SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 18 de abril de 2011

MENINO DA TARDE (Crônica)

MENINO DA TARDE

Rangel Alves da Costa*


O que é a tarde para um garoto, para um menino de rua, para um engraxate, que pode sentir o dia inteiro como um tempo duradouro e difícil que tem para lutar pela sobrevivência?
O que é a tarde para um menino que, diferentemente de outros meninos, não tem o direito de dividir o seu dia em manhã, tarde e noite? Às vezes a noite é o dia inteiro, outras vezes o dia parece que nem amanheceu ainda.
O que é a tarde para um menino que vive nas ruas, perambulando de cima a baixo carregando seu instrumento de trabalho, se nenhuma janela está aberta para ele olhar o por do sol, nenhuma montanha espera por ele para a reflexão, nem banco de praça de praça se limpa de folhas para ele sentar?
O que é a tarde para o menino que não sabe a hora, que não tem momento do lanche, que não vai tomar banho para vestir roupa limpa, que está acostumado com a chuva cair enquanto anda por aí?
Mas para o menino, ao menos para aquele menino, a tarde era tudo, era a melhor parte do dia, era quando caminhava mais contente, quando fazia tudo mais sorridente, quando mais olhava para cima para ver se o sol já estava acalmando, entardecendo, indo embora.
Ainda era tudo porque sabia que o trabalho do dia inteiro já estava feito, que já podia contar os trocados conseguidos limpando e esfregando sapatos, que podia saber o que poderia fazer e comprar com aqueles tostões pingados lá no fundo do bolso do calção encardido.
E era tudo porque era tarde, porque não duraria muito e caminharia até a praça, mas não para sentar nos bancos e ficar contando as folhas caindo nem conversando com os passarinhos amigueiros, mas para seguir até a igreja que ficava no local.
Caminhando apressado, mesmo cansado os seus olhos brilhavam de contentamento assim que avistava a igreja, toda linda, imponente, como um pedaço do céu bem ali adiante. Igreja, capela ou catedral, tanto fazia na força da fé do menino.
Não sabia o que era céu, mas um dia ouviu alguém dizer que para chegar até ele tinha que primeiro conhecer não só não só as portas da igreja, mas também entrar nela para viver seus maravilhosos mistérios, sentir os anjos, conversar com os santos, reverenciar o seu Deus.
Assim, fizesse tempo bom ou caísse tempestade, todo fim de tarde o menino era visto entrando pela porta da igreja, levando consigo seu caixote de engraxate, e se dirigindo sempre para o mesmo lugar, um cantinho lá no banco já próximo ao altar.
Parecia que o lugar vivia sempre reservado pra ele, pois mesmo sendo missa e a igreja estando repleta de fiéis, seu lugarzinho sempre estava vazio, esperando que ele chegasse, fizesse uma oração talvez de criação própria, e ficasse ali contritamente, quieto, calado, com os olhos vivos e brilhantes voltados para a Cruz do Senhor logo atrás do altar.
Todas as beatas e os fiéis costumeiros, bem como coroinhas e padres, já conheciam o menino. Assim que ele entrava o olhavam com carinho e reverência diferente, como se nada pudesse validamente acontecer ali na igreja sem que o menino da tarde chegasse carregando seu caixote e indo sentar no lugar de sempre.
Numa tarde, durante a missa, tanto o padre como fiéis e beatas perceberam que o menino não havia aparecido. Olhavam para outros lugares para ver se estava sentado em local diferente do costumeiro, porém não encontraram nada.
No dia seguinte sua ausência também foi sentida. Durante a missa o padre surpreendeu ao perguntar se alguém sabia onde andava aquele menino que todas as tardes estava ali, se o tinham visto em algum lugar ou se sabiam alguma coisa sobre ele. Ninguém respondeu, mas surgiu uma preocupação entre todos.
No quinto dia ele apareceu. Quando entrou na igreja sentiu todos os rostos voltados em sua direção e sorrisos de contentamento. O padre nem pensou duas vezes e perguntou por que havia sumido.
Ele apenas disse que haviam roubado sua caixa de engraxar sapatos e que por isso mesmo não pôde mais trazer ela para ser benta todos os dias. Mas agora tinha conseguido outra e precisava que também fosse abençoada como ele havia sido todas as vezes que havia entrado naquela igreja.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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