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segunda-feira, 25 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - 94 (Conto)

DESCONHECIDOS – 94

Rangel Alves da Costa*


Após o pulo o grito, o berro assustador, medonho. Quando a ex-madame de cabaré se virou e encontrou à sua frente, olhando friamente nos seus olhos, a ex-prostituta, a mocinha Soniele, deu alguns passos para trás e soltou um terrível grito chamando o coronel.
Todos acorreram ao mesmo para ver do que se tratava. Carlinhos foi o primeiro a avistar Sofie de joelhos, cabeça acompanhando as mãos sobre a terra molhada, batendo desesperadamente na umidez e ainda gritando palavras desconexas.
“Foi você quem mandou, foi você quem exigiu. Não diga nada. Ninguém precisa saber. Só faça de conta e pronto. Ninguém precisa saber de nada. Foi você quem mandou, foi você que sempre quis assim. Faça de conta e pronto. Mas ele era meu não e era seu. Ela não era para ser minha porque era sua. Você esqueceu a fralda, vá buscar a fralda. Essa peste tá chorando de novo. Mas me dê que ele é meu e não é seu. Tome que ela é sua. Você não podia deixar que tomassem conta dela assim. A papinha já tá pronta, venha neném, venha. Dorme filhinho, filhinho quer dormir...”.
E se estendeu inteiramente na beira do rio, quase em convulsão, sempre chorando, maldizendo tudo, agora querendo arrancar os cabelos com as mãos. Quando o coronel avistou a companheira naquele estado correu para acudi-la. Não tendo encontrando nada, mas sendo alertado pelos gritos, o capanga logo chegou perguntando quem era para matar, em quem deveria atirar primeiro.
“Atirar em quem, seu abestalhado?”, perguntou o coronel enquanto se abaixava para saber o que significava aquele gesto transtornado da companheira. Mas o mal-encarado respondeu: “Na mocinha ou no menino, atiro primeiro na mocinha ou no menino?”.
Ao ouvir falar na mocinha, o coronel, que na pressa e desespero não tinha avistado Soniele, virou a cabeça para o lado, ergueu-a, encontrou um rosto terno e meigo mais adiante e quase infarta nesse momento. Deixou a mulher como estava, levantou lentamente, quase sem forças, e se encaminhou para próximo de onde estavam Carlinhos e ela. E foi logo dizendo:
“Então é você mesma, não é sua puta rampeira, sua prostituta barata, sua vagabunda? Então é você que se escondia aí nesse mafuá depois de ter feito o que fez, de ter destruído a vida do meu filho, não foi mesmo?”. Totalmente enrubescida, raivosa com as palavras ouvidas, Soniele deu um passo à frente e jogou-lhe na cara:
“Seu filho, quem era seu filho, o Gegeu? Diga agora seu velho safado, diga, tenha coragem, seja o homem que você nunca foi. Mesmo com essa denominação asquerosa e mentirosa de coronel, diga a verdade sobre o Gegeu. Quer que eu diga toda a verdade, quer que eu conte tudinho agora mesmo, quer? Quer que eu diga que eu...”.
E nesse exato momento, antes que ela pudesse dizer o resto, o coronel, totalmente fora de si, quase espumando de tanta sanha furiosa, partiu para cima com o braço erguido pronto para atacar.
“Calma aí, não é assim não. Se ao menos tocar nela com um dedo vai se arrepender. Olhe pra sua esposa e veja que ela não está em situação confortável não”. Era Yula, tomando peito bem à frente do coronel, apontando para Carol que estava com um pé sobre o pescoço da ainda agitada Sofie.
Totalmente afetado pelo que via e sentia, desafiado, rebaixado, sem ter iniciativa alguma, o coronel nem respondeu quando o capanga perguntou se era pra matar todo mundo. “Atirar em todo mundo o que, seu cabra safado. Você atira em ninguém, seu frouxo, seu fuleiro, seu filho de uma égua desparida. Venha atire em mim!”. Quando o pistoleiro olhou raivoso para o lado, pronto para puxar o gatilho, se deparou com a pescadora Pureza que chegava acompanhada da jornalista Cristina.
Olhou a pescadora e ficou realmente amedrontado, envergonhado, baixou a cabeça. Há alguns anos atrás havia saído dali da vila dos pescadores corrido, ameaçado de morte pela amante, que outra não era senão Pureza em pessoa. Havia quem jurasse que ela batia nele.
“Bote aqui essa arma no chão, chegue, bote logo, senão você sabe que vai ser pior”. E o pistoleiro, que já havia mijado nas calças assim que viu a ex-amante, obedeceu ao que ela mandou e se pôs num canto de cabeça baixa, assustado, só olhando medrosamente o que ela ia fazer com a cuspidora de fogo, a pistola.
Pureza mandou que Carol tirasse o pé de cima da mulher e a levantasse, depois se encaminhou para o coronel e disse que era melhor ele pegar sua madame e seu capanga frouxo, subisse imediatamente na embarcação e fosse embora dali, e para nunca mais botar os pés do lado de cá.
Disse ainda que tinha visto o que ele pretendia fazer e não gostou nem um pouquinho do que viu. Por isso mesmo era melhor ele deixar Soniele em paz e ir cuidar de se desfazer de sua maldição, ir cuidar de botar na gaiola do seu coração malvado o pássaro preto de olhos de fogo, pois o mesmo estava sedento de sangue e a próxima vítima poderia ser ele mesmo.
Ao ouvir a menção sobre o pássaro de fogo o coronel estremeceu completamente, ficando num misto de medo e de vontade de guiar o pássaro preto que era sua própria emanação. Se pudesse fazer com que a ave do mal saísse do seu corpo com a sua mente, certamente não estaria agora naquela situação de desonra e desmoralização.
Contudo, o que mais lhe instigou foi ficar sabendo que aquela mulher conhecia alguma coisa sobre sua maldição. E se ela sabia talvez fosse de alguma serventia para os seus planos. Mais tarde compraria, a qualquer preço, a ajuda daquela pescadora, tinha certeza. Achava, como era do seu feitio, que o dinheiro saía por aí comprando a dignidade e a honradez das pessoas.
Os três se encaminharam para o barco sem dizer palavra, apenas com as feições chispadas de ódio e rancor próprias dos derrotados. Ao menos por enquanto, pois já cortando as águas o coronel gritou que não demoraria a voltar e dessa vez para arrasar tudo que houvesse por ali, principalmente as pessoas. Transformaria a vila dos pescadores num bagaço, ou não se chamava Demundo Apogeu.
A jornalista Cristina, que havia chegado acompanhada da pescadora e assistido apenas a parte final da contenda, ainda procurava acreditar no que tinha visto e ouvido e não conseguia. Sabia que mais cedo ou mais tarde o coronel descobriria que Soniele morava ali e certamente a procuraria, mas não para chegar ao ponto de querer matá-la. Por que isso tudo? Perguntava-se intimamente, e só encontrava o segredo como resposta. Porém, pelo que havia percebido, este ainda não tinha sido revelado.
Após a partida do coronel e sua pequena comitiva, todos que ficaram na beirada do rio procuravam palavras para tentar resumir e entender aquela situação toda. Carlinhos estava triste porque ainda não seria naquela manhã que ficaria conhecendo o segredo. Não era justo que depois do ocorrido ele pedisse explicações à amiga. Contudo, mais triste ainda estava Yula, que louco para declarar-se apaixonado e talvez roubar um beijo, sentia que teria de esperar mais um pouco.
Mas a pescadora chamou todos para pertinho de si e avisou que dali em diante havia começado uma guerra e que era preciso que todos estivessem preparados para o pior. Pelo que conhecia do coronel, nada daquilo ia ficar sem troco maior do que o tamanho da compra. A vingança dele seria imediata.
E o pássaro de olhos de fogo apareceu do nada, repentinamente, e ficou voando por cima de onde estavam. Então a pescadora logo teve a ideia de que bem poderia tirar proveito daquela ave fruto da maldição.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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