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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 1 de abril de 2011

NO REINO DO CORDEL ENCANTADO (Crônica)

NO REINO DO CORDEL ENCANTADO

Rangel Alves da Costa*


Ao menos pelas chamadas e noticiários dando conta da trama que conduzirá a nova novela global das seis, até que enfim um tema regionalista, autenticamente brasileiro, servirá como pano de fundo para mostrar as aventuras e desventuras amorosas de corações que se cruzam ao acaso e pagam no sofrimento o prazer em se ter.
Verdade é que a TV Globo sempre trabalhou com grandes produções de cunho essencialmente regionalistas, provavelmente buscando o sucesso no fôlego da literatura nordestina. Autores como Jorge Amado e Ariano Suassuna sempre foram prestigiados e tiveram seus romances transformados em séries, minisséries e novelas, principalmente o primeiro. Contudo, foram poucas e muito modificadas na história original
Assim ocorreu, por exemplo, com Gabriela, Terras do Sem Fim, Tieta, Teresa Batista, A Pedra do Reino e O Auto da Compadecida. De Jorge Amado, praticamente o sertão cacaueiro baiano com os seus coronéis de charutos na boca, falsidades e tocaias; de Ariano, a religiosidade mítica, com suas santas e e seus mendigos e aproveitadores. Contudo, verdade é que faltava algo mais sol, mais sertão, mais vida nordestina, mais caatinga, mais saga cangaceira, mais terra rachada. E tudo isso nos parece que estará presente no folhetim contado por Telma Guedes e Duca Rachid.
Mesmo que a trama vá buscar num fictício reinado o mote para conduzir a estória até a região nordestina, ainda assim prevalecerá o enredo matuto, caboclo, cangaceirista, sertanejo mesmo de raiz e pra valer. Fugindo de um reino ameaçado, a família da mocinha desesperadamente foge sertão adentro e acaba entregando-a ainda criança para ser criada por outra família. E tudo vai desandar no Nordeste. Então será nessa região que praticamente tudo se revelará, inclusive a realidade regional.
Segundo a própria emissora, “Cordel Encantado contará a história dos reis do fictício reino Seráfia do Norte, Augusto (Carmo Dalla Vecchia) e Cristina (Alinne Moraes). O casal então viaja com a filha, Aurora, ainda bebê, para o Brasil em busca de um tesouro escondido pelo fundador do reino de Seráfia. Nessa grande aventura, a rainha e sua filha sofrerão uma emboscada arquitetada pela malvada duquesa Úrsula de Bragança (Débora Bloch), que deseja assumir o trono a qualquer custo.
Antes de morrer, a rainha consegue salvar Aurora e a entrega para ser criada por um casal de lavradores, que dá o nome de Açucena (Bianca Bin). No outro lado da trama está o cangaceiro Herculano (Domingos Montagner), que, preocupado com a segurança de seu filho, Jesuíno (Cauã Reymond), e de sua mulher, Benvinda (Cláudia Ohana), os deixa em uma fazenda até que o rapaz possa assumir a liderança do cangaço. O destino irá unir Açucena e Jesuíno numa complicada e linda história de amor”.
No mundo nordestino, a trama passa a percorrer aventuras baseadas em fatos e situações que podem ser tidas como verídicas como pano de fundo, trazendo para a ficção aquilo que bem poderia ter ocorrido de verdade, pois fundamentado em muitas vertentes da própria história sertaneja. Quando a novela mostrar o cenário de miséria poderá fazê-lo sem maquiar nada; do mesmo modo as belezas, os encantos inigualáveis, os conflitos e as trapaças.
Como se verá, em meio às idas e vindas do amor entre um filho de cangaceiro e a mocinha de origem nobre, os olhos do telespectador conhecerão a outra trama que não pode ser mais comovente do que a própria realidade sertaneja. Para os que não conhecem em profundidade a região, tudo poderá mesmo parecer pura invencionice das autoras, dando tons e cores a um modo de ser e viver impossível de existir com tamanha dramaticide.
Mas existe sim e com retoques ainda mais inacreditáveis se o descrente quiser ir até lá e conhecer, por exemplo, os locais de passagem do Capitão Virgulino e seu bando, a Gruta do Angico em Poço Redondo, os ásperos tempos e os duros caminhos que o povo tem de percorrer para sobreviver. A novela mostrará a casa pobre, de barro e quase caindo, da família mais pobre ainda. E no meio daquela mataria, diante da realidade de fogo e sangue, qualquer um poderá encontrar a pobreza dando o seu grito mais aflito e o sertanejo padecendo pacientemente porque botaram na sua cabeça que acima de tudo é um forte.
Muita coisa há de ser mostrada, reconhecida por muita gente e desacreditada, mas bucolicamente vista, principalmente pelos sulistas. É que todo mundo ouve falar do nordeste, da sua pobreza e das suas distâncias, de um povo pobre olhando a vida com olhar sempre pa baixo. E sempre surge uma visão depreciativa da realidade.
Porém há que se conhecer também as bases e os alicerces desse mundo orgulhosamente matuto, que se impôs sempre através da luta, com seu exemplo maior na saga de Lampião e seu bando, mas, principalmente, nessa riquíssima colcha de retalhos que são os costumes, as crenças e as tradições desse inigualável povo nordestino.
Desse modo, tudo que for mostrado na novela certamente será apenas refilmagem daquilo por demais conhecida pela história, pois em muitos aspectos apenas realidade nua e crua, sem enfeite nem música ao fundo. E será possível reconhecer a luta pela sobrevivência, os meandros políticos do coronelismo e do mando, da abastança latifundiária e pobreza da maior parte da população, das revoltas e conflitos sociais pelas caatingas.
É que o sertão não pode ser mostrado senão na sua realidade. Não teria fundamento fazer um sertão no Projac e colocar ali mandacarus e xiquexiques de plástico, catingueira feita em barracão nem sol produzido artificialmente. A proximidade com a realidade da região, em cima do seu chão, correndo pelo seu rio, navegando pelas belezas dos seus cânions, é a única forma de tornar a ficção mais verdadeira e o enredo mais humanista. E isso só pode ser conseguido mostrando lá mesmo o chão rachado e a alpercata que o pisa.
E nessa esperança de que a ficção seja a mais realista possível, será possível passear pelas feiras de galinha feijão e milho, de bicho de barro e carrinho de mão, do cego cantador que pede esmola, da mulher de rodilha e cesto na cabeça vendendo nanuscada e pixilinga, do homem que grita que o seu novo cordel já está à venda no barbante e chama-se “Cordel do Sertão Encantado”.





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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