DESCONHECIDOS - 90 (Conto)

DESCONHECIDOS – 90

Rangel Alves da Costa*


“Mas ela quem, Carlinhos?”, perguntou Cristina. “Uma mocinha, só sei que é uma mocinha. Você sabia que ela é muito importante nesse lugar, na vida desse povo, tanto desse lado como do outro, e que por isso mesmo corre perigo?”, continuou o menino.
“Na verdade ali na naquela casinha moram duas mocinhas, Carol e Soniele, mas acho que você está falando de Soniele. E por que ela é tão importante assim e corre perigo?”. E Carlinhos tentou explicar, mesmo supondo que o que sabia não revelava ainda muita coisa.
“Alguma coisa me diz, e hoje o dia inteiro praticamente só falou nisso, esquecendo até de Dona Doranice, que um segredo que aquela menina guarda pode revirar tudo isso aqui. As forças da natureza estão sendo pressionadas pela maldade para transformar tudo isso aqui num verdadeiro pandemônio. Contudo, o bem existe mas não está se valendo da força que tem, daí o perigo. E o bem não está agindo como deveria agir simplesmente porque o coração e a boca daquela mocinha ainda não se abriram para a verdade, para dizer o que sabe. Assim que ela fizer isso e tudo for revelado, então o mal poderá ser contido. Daí ela ser tão importante. Mas corre perigo por outra coisa, e simplesmente porque os representantes do mal, que são o coronel e Dona Sofie, estão caçando a coitadinha para destruí-la. Nem o coronel nem a esposa deveriam fazer isso porque possuem uma ligação muito forte com ela que não sei ainda o que é, mas a verdade é que corre perigo, e por isso eu gostaria de conhecê-la”.
Mesmo sem entender muito bem o que o menino dizia, Cristina sorriu e perguntou como ele tinha conhecimento de tanta coisa, quem havia colocado tanta estória na sua cabeça. E Carlinhos afirmou com sinceridade que era o falecido viúvo de Dona Doranice, que acompanha ela onde fosse. E por trás Yula, num gesto de brincadeira, girava o dedo perto da cabeça e afirmava que o amigo estava ficando doido.
“Ora, mas se quer conhecer tanto Soniele então vamos lá. Espero que elas estejam desocupadas e possam receber a gente. Eu tinha outro compromisso com um pescador, mas com esse depois eu converso. Essa hora, quando o sol já está enfraquecendo, é bem possível que estejam conversando”.
Assim que os três já estavam acerca de dez metros, as duas mocinhas foram saindo com roupas apropriadas para um delicioso banho de rio. Assim que perceberam a jornalista com os dois rapazinhos chegando, pararam sorridentes esperando a aproximação. Diante do olhar de Carol, Yula agitou-se; era de um branco puxando a galego e ficou com uma cor e expressão indescritíveis.
Verdade é que o sulista neto da Condessa emudeceu e estendeu uma mão completamente gelada na direção da outra sulista. Mas o beijo na face teve aquela quentura dos encantados, dos apaixonados à primeira vista, dos que passam a ser comandados única e exclusivamente pelo coração. E quanto perigo nesse encontro, nessa estrada! E quanto doce é a sua chegada!
Não foi menor o impacto que Soniele causou em Carlinhos, só que de um modo totalmente diferente. Não precisava perguntar nem investigar nada, não precisava tirar qualquer dúvida ou ter a certeza de algo mais. Era ela, ele tinha certeza que era ela. E por isso mesmo, assim que se aproximou mais para cumprimentá-la sentiu uma coisa boa, elevada, poderosa, positiva; sentiu uma força poderosíssima que emanava nela e fazia vibrar positivamente todo o ambiente.
Essa sensação de força positiva também foi sentida por ela. Não sabia por que, mas olhava nos olhos do menino e só via radiações que se estendiam, circulavam e os abraçava como se formando um escudo de proteção. “Ai, Carlinhos, gostei muito de você, acho que ia gostar muito de ter você como meu amiguinho. Sinto tanta falta de um irmãozinho para poder conversar, brincar, correr...”, disse Soniele.
“Mas você nunca teve irmão. Nem irmão nem irmã, melhor dizendo, porque você é filha única. Não é mesmo?”. E ela ficou meio sem jeito e puxou ele pelo braço para perguntar como ele sabia, já que todo mundo tinha certeza que ela tinha um irmão, embora falecido. E ele prosseguiu:
“Sei mais coisas do que você imagina. Você pode me mostrar aquela fotografia que está lá dentro e que ainda hoje você segurou ela perto do peito, abraçou, sorrio e depois beijou?”. Tais palavras causaram uma palpitação instantânea na mocinha. Nervosa, corada além da conta, abriu a boca para falar e não conseguiu. “Tá bom, fique calma, depois você me mostra”, completou Carlinhos, preocupado se ela estava passando bem. Contudo, não durou muito e ela conseguiu dizer:
“O que é que você sabe mais sobre minha pessoa? Que espécie de menino é você, um vidente, um adivinhador? Eu fico muito preocupada com essas coisas porque estou com muitos problemas para resolver...”. “E bota problema nisso. E é muito bom que você tenha muito cuidado por esses dias, pois as forças do mal estão rondando por todos os lados. Eu vou contar a você tudo o que sei, mas primeiro você tem que me dizer tudo sobre sua pessoa. E eu estou dizendo que tudo. Não pode me esconder nada, nem mistério nem segredo...”.
Ela ia falar, porém baixou a cabeça, limpou uma lágrima nos olhos e, sem que ele esperasse, lhe deu um forte abraço. “Me prometa que vem aqui amanhã logo cedinho. Prometa que eu vou contar toda a verdade sobre a minha vida a você. Promete?”. Ela falou com o rosto tomado por lágrimas. Ele fez de tudo para fingir, mas também tinha os olhos transbordantes d’água.
De repente a jornalista Cristina até achou que estava sendo demais perante àquelas pessoas que pareciam já se conhecer desde muito tempo. Num lado Soniele e Carlinhos se assuntando desesperadamente, do outro, agora amansando com os pés as águas da beira do rio, os dois jovens sulistas, Carol e Yula.
Estes, por sinal, juraram que enquanto estivessem conversando jamais falariam em família, dinheiro, poder. Firmaram compromisso de serem da terra, agrestes, pescadores, navegantes em busca de uma pérola que se escondia nas profundezas das águas. E que joia mais rara e preciosa é essa que começa a brilhar no coração.
Quanto desejo nascido repentinamente um pelo outro, sem que a palavra deixasse que os acontecimentos se antecipassem. Ora, mas destino é destino em todo lugar. Mas haveria de acontecer a seu tempo, como o passo que desce na terra nua em busca do tesouro. E que tesouro esse escondido nas minas sensíveis e latejantes do coração.
Sem que o outro soubesse, os dois já estavam compromissados em retornar logo ao alvorecer do dia seguinte. Nessa pressa para o tempo passar, um chamou pelo outro ao mesmo tempo. Precisavam ir. O barqueiro os esperava e precisavam ir. Não conheciam ainda nada daquele rio e muito menos das suas águas quando a lua chegava para comandar suas forças. E talvez Dona Doranice já estivesse em preces, cheia de preocupações.
Realmente estava repleta de preocupações, insatisfações e chateações. Na verdade estava sem mais poder suportar as transformações ocorridas na até então sempre amiga Sofie. Num surto descomunal, totalmente bêbada e parecendo fora de si, começou a esculhambar todo mundo, a dizer que jamais conseguiriam descobrir os segredos dela e do coronel, falar que ninguém impediria que o sangue jorrasse ali para que os segredos fossem mantidos e tudo continuasse como havia sido até agora. E eles não poderiam fazer nada simplesmente porque haviam sido atraídos até ali para morrer.
Foi preciso que a própria viúva encontrasse uma solução pouco usual para resolver tal situação.


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Poeta e cronista
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