SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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sexta-feira, 15 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - 84 (Conto)

DESCONHECIDOS – 84

Rangel Alves da Costa*


Após o susto em enxergar o rosto do temido coronel refletido ali na água bacia, Pureza se ajoelhou, curvou mais o corpo e levou a cabeça próxima ao chão, depois bateu com as duas mãos, e repetidas vezes, na areia molhada e pronunciou palavras somente inteligíveis para ela e seus encantados.
Não comentou nada à jornalista, que encontrou rabiscando alguma coisa perto do candeeiro. Contudo, nessa noite não conseguiu fechar os olhos, não teve jeito de dormir um só instante. A todo mundo momento lhe vinha à mente a imagem do coronel voando feito aquele terrível pássaro e dizimando quem ele quisesse.
E nesses momentos de insônia aterrorizante foi juntando as coisas, certos fatos e começou a concluir que o coronel, se hoje era tido como pessoa boa e atenciosa, ainda assim tinha que fazer muito para limpar seu passado. Um passado de usurpações, de destruições de lares de famílias pobres, de tirar de pessoas humildes o seu único chão, além das mortes encomendadas, das inúmeras tocaias e emboscadas, e muitas outras atrocidades que os mais velhos não tinham como esquecer.
Um passado sujo, indigno, abominável. E tudo em nome do enriquecimento cego, da busca incontida do poder através do latifúndio. Era uma época, e não muito distante, que as vastidões improdutivas de terras serviam como assento ao lado dos governantes, dos chefes políticos de prestígio. Daí o coronelismo sem patente; daí ele ser chamado e conhecido como coronel.
Não restavam dúvidas que isso havia deixado muitas marcas ainda não apagadas. Fazer um bem agora, aqui ou acolá, não redimia em nada uma vida de valentia destruidora. Difícil apagar a maldade com a simples bondade, senão o corpo inteiro primeiro pagar pelos erros cometidos. Ademais, estava mais que evidente que todo mundo temia o homem por esse lado desumano de tempos passados.
O lado mal e atroz do coronel, mesmo que ele não soubesse nem quisesse, havia se apossado daquele pássaro. E ali nas proximidades da vila dos pescadores porque foi onde ele escolheu para fazer surgir, na igreja, a cruz do bem, a cruz para proteger a região contra a maldade e suas armadilhas.
Os seres do mal, sempre atentos ali dentro do lado escuro da montanha, despertaram para se contrapor aos desejos do homem. E sabendo desse passado cruel, maldoso, então foi fácil buscar nas profundezas do tempo a terrível história e transfigurar no pássaro a figura sinistra do coronel. E isto porque o lado escuro da montanha tinha que se valer de alguma força destrutiva contra aquela pessoa que, com a construção da igrejinha, queria também destruí-lo.
E até que o problema fosse resolvido, e Pureza ainda não sabia como, o pássaro continuaria voando pelo lugar com sua sede cruel. Se a igrejinha já estava para ser inaugurada, então mais um motivo de preocupação, pois antes que o bem passasse a prevalecer na cruz erguida na montanha, certamente que o mal procuraria se aproveitar, com todas suas forças e intensidade, desses próximos instantes.
Com o pensamento voltado para tais situações, a pescadora dos encantados sentiu que a tempestade, temporal, ou seja lá o que fosse, já havia passado. Restava agora uma chuva fininha na manhã que já começava. Como não tinha dormido a noite inteira, resolveu enganar o sono que lhe consumia indo tomar um banho de roupa e tudo no rio.
Ainda dentro das águas, feito um velho peixe tão conhecido do rio, ela viu o sol despontar acanhado, amarelado, lá pelas distâncias que se tornavam azuladas. Ainda bem que parece que vai ser um dia normal para se pensar num montão de coisas, dizia ela. E olhando ao redor, imaginando como seria bom que nada desses mistérios medonhos estivessem acontecendo no lugar, observou adiante uma cena estranha e de arrepiar. Um corpo quase desfigurado de uma mulher levantou debaixo da água e começou a mirar raivosamente em direção à sua cabana.
Mesmo num estado deplorável, não tinha dúvidas que ali estava a falecida esposa de João pescador. Quando voltou os olhos pra sua casa, de modo a saber o que ela olhava, avistou a jornalista Cristina abrindo os braços, se espreguiçando. E disse a si mesma que o ciúme buscava a todo custo fazer suas vítimas. Mas com essa sabia lidar. E traçou uma cruz pelo ar, disse uma prece fervorosa e num instante ela sumiu novamente.
E saiu da água apressada para contar o ocorrido à amiga, que de tão admirada com a manhã, nem de longe tinha percebido nada do que tinha se passado enquanto a pescadora se banhava. Puxando Cristina por um braço, Pureza pediu que ela sentasse enquanto fervia o café.
De xícara na mão relatou o recente episódio e quanto mais detalhava mais achava que a ouvinte não demonstrava grande preocupação. Somente depois, assim que esta fez todo o relato do ocorrido no barco enquanto fazia a travessia no barco de João, é que Pureza compreendeu os motivos de ela não ter ficado tão afetada. Mas a pescadora sim, pois levava às mãos à cabeça num ar de desespero e olhando pra cima ficava repetindo: “Meu Deus, meu Deus, mais esta meu Deus. Jogai sua luz sobre este lugar, sobre nós, salvai-nos, ó meu bom Deus!”.
Depois a pescadora baixou a cabeça e ficou zanzando de um lado pra outro, pensando numa coisa e buscando palavras pra falar. “Só tem um jeito de resolver esse problema, essa revolta ciumenta da defunta com relação a vocês. Mas primeiro preciso que você me responda se você fez agrado no coração de João e ele fez agrado no seu. Você tá namorando com esse pescador?”.
Cristina se viu praticamente sem saída, mas enfim procurou responder: “Nem dava tempo da gente tá namorando Dona Pureza, faz tão pouco tempo que estou aqui. Mas pra falar a verdade acho ele tão bonito, um rapaz tão verdadeiro, que posso dizer sim que não diria não se ele me oferecesse uma flor...”.
“Então já tá resolvido minha filha. O amor. Ah, o amor esse dom dos bons que tem o poder de unir quem se gosta e afastar toda maldade ao redor. O amor que sobe e desce montanhas ao mesmo tempo e você pega ele no ar e em todo lugar. O amor que ilumina na escuridão e faz a gente gritar de boca fechada. O amor que é tudo, minha filha. O amor que é tudo e muito mais. E se entre vocês for possível esse amor, então já tá tudo resolvido...”.
“E por que tudo será resolvido pelo amor, Dona Pureza?”, perguntou Cristina. “Mas ora, minha filha, simplesmente porque ela, a morta, tá fazendo tudo pra que vocês não se juntem. E quando perceber que não tem jeito mesmo, então ela será chamada de volta para chorar seus ciúmes por lá e deixar que o amor de vocês prevaleça. Isso porque não tem força maior que o amor e somente ele tem o poder de afastar esse espírito ciumento. Mas vocês precisam aceitar esse amor, pois enquanto ficarem nesse chove não molha ela ainda vai querer voltar pra atrapalhar, para fazer o pior, e esse pior pode ser muito pior. Agora só depende de vocês dois”.
Cristina não disse nada, mas estava muito feliz pelas palavras da amiga. Sobre outras pendências tinha que falar com o próprio coração, buscar algumas respostas. E ainda de xícara na mão, com o café renovado, saíram para tomar um pouco de sol.
E enxergaram as embarcações da comitiva do coronel Apogeu que vinha cortando as águas. Dona Sofie, Dona Doranice e o restante das pessoas estavam chegando. Foram interrompidas na apreciação por uma voz vinda dos morros lá em cima:
“Todos já estão aqui. Todos os desconhecidos agora vão se unir e desunir. A festa vai começar e o fim do mundo também”. Era Aristeu com o seu grito profético.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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