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sábado, 30 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - Penúltimo (Conto)

DESCONHECIDOS – Penúltimo

Rangel Alves da Costa*


Completamente insana, mas não menos assustada com o pássaro preto que fazia rasantes sobre sua cabeça, Sofie começou a gritar que não levasse seu filho não, e repetindo sempre o mesmo temor, ao invés de entrar para a igreja, como esperava o completamente atordoado coronel, correu em direção ao precipício e num passo desprendeu-se do seu brinquedo e desapareceu.
O coronel, percebendo que não havia nada a fazer para salvá-la, apenas procurou proteger-se da ave que nervosamente rondava o local e estava prestes a entrar porta adentro, ordenando que esta fosse imediatamente fechada. Caminhou agitado, ansioso, embrutecido, perante os seus prisioneiros e, sem olhar para qualquer um, gritou mandando que soltassem as mãos do velho padre. Este teria que imediatamente dar início aos preparativos para a celebração da missa.
O velho homem da igreja, enfraquecido, cansado, com os braços doloridos após tanto tempo sendo mantidos amarrados, quando foi liberado praticamente não sabia nem o que fazer. Lembrou que sua maleta com objetos e vestimentas apropriadas para a celebração haviam ficado na casa e, até amedrontado por ter de fazer isso, pediu para ir lá vestir os paramentos e trazer os outros objetos necessários.
Esperava ser açoitado por ter feito tal pedido, mas se surpreendeu ao obter tal permissão, ainda que acompanhado e sob a dureza de outras recomendações. Assim, ainda sem se voltar um só instante para os pescadores, os rapazinhos e as moças ali mantidas em vigilância absoluta e ainda com as mãos amarradas, o coronel levou o padre até a porta e ficou meio escondido do lado de dentro por medo do pássaro, aguardando apenas o seu rápido retorno.
Quando o velho e arrependido homem da igreja entrou na casa e seguiu até o quarto, empurrando a porta para colocar os paramentos, foi surpreendido por alguém que avançou sobre suas costas, tapou-lhe a boca com a mão e em seguida, após mostrar o rosto, colocou o dedo diante dos lábios pedindo silêncio. Feito isso, indicou a janela entreaberta, mostrando que se ele quisesse fugir teria de ser por ali.
Perplexo diante de tal situação, completamente tomado de pavor quando pôde olhar no rosto de quem havia lhe atacado, ainda que tentasse gritar nenhum som sairia diante de tão medonha ocasião. Os olhos do padre não acreditavam no que viam, sendo dominado por um homem esquisito, com cabelos desgrenhados, maltrapilho, aspecto de louco, porém de bom tratamento. Era o profeta Aristeu.
Sempre rondando a casa, fazendo de tudo para não ser avistado, Aristeu não só viu quando Pureza foi levada para o quartinho dos fundos, como quando o velho padre desceu da igreja para se dirigir até ali. Atento a tudo, agindo estrategicamente e sabendo as consequencias do que estava fazendo, não só libertou a pescadora dos encantados como livrou o padre da sanha do maldito homem, para em seguida tomar o lugar do religioso.
Assim, após a fuga do padre pulando a janela, abriu sua maleta e percebeu que ali tinha tudo que tanto precisava. Uma batina escura, objetos próprios para o culto e outros panos que compunham o hábito. Contentou-se com a batina e teve uma genial ideia, utilizar um daqueles panos numa espécie de capuz, impedindo que o seu rosto fosse rapidamente reconhecido. Ademais, só precisaria se ocultar daquela forma até entrar na igreja.
O profeta ficou um perfeito sacerdote, ainda que aquele capuz lhe desse uma aparência medieval. Sempre de cabeça baixa, saiu do quarto e seguiu em direção às escadarias que levavam à igrejinha. Está chegando a hora, dizia a si mesmo. E pelo ar o pássaro preto agitava-se, subindo e descendo, fazendo volteios infindos ao redor do templo, como se procurasse qualquer brecha para entrar.
Ao chegar à entrada, sempre vagarosamente à moda dos celebrantes, baixou ainda mais a cabeça diante do coronel que acenava do lado de dentro para que se apressasse, para que entrasse logo para ter início a celebração.
O profeta estilizado até nos trejeitos, caminhava seguindo o coronel, com uma mão carregando a maleta e outra fazendo o sinal da cruz de um lado para o outro, em direção ao pequeno altar. Porém, já chegando à altura do pequeno púlpito, lugar onde as escrituras sagradas são lidas, se assegurou que o sinistro homem não percebia e virou um pouco o corpo, levantou o capuz e deixou ser reconhecido pelos pescadores.
Surpresa e espanto geral, num misto de bocas repentinamente abertas e murmúrios de “ooohs!!!” em uníssonos sons, ressonando pelo ambiente fechado e chamando a atenção do coronel, que se virou rapidamente para ver o que era. Mas tudo voltou à normalidade no instante seguinte, de modo que o profeta não havia se denunciado.
Ao se voltar para ver de onde saíam aqueles sons característicos da visão de algo surpreendente, Demundo Apogeu intuiu que seus olhos estavam vendo muito menos do que deveriam enxergar. Pela rápida passada de olhar perante o grupo de prisioneiros, não percebeu a presença nem do maluco linguarudo, como ele chamava Aristeu, mas principalmente de Soniele. Virou-se novamente e confirmou a suspeita. Os dois realmente não estavam ali.
E nesse momento um grito horrendo irrompeu e se alastrou: “Onde estão aqueles dois? Tragam aqueles malditos até aqui agora mesmo!”. E no mesmo instante prometeu triplicar o pagamento do chefe dos capangas se trouxesse Soniele e o profeta antes mesmo da missa acabar.
E disse ainda que aquilo era uma questão de vida ou de morte, devendo a todo custo arrastar eles de onde estivessem. E apressou o capanga dizendo que se não cumprisse sua ordem poderia comprar passagem para o outro mundo, pois o mataria ainda naquele mesmo dia. Sem ter opção, até mesmo com medo de se tornar vítima da sanha assassina do homem, o pistoleiro arregimentou apressadamente dois homens e subiram num barco em direção à vila dos pescadores.
Assim que deu a ordem ao capanga o coronel voltou-se para aquele que pensava ser o padre e mandou que começasse a celebração. Sempre de cabeça baixa, o profeta deu início ao ato com estas palavras:
“Meus irmãos de dor e sofrimento, neste momento Deus mais fortemente nos abraça para proteger contra a fúria, a mentira, a barbaridade, o engodo, a vileza, a crueldade e o instinto assassino desse homem amaldiçoado que está aqui. E este tão infame homem, pecador por natureza e cruel mentiroso por desejo próprio, não é outro senão Demundo Apogeu, maldito coronel da mentira...”.
Estupefato, como que paralisado diante de tais palavras, o coronel quis imediatamente reagir, mas as forças não lhe atendiam. E teve que continuar ouvindo:
“Assassino, cruel, mentiroso é o que ele é. Sempre viveu da mentira e com esse dom dos imprestáveis roubou a felicidade de muitos. Talvez vocês não saibam, mas este homem da mais pura infâmia tem uma filha que mandou para prostituição porque a pobre coitada da mãe dela não foi capaz de ter um filho homem. Como a esposa dele, desse falso coronel, não podia ter filhos, ele jurou arranjar um filho homem para presenteá-la e engravidou uma mocinha chamada Custódia. Por não ter nascido filho homem, pegou a menina e entregou a uma dona de cabaré chamada Sofie, criando-a para servir de puta, como realmente aconteceu. E o nome dessa puta é Soniele, filha do coronel...”.
“Atirem, atirem, matem esse falso padre!”, implorou o coronel, quase sem palavras, tomado de uma dor indescritível. Contudo, misteriosamente não foi atendido pelos capangas. E uma outra voz se fez ouvir, dessa vez a do menino Carlinhos:
“Na verdade, a dona do cabaré, que era Sofie, ficou com a menina e deu ao coronel um filho que havia parido, de uma relação com um dos freqüentadores da casa, pedindo que o coronel espalhasse que o menino era filho deles. Assim, Gegeu nunca foi filho do coronel, mas sim a menina Sofie. Os dois não tinham nenhum parentesco, não era nada um do outro, a não ser uma paixão que nasceu e que nunca pôde trazer felicidade porque Sofie sempre disse a Soniele que se afastasse de Gegeu porque eles eram irmãos. E foi por isso que ela sempre evitou o rapaz, fazendo com que ele sofresse mais e mais e até chegasse o dia de cometer o suicídio. A coitada da mocinha foi descobrindo tudo e hoje vive se culpando por não ter correspondido ao amor de quem também tanto amava. E tudo por causa desses dois, que são culpados pela morte do rapaz e agora querem dar o mesmo fim a ela. E é por isso que ele quer Soniele aqui, para matá-la e tentar apagar de vez o erro cometido...”
E o profeta voltou a falar: “Mas não somente isto, pois ele quer Soniele aqui também para pedir perdão. E assim que ela o perdoar, uma maldição que existe nele vai retomar suas forças e depois quem matará a mocinha não será mais o mesmo, mas o pássaro preto de bico assassino que vai sair do seu corpo e atacar. Mas ele não conseguirá, pois o pássaro já vive em outra pessoa, uma pescadora que vocês conhecem, chamada Pureza, cujo último ato de maldade será contra o próprio amaldiçoado”.
E de repente, surgindo de uma brecha qualquer, o pássaro deu um voo certeiro em direção ao coronel e este caiu estendido com o peito sangrando.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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