SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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quarta-feira, 13 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - 82 (Conto)

DESCONHECIDOS – 82

Rangel Alves da Costa*


Depois de conversas mais próximas ao coração, mas sem grandes avanços pela inibição de João pescador, assim que iam descendo do rochedo avistaram Pureza correndo desesperada e gritando por eles. “Tragédia, uma tragédia!...”, dizia a aflita mulher.
“Mas o que foi?”, perguntou Cristina assustada. “Quelé acabou de encontrar o barco que trazia o médico vagando sem rumo pelo rio e lá dentro, que Deus nos proteja, estava morto tanto o doutor como o barqueiro. E os dois com os dois olhos arrancados. Primeiro furaram e depois arrancaram. Lembra da morte de Climério, João? Pois foi quase igualzinha, só que no nosso amigo arrancaram um olho só”.
Olharam adiante para as águas do rio, porém só avistaram, ainda que quase na escuridão, o pássaro de olhos de fogo zanzando de um lado para o outro, dando rasantes que parecia querer entrar na água. E depois começou a sair uma lua triste, sem o brilho de sempre, apenas lua abraçando a escuridão que se formava.
Ainda bem que Soniele não estava mais precisando de médico, ao menos pelas feições mais vivas e o olhar mais atento, brilhoso, ficando grande de novo, bonito, procurando reencontrar o seu mundo. E o seu mundo agora era preparar-se para as novas surpresas que surgiriam, pois sabia que com o coronel e Dona Sofie por perto, ainda que do outro lado do rio, não teria sossego. E sabia que mais cedo ou mais tarde seria descoberta.
Até quando, meu Deus, vou ter que viver negando o que sei e me escondendo diante daqueles que devem saber de tudo? Ficava indagando enquanto olhava para o retrato de Gegeu que ainda sorria, mas sorrindo somente para ela. E por que apareceu esse sorriso, se não vejo graça nenhuma nessa situação desesperadora? O pior é que é tudo por causa de você, seu safado! Conversava baixinho com a fotografia. E de vez em quando também sorria, mas sempre chorando por dentro.
“E como foi mesmo aquela história do dinheiro que você deu aos pescadores? Me conte tudo Carolzinha que quero ouvir”. Então a amiga decidiu não omitir mais nada, não mentir mais, dizer toda verdade. E confirmou que era de família muito rica e que também tinha muito dinheiro, em bancos e uma boa quantia ali. Por isso não achava demais ajudar aquele povo tão bom e precisado de tudo. E acabou perguntando qual o melhor e maior presente que a amiga gostaria de ganhar.
“Só quero um vestido de chita, uma flor no cabelo e uma esperança, bem como um passo de dança que é pra dançar bem ali na beira do rio, bonita e faceira, que é pra peixe subir pelas águas e gente descer pelas serras para me ver rodar. E então eu ia rodar como nunca rodei, como nunca cirandei, como nunca pude bailar. Tanta ciranda cirandar bem debaixo do luar, fazer a lua rodar, fazer a estrela dançar. E quanta cantiga eu ia cantar. E o meu olhar e ia ficar feliz, o meu corpo contente e eu novamente eu, a mocinha que se perdeu e se achou, que não é feliz, mas que encontrará a felicidade qualquer manhã, logo ao alvorecer de uma nova e linda vida, ainda que solitariamente apaixonada como sou...”.
“Apaixonada por quem Soniele?”, perguntou a encantada e sorridente amiga, feliz por vê-la novamente cheia de vida e de sonhos. “Ora, apaixonada por quem sorri pra mim, por quem gosta de mim, por quem me ama eu sendo assim, menina faceira igual bolo de feira...”.
E segurou na mão de Carol e arrastou-a para a beira do rio, para espanto da lua que resolveu aparecer de vez para ver de perto tanta beleza e formosura em duas mocinhas que se davam as mãos para cirandar uma ciranda linda, jamais vista igual, ali na beira do rio, para encanto da natureza e da vida.
E os outros ouviram o canto, sentiram o cantar e correram para ver o cirandar. Foram chegando Pureza e Cristina, João e Quelé, Cinaura e Sizenando, Clementino e outros mais. O profeta Aristeu se escondeu por trás de uma pedra, lá no alto de uma montanha, e começou a chorar lembrando-se de alguma coisa que marcou seu passado.
E lá embaixo, na beira do rio, embaixo do luar estrelado, as mãos se davam e a roda girava:
“Cirandeiro, cirandeiro ó/ A pedra do teu anel brilha mais do que o sol/ Mandei fazer uma casa de farinha bem maneirinha que o vento possa levar/ Oi passa o sol oi passa a chuva, oi passa o vento/ Só não passa o movimento do cirandeiro a rodar/ Cirandeiro, cirandeiro ó/ A pedra do teu anel brilha mais do que o sol...”.
E Pureza segurava na barra da saia e dava passos largos.
“Alecrim, Alecrim dourado/ Que nasceu no campo/ Sem ser semeado/ Alecrim, Alecrim dourado/ Que nasceu no campo/ Sem ser semeado/ Foi meu amor, foi meu amor/ Que me disse assim/ Que a flor do campo é o alecrim/ Foi meu amor/ Que me disse assim/ Que a flor do campo é o alecrim...”.
Quelé arranjou não se sabe onde uma garrafa de pinga e começou a oferecer um aperitivo aos amigos, enquanto a roda girava.
“Como pode o peixe vivo/ Viver fora da água fria/ Como pode o peixe vivo/ Viver fora da água fria/ Como poderei viver/ Como poderei viver/ Sem a tua, sem a tua/ Sem a tua companhia/ Sem a tua, sem a tua/ Sem a tua companhia/ Os pastores desta aldeia/ Ja me fazem zombaria/ Os pastores desta aldeia/ Ja me fazem zombaria/ Por me verem assim chorando/ Por me verem assim chorando/ Sem a tua, sem a tua/ Sem a tua companhia/ Sem a tua, sem a tua/ Sem a tua companhia...”.
E Cristina disse que se lembrava de uma cantiga muito bonita e começou a cantar, sendo logo acompanhada por todos.
“Se esta rua se esta rua fosse minha/ Eu mandava, eu mandava ladrilhar/ Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante/ Para o meu, para o meu amor passar/ Nesta rua, nesta rua, tem um bosque/ Que se chama, que se chama, Solidão/ Dentro dele, dentro dele mora um anjo/ Que roubou, que roubou meu coração/ Se eu roubei, se eu roubei seu coração/ É porque tu roubastes o meu também/ Se eu roubei, se eu roubei teu coração/ É porque eu te quero tanto bem...”.
E Pureza foi pro meio da roda e chamou a lua para os seus versos.
“Teu beijo doce tem sabor de mel da cana/ Sou tua ama, tua escrava, meu senhor/ Sou tua cana, teu engenho, teu moinho/ Tu és feito um passarinho que se chama beija-flor/ Sou rosa vermelha, ai meu bem-querer/ Beija-flor, sou tua rosa e hei de amar-te até morrer/ Quando tu voas pra beijar as outras flores/ Eu sinto dores, um ciúme e um calor/ Que toma o peito, o meu corpo e invade a alma/ Só teu beija-flor acalma tua escrava, meu senhor/ Sou rosa vermelha, ai meu bem-querer/ Beija-flor, sou tua rosa e hei de amar-te até morrer...”.
E a paz e a paz, a alegria, o canto e o encantamento, mãos dadas e pés a seguir a roda, bocas que cantavam e corações pulsando pelo prazer do momento. Era escuridão, mas era claridade, a lua não deixava mentir. Cristina olhava nos olhos de João e este se aproximou para dizer que suada ficava ainda mais bonita. E nada podia ser feio, em tudo tão belo, em tudo a rodar.
Até que se ouviu um aterrorizante grito e Quelé caiu com a mão sobre os olhos.


continua...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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