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terça-feira, 12 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - 81 (Conto)

DESCONHECIDOS – 81

Rangel Alves da Costa*


Remando cuidadosamente no barquinho, vez que àquela hora da tarde as águas estavam mais perigosas, João pescador quase não olhava para Cristina. Não sabia por que, mas estava envergonhado da presença dela.
Cristina procurou logo quebrar aquele pesadíssimo gelo e abriu o diálogo. “Não estou vendo você usando a corrente João, guardou para outras ocasiões especiais?”.
“Se eu disser a moça num vai acreditar. Lembro que cheguei em casa e guardei num canto mais escondido, para usar depois, pois eu ia usar ela sim. Mas quando fui procurar o canto tava mais limpo. Foi coisa de meia hora, sem ter chegado ninguém em casa nem nada. Eu mesmo não sai do barraco, fazendo uma coisa aqui e outra ali, pois já tava quase escuro. Só sei que voltei lá com o candeeiro, tateei, procurei por todo lugar e num teve jeito. Pensei que era por causa da escuridão e deixei pra lá. Mas quando foi de manhã revirei tudo de novo e num achei mais ela de jeito nenhum. A moça vai me desculpar, mas foi bem assim desse jeito”.
“Realmente, é muito estranho, mas talvez você a encontre quando menos esperar. Mas depois vou lhe dar outro presente...”. E João falou acanhado: “Precisa não moça, precisa não. A moça tão bonita se preocupando com um pescador como eu. E pra que eu queria também de me enfeitar? Pra quem, moça?”. E Cristina deu uma resposta que gelou completamente o pescador.
“Pra mim João, pra mim. Acho você tão bonito. Só acho que você deveria cortar mais um pouquinho aqui no cabelo...”. Arrastou-se em direção ao rapaz e tocou no seu ombro, levantou um poço mais a mão e acariciou o cabelo. O coitado do rapaz não dava conta de si, não sabia mais o que fazer. Ia dizer alguma, porém um fato inusitado tirou-lhe as palavras da boca e a mão dela do seu cabelo.
O barco que singrava tranqüilo nas águas calmas do momento, de repente começou a balançar fortemente, como se uma onda gigante fosse se aproximando, um vendaval estivesse passando por ali, alguma coisa estivesse sacudindo as águas ao redor.
João gritava para Cristina se acalmar e esta se segurava como podia e onde pudesse colocar as mãos. “Segure firme aí que já estamos chegando perto da beira do rio, é só um instantinho. Segure bem firme...”.
Quando olhou atrás para ver como ela estava percebeu uma mão horrenda surgindo das águas, subindo até o barco e puxando-a com força. João largou o leme e correu na direção da jornalista que gritava desesperadamente, mas não conseguiu evitar que a mão a arrastasse velozmente para dentro das águas.
“Socorro João!”, foi o último grito desesperado que ele ouviu enquanto o corpo dela era puxado para o desconhecido. Ele nem pensou duas vezes e mergulhou de roupa e tudo, afundando para ver se enxergava para onde tinha sido levada. Diferentemente do que se poderia imaginar, as profundezas do rio estavam calmas e com águas limpas, sem parecer em nada com aquela vexação lá de cima.
Nadou de um lado pra outro até perceber as águas mais agitadas nas proximidades. Foi naquela direção com toda força e viu Cristina se debatendo, agarrada e sendo puxada por uma pessoa que, mesmo ali e naquelas condições, conheceu muito bem. Era a sua falecida esposa.
Lembrou que levava sempre um crucifixo no bolso da frente da calça, conseguiu retirá-lo e avançou com o símbolo sagrado na mão. Quando a falecida arregalou os olhos para o crucifixo, foi perdendo as forças, debateu-se toda, começou a desaparecer e Cristina ficou livre para ser segurada e arrastada agora pelas mãos do pescador.
Demonstrando uma força descomunal, tendo o cuidado de ser rápido para que ela não engolisse água demais, conseguiu alcançar a lâmina d’água agora calma e segurar num dos lados do barco para colocá-la pra dentro. Depois subiu na embarcação, verificou o estado de saúde da moça e sentiu que precisava fazer respiração boca a boca. Assim, sem pensar noutra coisa senão salvá-la, tocou pela primeira vez nos lábios dela.
Durante o procedimento ouviu-se um berro terrível saindo das águas. João tinha certeza de onde havia partido e pela primeira vez olhou para a igrejinha lá em cima da serra e como nunca desejou que ela fosse logo inaugurada para espantar os espíritos inconformados que continuavam vagando pelas redondezas.
Quando chegaram à beirada ela já estava respirando normalmente, se recompondo, buscando forças. Quis ficar em pé e sair sozinha da embarcação, coisa que ele não permitiu. Colocou-a cuidadosamente nos braços e a levou com segurança para as areias da margem.
Neste momento, sem que ele pudesse rejeitar ou dizer não, ela segurou-o num abraço tão forte e longo que ele ficou meio sem jeito, encabulado, sem saber como reagir. Estava vermelho e queimando por dentro e por fora, completamente apaixonado. Colocou seus braços também sobre o corpo dela, instintivamente, apenas para senti-la melhor.
Mais tarde ela perguntou se poderia ir até a pedra ao entardecer, bem lá no local onde ele costumava ficar sozinho, pensando coisas e conversando sozinho. E João disse que ela poderia ir presenciar sua despedida daquele lugar, pois não via mais razão nenhuma ficar ali chorando um passado que já havia morrido.


continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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