SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 18 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - 87 (Conto)

DESCONHECIDOS – 87

Rangel Alves da Costa*


Não só derrubou o cálice com o licor, como ficou amarela da cor da bebida de abacaxi. Visivelmente nervosa, pediu a Carlinhos que pelo amor de Deus deixasse de falar coisa envolvendo morto, morte ou coisa parecida. Ao pedido, o menino simplesmente respondeu: “Até que posso calar, mas a senhora vai ter que aturar muitas coisas com essas palavras”.
A tensão do momento foi quebrada quando o cozinheiro afrancesado, que estava por trás de uma pedra dentro do rio com uma garrafa de pinga, gritou que talvez fosse o coronel que estava chegando numa embarcação que despontava lá embaixo. E era ele mesmo, acompanhado do padre, que na verdade era um frei, Frei Clarêncio, que em troca de algumas cifras decidiu abandonar por dois dias a solidão de sua congregação religiosa, no Convento dos Pobrezinhos de Deus.
O anúncio da chegada do marido foi para Sofie motivo de refrigério íntimo, de contentamento e calmaria que passou a dar lugar àquela outra tão preocupante conversa e, por isso mesmo, de manifestação na face, através de sorrisos largos. Sem o coronel ali e com a insistência do menino, que já estava começando a odiar, seria insuportável não incorrer em gestos e atitudes que depunham contra si mesma, contra sua parcela de culpa.
O desembarque dos dois foi comemorado com a abertura de uma garrafa de uma bebida especial: Néctar dos Deuses Nordestinos, fabricada numa das propriedades do próprio coronel e que consistia na junção de diversas frutas da região, que após misturadas ao álcool adocicado era conservada em infusão, totalmente lacrada, durante seis meses. Diziam que o produto final dessa mistura era realmente um néctar dos deuses. Mas sempre na medida certa, pois a bebida adormecida era danada de valente.
Frei Clarêncio tomou o primeiro cálice de uma virada só. O coronel avisou que fosse devagar porque aquilo era um tantinho mais forte do que vinho de missa. E foi uma gargalhada só, logicamente acompanhada de outra bicada, no mesmo instante que Sofie acenou para o esposo dizendo que precisava lhe falar.
Nos fundos da casa, olhando de um lado pra outro se certificando de que ninguém estava por perto, começou a se expressar com profundo aspecto de inquietação:
“Demundo, pensei que viríamos pra cá para o descanso, para o contentamento e a alegria, mas pelo jeito a coisa vai desandando. Tá tudo de um jeito que não estou mais conseguindo suportar. Durante esse pouco tempo que estamos aqui já aconteceram coisas terríveis. Primeiro os meninos disseram que encontraram a porta da igreja aberta e com a cruz dos fundos do altar quebrada. Subimos até lá e nada disso foi confirmado, pois encontramos a porta fechada. O pior é que não creio que os dois estavam mentindo. Depois disso, passamos a olhar todo o arredor lá de cima e uma coisa preocupante demais aconteceu, pois o menino Carlinhos, que agora me veio com um dom perigoso de adivinhação, de premonição ou coisa parecida, lá de cima apontou para uma daquelas casinhas do outro lado, na vila dos pescadores, e disse que nela morava a mulher mais importante daqui e começou a dizer que ela era jovem, bonita e tinha sido de cabaré...”.
Os olhos o coronel passaram a brilhar de um jeito diferente, seu rosto mais que enrubescido parecia apenas uma pintura por cima de uma pele amarelada de nervosismo e apreensão, chegando mesmo a tremer o corpo inteiro de vez em quando. “Eu já fui lá visitar aquele povo e naquela casinha tem mesmo uma mocinha que estava adoentada e toda coberta e que se chamava também Soniele. Será?...”.
Esta confirmação fez Sofie balançar e ter de segurar no braço do esposo para não cair. “Mas não pode ser meu Deus. Isso é muito perigoso pra gente”. Quase não conseguia falar a mulher, as lágrimas forçavam nos olhos. Também aflito, o coronel disse que cuidado com o que dizia por que as paredes tinham ouvidos. Pediu que procurasse se acalmar e prosseguisse no relato.
“Então a peste desse menino disse ainda que somente ela poderia salvar todos nós da destruição. Mas isso ainda não foi tudo Demundo, pois quando descemos avistamos aqui de baixo um homem esquisito, todo de barba grande, cabelos desgrenhados, esfarrapado, pronunciando palavras amedrontadoras. Como se fosse espalhando uma profecia, disse que o menino estava certo e que a mocinha daquela choupana havia sido vítima da mentira, do jogo e da manipulação, e por isso mesmo tinha sofrido tanto pela vida, mas que agora podia dar o troco naqueles que a impediram até de amar...”. E já soluçava sem controle, totalmente desesperada.
Então imediatamente o coronel lembrou-se da pessoa com as mesmas características que havia encontrado na beirada do outro lado do rio enquanto caminhava com a jornalista. Pesaroso foi lembrar suas palavras, que lhe vieram à mente como uma gravação: Mas veja se não é o dono do mundo, o coronel faz o que quer, o manda e desmanda em tudo? O mesmo coronel que um dia emprenhou Custódia e tapou a boca do pai dela com dinheiro. Lembra de Custódia coronel? Se nasceu uma menina deve ter saído bonita como a mãe. Não é coronel?
E relatou do mesmo modo à sua desesperada companheira, que quase não era ouvida mais de tanto entrelaçar soluços e outros ais de aflição. “Estamos perdidos Demundo, estamos completamente perdidos. Esse maluco andarilho sabe de tudo e parece que está para ver tudo se confirmar. Esse peste desse menino, desse tal de Carlinhos, também vai descobrindo todos os nossos segredos. Imagine que ele chegou a dizer que ela estava sorrindo e beijando o retrato de um morto...”.
“Então é Soniele mesmo, não há mais dúvidas quanto a isso, e o retrato que ela beijava só pode ser o de Gegeu...”, falou o coronel, tentando também se manter em pé. Enxugando os olhos, passando um pano pelo rosto para enxugar as lágrimas e tentando parecer firme, Sofie disse que diante de tudo isso só sabia que do jeito que estava não podia ficar. Sem querer haviam entrando numa guerra e numa guerra, na maioria das vezes, a sobrevivência depende da eliminação do inimigo. Se já conheciam alguns dos inimigos que estavam ali, então era preciso trabalhar cuidadosa e estrategicamente para eliminar um a um, de modo que ninguém ao menos sonhasse que estavam por trás disso tudo.
E depois olhou nos olhos do coronel e perguntou: “O que você pensa em fazer agora?”. E ele respondeu de cabeça baixa: “Se eu pudesse domar a minha maldição seria muito mais fácil. Se o pássaro de fogo que me toma e domina pudesse me obedecer seria muito mais fácil. Vamos ver se eu domo o pássaro de fogo que mora dentro de mim e assim tudo farei através do seu bico assassino”.


continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: