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quarta-feira, 6 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - 75 (Conto)

DESCONHECIDOS – 75

Rangel Alves da Costa*


Com a pergunta de Cristina, se Soniele já estava completamente tomada de nervosismo, agora começou a suar e enfraquecer mais ainda. “De ouvir dizer, só isso. Todo mundo conhece o coronel e tem ele como viúvo. Se casou novamente deve ser coisa recente. Só isso. Só perguntei por perguntar mesmo”.
Respondeu, mas de uma forma logicamente não convincente para a jornalista. As demais pessoas que estavam na salinha logo perceberam que a menina não estava bem, talvez muito fraca ainda pela doença. Resolveram pedir para que deitasse e procurasse repousar um pouco mais.
Cristina disse a si mesma que sabia esperar o tempo certo de descobrir tudo. Também não podia escancarar suas dúvidas na presença de todos, parecendo que estava colocando a mocinha na parede e perguntando demais sem ter precisão. Quando somente elas duas tivessem tempo de conversar, cuidadosamente e sem pressa, então procuraria colher uma informação aqui outra ali, juntando tudo depois para obter as respostas.
Agora mais que tudo, Soniele precisava realmente ficar deitada. Contudo, não mais por causa da doença, vez que já estava até afadigada de tanto ficar estendida naquela esteira. Precisava, isto sim, ficar refletindo ali quietinha, silenciosamente, conversando com os seus botões, sobre um monte de coisas, principalmente a conversa sobre o coronel e Dona Sofie.
A primeira coisa que lhe veio à cabeça é que não poderia ser descoberta de jeito nenhum. Todo mundo estava relacionando a morte de Gegeu à sua pessoa e ela não achava nenhuma graça nisso.
De qualquer modo, mesmo que soubesse que aquela fatalidade poderia acontecer, talvez não tivesse como evitar de jeito nenhum. O que ele queria era impossível. Os outros não entendiam, não sabiam de nada, mas ela tinha a convicção dentro de si que era impossível ceder aos apelos dele. Talvez um dia dissesse a alguém os motivos, contudo achava que por enquanto não.
Ademais, ficava matutando a preocupada mocinha, certamente o coronel ainda não enterrou o seu filho por inteiro. Morte naquelas condições é difícil de ser enterrada, principalmente quando todos afirmavam que ele havia feito a besteira por amor a uma prostituta. E a prostituta era ela, disso sabia muito bem. E o que o coronel faria quando a encontrasse, qual a reação dele diante da suposta causadora da morte do filho? E como iria olhar novamente nos olhos de Dona Sofie, sua ex-patroa e verdadeira mãe do rapaz?
Sabia que o seu maior erro foi ter chegado à vila dos pescadores e não ter inventado outro nome. Se já vinha inventando, e por muito tempo, um monte de coisas, bem que poderia dizer que seu nome era outro. Se mais tarde fosse descoberta seria pela pessoa e não pelo nome. Mas já que tinha errado quanto a isso, tinha que assumir o erro.
Agora era pensar no que fazer para não encontrar os dois quando chegassem por ali. Ir embora pra outro lugar não iria de jeito nenhum, principalmente porque nem pensava em retomar sua antiga vida de mulher de trocado. O passado não podia apagar, mas também se negava a fazer o mesmo que havia lhe causado tanta dor. Mas tudo tinha um motivo, sabia.
E pensando bem, dizia a si mesma, se for o caso de não ter jeito e o acaso colocar todos frente a frente, então era só agir com normalidade e ver o que podia acontecer. Se alguma coisa saísse errada, então não tinha outro jeito senão abrir a boca e dizer de vez toda a verdade. Dizer a verdade ao mundo, dizer a verdade aos outros, pois certas pessoas sabiam muito bem do segredo, e ninguém vive esquecendo-se de uma hora pra outra de marcos importantes do passado.
E pensou em muitas outras coisas até adormecer com a cabeça cheia de preocupações. E veio uma viagem, veio um sonho, veio um pesadelo. Uma mão lhe era estendida e ela não queria aceitar; a mão lhe puxava e ela era forçada a seguir, entrando num mundo que não conhecia, chegando a um lugar que não conhecia, acompanhada por alguém que talvez conhecesse, porém não conseguia ver o rosto, pois muitos outros rostos surgiram, gritando, chorando sorrindo, zombando, murmurando, gemendo, em gritos de dor. E foi viajando, viajando...
Lá fora conversavam a jornalista, a pescadora e a sulista. Na verdade eram duas sulistas, pois Cristina também era daquelas bandas, faltando ainda chegar Dona Doranice, os dois rapazinhos e os assessores. Não duraria muito e seriam muitos sulistas num lugar que talvez jamais imaginassem visitar um dia. Os que conseguissem voltar certamente teriam histórias inacreditáveis para contar, os outros deixariam ali mesmo seus últimos passos.
E já chegando à tardinha Cristina resolveu deixar na caixa seus enlatados e avançou com verdadeira voracidade sobre um prato de pirão de peixe. Surubim gordo, ao leite de coco e acompanhado por uma pimenta carregada de queimor, não era pra todo dia não. Antes dessa inesperada gulodice tomou um trago para o sangue se abrir ao pescado, segundo prescrição de Pureza.
Já no segundo prato, afirmando que nunca tinha experimentado um peixe tão bom, ouviu a pescadora dizer que aquele peixe ali havia sido um presente especial para ela que João pescador havia trazido. “E trouxe também aquela lembrancinha ali”, falou Pureza, apontando pra cima de um tamborete. Ao olhar alegre e feliz para o objeto viu que era um barquinho entalhado na madeira, pequenino e grandiosamente belo.
“Mas que coisa maravilhosa. É ele mesmo que faz isso artesanalmente?”, perguntou a jornalista, ainda de boca cheia. “É sim, é um menino muito trabalhador e inteligente. Pena que vive dividido nessa história de quem já morreu. Mas no dia que ele encontrar uma pessoa boa ele vai esquecendo aos poucos, tenho certeza. E se quiser agradecer pelo peixe e pelo barquinho é só ir ali naquelas pedras grandes mais tarde. Quando chega ao entardecer, quando o sol já vai querendo descambar, ele sobe ali e começa a pensar na vida. Outro dia até ouvi ele cantar uma cantiga bonita, tão bonita que até chorei escondido...”.
“Qual foi a cantiga, Dona Pureza? Por favor, cante um pouquinho”, pediu gentilmente. E a velha pescadora começou:
“Lenha na fogueira, lua na lagoa/ Vento na poeira, vai rolando à toa/ A cantiga espera quem lhe dê ouvidos/ A viola entoa, solidão de amigos/ A saudade lembra de lembranças tantas/ Que por si navegam nessas águas mansas/ A saudade lembra de lembranças tantas/ Que por si navegam nessas águas mansas/ Quando a cachoeira desce nos barrancos/ Faz a várzea inteira se encolher de espanto/ Lenha na fogueira, luz de pirilampos/ Cinzas de saudades voam pelos campos/ A saudade lembra de lembranças tantas/ Que por si navegam nessas águas mansas/ A saudade lembra de lembranças tantas/ Que por si navegam nessas águas mansas...”.


continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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