SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 14 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - 83 (Conto)

DESCONHECIDOS – 83

Rangel Alves da Costa*


Morte quase igual às outras: um ser estranho que inesperadamente, num voo rasante, avança sobre a pessoa e perfura um dos olhos ou os dois. Morte certa, como se o bico ou instrumento usado fosse envenenado, fosse possuidor de uma força sinistra com poder de aniquilar através de um ou dois golpes. Já havia sido assim com Climério, com o médico e o barqueiro, esses dois ainda no mesmo dia do incidente com Quelé.
Por sinal, Dona Pureza não se conformava com a morte do amigo e chegava a dizer que talvez todos tivessem uma parcela de culpa pelo ocorrido. E dizia que só mesmo uma força perversa para encantar aquelas pessoas, tanto ela como Soniele e os outros, motivando aquela cantoria e dança quando não fazia muito tempo que duas pessoas haviam morrido nas águas ali próximas. Só mesmo com a interferência de uma coisa muito maldita, dizia chorando.
Mais tarde, e noite adentro, na sentinela, cantaram dolentemente: rezas para encomendar a alma do amigo pescador:

“Chegai pecadô que há de morrê,
Chama por Jesuis para tê valê.
Chama por Jesus enquanto é tempo
Quando a morte vem, mata de repente.

Quando a morte vem, calada, sozinha,
Dizendo consigo, esta hora é minha.

Chama por Jesuis que Ele mandará
Um anjo da guarda para te ajudá.

Torna a chamá, que ele vem também,
Com o seu ao lado, para sempre. Amém.
Eu ofereço esta reza
Ao sinhô que tá na cruz,
Que nos livre do infermo
Para sempre. Amém Jesus.

E até perto do entardecer, quando foram sepultar o corpo do amigo no velho cemitério de pedra e cruz, a vila dos pescadores era só espanto diante do ocorrido e indagações sobre a continuidade daquelas mortes. Como estava, já na terceira tragédia do mesmo jeito, não podia continuar.
As pessoas dali tinham que tomar uma providência urgente sobre a presença daquele pássaro maldito que ceifava vidas impiedosamente. Marcaram para se reunir ainda aquela noite na casa de Pureza, mas logo foram reconhecendo que seria impossível diante do tempo medonho que se formava no horizonte, com nuvens pesadas e negras, anunciando uma grande tempestade. E quando Dona Pureza olhava pra cima e dizia que vinha pingo pesado nem adiantava mais discutir.
Mas desde cedo que o tempo se formava para que a chuva caísse a qualquer momento. O sol não brilhou um só instante, desde o alvorecer que parecia escondido por trás de nuvens carregadas, nuvens de chuva, de chuvarada. O vento forte não mais soprava, mas sim levantava pelo ar galhos ressequidos e folhas secas. As roupas estendidas no varal tinham de ser recolhidas para não voar por aí. As águas do rio mais escurecidas do que de costume, demonstravam claramente que estavam esperando pingos novos para se lavar.
Era um tempo triste, um ar melancólico, um aspecto entristecido espalhando-se por todos os lugares, tornando as pessoas angustiadas, saudosas, melancólicas, doídas por dentro. E esse tempo de desesperança começou a fechar de vez assim que os amigos iam retornando do cemitério. Estalos de relâmpagos começaram a ser ouvidos, os trovões zoaram zangados, a ventania queria levar tudo que encontrasse pela frente, a chuva começou a cair com uma força assustadora.
No fim da tarde já era noite fechada, de breu. Luz somente dos relâmpagos que cortavam o quadrante ou dos bicos dos candeeiros que chamejavam por dentro dos barracos. E também das velas acesas pelos cantos, implorando providência divina para aplacar aquela fúria da natureza e impedir que as moradias tão frágeis fossem completamente destruídas.
O rio bebia gulosamente as águas que se derramavam de cima; o barquinho de Quelé, que estava amarrado com sete cordas na beirada, não resistiu aos puxavancos das ondas e se soltou, sendo levado pelas águas como se fosse um brinquedo. Soniele abriu a porta e viu quando as luzes de um relâmpago iluminaram lá fora, na beirada, e pensou ter avistado uma pessoa em pé olhando pra sua casa. Não pensou, era ele mesmo. Era Gegeu.
“Onde estão as velas?”, perguntou à amiga Carol. E esta disse que só tinha uma e que estava bem do lado do porta-retrato. Então Soniele correu na direção da fotografia para acender a vela ali mesmo, na intenção da alma do rapaz que parecia estar na tempestade lá fora. E se surpreendeu porque o porta-retrato estava ali, o retrato também, mas a imagem havia sumido.
E imediatamente imaginou que se ele não estava ali era porque estava realmente lá fora. Era ele sim, clareado pela luz do relâmpago. E acendeu rapidamente a vela e orou como jamais tinha orado, e implorou como jamais tinha implorado, e se apiedou como jamais tinha se apiedado, para que aquela alma buscasse de vez o seu caminho de salvação.
E depois disso contritamente chorou. E enquanto chorava confirmou seu impossível amor. Mas como ela queria que tudo fosse diferente; como ela queria que tivesse sido possível amar corporal e sexualmente aquela pessoa que já começava a aparecer novamente na fotografia.
A chuva grossa e barulhenta, os trovões, os raios e relâmpagos e os ventos vorazes pareciam não querer cessar. Mas uma pessoa agradecia por aqueles momentos de natureza revoltosa, pois somente nesse turbilhão é que conseguia encontrar respostas para as indagações mais difíceis, somente nesses instantes, debaixo da fúria desses elementos da natureza, é que a magia respondia e resolvia as questões mais difíceis. E essa pessoa era Pureza, a pescadora e costumeira também nos encantamentos.
Com urgência, e aproveitando-se da situação tão propícia, ela queria saber o que estava por trás da presença daquele pássaro assassino na vila dos pescadores. Assim, disse a Cristina que precisava resolver um problema lá fora e saiu com uma bacia vazia. No escuro da noite tempestuosa deixou que os pingos enchessem a bacia e em seguida fez um breve ritual de chamamento aos encantados, aos seres da magia, e esperou que o relampejar iluminasse a água agora borbulhante.
E pelo ar o relâmpago lançou sua luz mais intensa, seu risco mais forte, e o espelho d’água da bacia estremeceu ao mostrar o rosto do coronel Demundo Apogeu. Os encantamentos não mentiam: o coronel tinha algo a ver com a presença do pássaro assassino.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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