DESCONHECIDOS – 70
Rangel Alves da Costa*
Mesmo com a previsão feita por Dona Pureza de que Soniele se recuperaria logo, estaria bem melhor no dia seguinte, tal esperança não se confirmou. O dia amanheceu com a mocinha com o corpo todo avermelhado, suando frio, porém queimando de febre.
Passou a noite inteirinha dizendo palavras desconexas, coisas do tipo “eu vou Gegeu”, “foi tudo mentira”, “é tudo mentira”, “me deixe aqui”, “a lua chorou”. E tudo bem ao lado de Carol, que não deixou a amiga sozinha um só instante, num misto de medo e preocupação. Os pescadores insistiram em ficar ali para ajudar no que fosse preciso, mas ela disse que não se preocupassem que cuidaria dela com muito carinho e correria atrás deles se fosse preciso.
Como se não bastasse a noite em claro, logo cedinho Carol tomou o maior susto. Eis que na porta ainda aberta, ali parado, em pé, apareceu o profeta errante em pessoa. A primeira coisa que quis fazer foi gritar e um grito tamanho que todos pudessem ouvir, mas uma força estranha lhe conteve e Carol levantou corajosamente e foi em sua direção perguntar o que queria ali.
“Não tenha medo menina, não quero nem vim assustar ninguém. As pessoas se enganam comigo, mas não sou de assustar ninguém. Apenas digo o que vai acontecer e pronto. Minha missão aqui é alertar a todos e esperar o dia que todos os desconhecidos estiverem aqui e a profecia começar a acontecer...”.
“E que profecia é essa?”, perguntou Carol. Então Aristeu prosseguiu respondendo:
“A profecia é o fim desse mundo aqui. Esse mundo aqui de rio, de água, de pescador e morador e de tudo que há ao redor. Mas antes desse mundo acabar todos sentirão a dor que ninguém nunca sentiu, chorarão as lágrimas que ninguém nunca chorou, se misturarão com os bichos como ninguém jamais se misturou. Isso aqui vai virar um pandemônio, vai se transformar num rio de sofrimento e num lugar de morte na vida. O passado de muita gente vai chegar como um espelho que a todo instante se quebra. O pecado vai estar pelo ar como o pó das tardes de ventania. Quem viver verá. E para impedir a destruição somente o menino sabe o segredo. O menino ficará entre o passado e o presente. O passado é uma velha senhora e o presente é uma jovem mocinha. Você já viu o menino aqui? Se não viu é porque ele vai chegar, como vai chegar a senhora e como já está a mocinha. Por isso mesmo é que ela não pode morrer...”.
“Mas você está falando de quem?”, indagou assustada. E Aristeu prosseguiu apontando para Soniele deitada toda enrolada na esteira: “A mocinha é essa aí, por isso que ela não pode morrer. Se ela morrer também todo mundo vai morrer antes do tempo, pois ela estando viva há ainda uma esperança que o segredo do menino possa mudar a situação”.
“Me desculpe moço, mas não estou entendendo nada e agora tenho que dar um remédio a ela...”, disse Carol, desejando que o estranho fosse logo embora. Ele já ia mesmo se retirar, mas disse antes de sair: “Se ela não ficar logo boa, pegue água do rio, lá no lugar onde ela tomou banho e dê outro banho nela. Quando a água estiver escorrendo do corpo coloque um pouco numa caneca, deixe dormir no sereno e amanhã dê pra ela beber. Garanto que vai fica boa num instantinho”.
Que alívio, ficou pensando Carol quando o profeta esfarrapado se retirou. Só faltava essa, dar pra beber água de banho e mais ainda banho de doente, só sendo mesmo maluco. Mas ainda bem que ele não é assim varrido como dizem não, pois fala até umas coisas que dão pra se ouvir. Mas outras, como essa coisa de profecia, de segredo, de menino e mocinha, sei lá, só estando de pedra mesmo. Ficou pensando enquanto ia limpar o suor do rosto da amiga.
Assim que o profeta saiu começaram a chegar os pescadores para saber como a doente estava. Pureza deu uma espiada e disse que talvez fosse melhor mudar de chá, vez que pelo jeito aquele não tinha surtido nenhum efeito. João pescador queria porque queria, a todo custo, colocar a moça no barco pra levá-la até o médico. Quelé foi de uns que opinou que se fosse coisa simples já tinha sido curada. Se ainda continuava doente porque a doença era mais grave e ninguém sabia qual era.
Soniele chamou-os lá fora e disse uma coisa que causou espanto em todos: “Por enquanto deixe ela aí. Mas se o senhor fala tanto em médico pescador João, então quero que vá até a cidade mais próxima que tenha um bom e traga até aqui. Não se preocupe com dinheiro não, pois quanto a isso o que tenho dá de sobra. Você vai logo com o dinheiro e pergunta quanto é pra ele vim até aqui. Quando ele disser quanto é você paga logo a metade e diz que o restante entrega aqui. Combinado? Então espere aí um minutinho que vou buscar o dinheiro”.
E quando voltou todos ficaram apalermados em ver tanto dinheiro. Todo mundo envergonhado em ver aquele monte de dinheiro nas mãos da mocinha que ninguém sabia o que dizia nem pra onde olhava. E antes de entregar o dinheiro do médico ela fez um gesto que jamais seria esquecido por aquele pequeno grupo. Disse que eles eram muito bons e a cada um entregou igualmente uma quantia. “Tome isso aqui, é seu, é um presente meu”.
Não teve um que ao menos não umedecesse os olhos e quisesse se ajoelhar aos seus pés. Ela disse que parassem com aquilo e que só queria que continuassem sempre amigos. Ainda sem saber o que fazer diante do presente recebido, avistaram uma canoa que vinha ao longe e comentaram que aquela embarcação de outro lugar só podia trazer gente desconhecida e que talvez fosse adiante, para alguma outra povoação ribeirinha.
Mas não. Aos poucos a canoa foi procurando a beirada e dentro de uns cinco minutos a jornalista Cristina começou a descer.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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