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sábado, 2 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - 71 (Conto)

DESCONHECIDOS – 71

Rangel Alves da Costa*


Antes de chegar ali na vila dos pescadores, a jornalista havia passado por Mormaço, seguido para o povoado Jacaré, na beira do rio, e daí fretado uma embarcação para chegar ao destino. Quase não encontra ninguém disposto a fazer o transporte, ainda que ela tenha aumentado muito o valor normal do frete.
Os barqueiros e canoeiros se negavam dizendo que as águas daquele trecho onde a vila estava situada andavam muito perigosas e traiçoeiras. Pescadores que chegaram às proximidades juravam ter avistado seres estranhos saindo das profundezas e redemoinhos passo a passo por dentro do rio.
Tinha horas que ás águas eram mansinhas, totalmente azuis-esverdeadas, para num instante escurecer e se agitar, como se estivessem borbulhando. Por mais que ninguém acreditasse, tinha gente dizendo que tinha visto todo o rio tomado de sangue, numa podridão que não acabava mais. Quantos mistérios nessa vida, nesse lugar e nesse povo, ficava pensando Cristina.
Tinha certeza que se tivesse contado ao coronel Demundo Apogeu sobre essa dificuldade toda, ele teria mandado resolver o problema imediatamente. Mas os incidentes ocorreram precisamente quando já havia deixado Mormaço, onde havia estado com o coronel e sua esposa. Ali de passagem para saber como eles estavam após o episódio do filho e, principalmente, para dar os recados de Dona Doranice.
Foi recebida numa verdadeira festa. Pela disposição do coronel e exuberância de sua companheira Sofie, resolveu nem tratar de assuntos passados. Achava melhor assim, de modo a não desenterrar lembranças e recordações. Isso não tinha nenhuma valia, sabia muito bem. Mas dos recados da viúva não podia esquecer nenhum detalhe, também sabia.
Quando falou para onde estava indo, mas sem contar nada sobre os objetivos da viagem, o casal ficou num entusiasmo só. Então começaram a falar das duas construções e que não duraria nem mais uma semana para tudo ser inaugurado. A casa já ia ser pintada dali a dois ou três dias, de modo que os móveis artesanais já pudessem tomar seus lugares. E falavam de planos e planos, de momentos bons que poderiam passar ali.
Num certo momento da conversa, o coronel começou a fazer algumas observações com maior seriedade:
“Não sei por que, mas acho que aquele povo, creio que quase todos pescadores, que mora do outro lado do rio, numa vila de uma casinha aqui e outra ali, que há por lá, não gostou muito da construção da igrejinha. Mandei contratar quem quisesse para ajudar na construção e nenhum deles se prontificou a ganhar um dinheirinho extra. Nas vezes que passo por lá, nunca vi nenhum deles visitando a obra e nem dizendo que tá bom ou ruim, bonita ou feia. Na verdade, acho que nem olham para o lado de lá. Dizendo a verdade, é um povo muito estranho, muito fechado entre eles, parecendo até que guarda segredos que não quer que estranhos saibam. Talvez pense que com a igrejinha e a casa pessoas desconhecidas queiram invadir o seu mundo e afetar os seus modos de ser e acreditar nas coisas. Quanto a isso acho que eles têm razão, se eu fosse pescador lutaria até o fim para defender minha beira de rio, meu rio, tudo que é minha vida e dá o sustento...”.
Cristina pediu licença para dizer alguma coisa: “Mas meu pensamento com relação ao lugar é outro. Pelo que eu soube, até Dona Doranice comentou isso comigo, toda aquela região é cercada por muito mistério e até falam em tempos ruins que podem se abater por ali. O falecido padre já tinha essa preocupação e a igrejinha foi pensada no sentido de possibilitar maior proteção contra as forças desconhecidas. Por isso, coronel e Dona Sofie, que acho que o povo é tão estranho e alheio aos outros porque, de certa forma, também vive amedrontado e temendo o que possa lhe ocorrer. Ora, se a gente sente que está ameaçado muda totalmente o jeito de ser. Mas todas essas coisas poderei sentir pessoalmente, aos poucos conversando com cada um e procurando entender a vida naquele lugar. Quem sabe se não descobrirei quais são os mistérios existentes e que tanto aflige aquela pobre comunidade?”.
“Mas que belas e compreensivas palavras, minha filha. Tem toda razão no que diz e no que pensa. Até gostaria que a casa já estivesse pronta para você se arranchar por lá, mas logo logo botarei as chaves dela em suas mãos, tenha certeza. Mas vou providenciar para que não lhe falte nada por lá, principalmente mantimentos, porque dinheiro tem pouca valia por aquelas bandas”.
Mas a jornalista não quis aceitar nada disso. Disse que para conhecer o povo tinha que conviver com ele nas mesmas condições de sua sobrevivência. Qualquer coisa diferente disso serviria como estranheza e poderia atrapalhar tudo. Assim, depois de dar todos os recados da viúva se despediu dizendo que seguiria para o povoado Jacaré e de lá tomaria uma embarcação.
O coronel não abriu mão de mandar um veículo ir até lá de jeito nenhum. Seria uma desfeita se ela não aceitasse. E seguiu por estradinhas quase intransitáveis, cortando uma vegetação ressequida, porém bonita. E quanto mais se aproximavam da beira do rio mais o calor se tornava insuportável, sufocante.
Depois de tanto pelejar para conseguir fretar uma embarcação, enfim pôde seguir pelos caminhos das águas. Quanto mais percorria aquele destino mais se afeiçoava ao rio, com o seu balançado conquistador, inebriante, convidativo. Por todos os lados belíssimas paisagens, com cânions, paredões, descampados, serras e montes, moradores solitários e barquinhos adormecidos pelas margens.
Passarinhos cortavam os céus, sons das matas chegavam aos ouvidos num contínuo farfalhar, os bichos gritavam e a natureza era toda disposição. Se mais adiante tudo se modificava era uma questão de ver e sentir. Mas não, em todo o percurso, até chegar aos temidos arredores e a entrar na região da vila dos pescadores tudo estava em paz e bonito. Incrivelmente bonito.
Ao avistar a vila pediu ao canoeiro que aportasse do lado das casinhas dos pescadores, pois desceria ali até resolver o que fazer. E assim colocou os pés em terra firme e seguiu em direção ao grupo de pescadores que estava defronte à tapera onde estavam morando as duas mocinhas.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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