defronte ao casebre, olhar adiante e saber que ali dentro estava a mulher dos seus encantos, da sua paixão verdadeira. A primeira, era verdade, mas parecia única e eterna. Já Carlinhos até havia sonhado com Soniele, só que ela com a boca costurada e com o pássaro preto de olhos de fogo procurando atacá-la. Era sinal que ela corria perigo, e por isso aquela pressa toda.
Os meninos atravessaram o rio antes que o coronel e Sofie subissem noutra embarcação. Barqueiros de primeira viagem, o pequeno barco levando os rapazinhos foi tomando, e cada vez mais, um rumo diferente daquele que eles queriam. Foram parar quase na curva do rio, por trás de uma imensa pedra. Desceram e foram caminhando pela margem rumo à moradia das duas.
Ainda estavam longe quando avistaram a outra embarcação já no meio do rio, se dirigindo para o local onde deveriam ter aportado. Carlinhos pediu para que se abaixassem por trás de umas moitas para não serem percebidos e assim ficaram esperando para saber quem eram os passageiros. E não demorou muito e o coronel e a esposa pisavam na terra firme, bem próximo do casebre.
“Agora vamos rápido, mas por dentro do mato, de modo que a gente chegue rapidamente pelos fundos da casa. Vamos, vamos...”. Disse Carlinhos, enquanto puxava o braço de Yula e saíam em disparada.


continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com