RETRATO DE FAMÍLIA
Rangel Alves da Costa*
Casa que se preze guarda em cima de qualquer móvel o retrato da família. Quando não cabe tudo num só porta-retrato, as fotografias vão sendo espalhadas em molduras próprias, numa o casal, noutra os filhos ou com outras arrumações.
O tempo vai passando e aqueles rostos com a jovialidade de um dia, simplesmente vão deixando aos espelhos que os recobre a dolorosa tarefa de mostrar o envelhecimento nos tons amarelecidos que vão surgindo. As cores turvas nos espelhos são as rugas que vão se formando lá dentro, ainda que a feição seja a mesma na fotografia.
Hoje os cabelos estão embranquecendo, mas nem parece aquele penteado vistoso do retrato; no sorriso que parecia tão espontâneo e tão bonito, hoje a sisudez do entristecimento; do olhar que parecia querer saltar de vivacidade resta apenas uma sensação de vazio sem brilho e que de vez em quando vai se molhando em gotas pelos cantos.
Ah, essas molduras antigas, envernizadas, parecendo trabalhadas à mão, quanta solidão te guardam. O ontem ali, na quietude silenciosa dos dias, se falasse, se avistasse o hoje, e como espelho se mirasse, ai também quanta agonia.
Estava no meu silêncio, na minha saudade, na minha vontade de reviver passos do passado e de repente, como sempre faço, o meu olhar repousa e os encontram novamente. Não os que avistei ainda hoje, conversei ainda ontem, tenho convivido sempre, mas aqueles que são os mesmos e que são outros.
São outros porque eu apreciava muito mais dos aspectos como eles eram na fotografia, no porta-retrato, na lembrança. Talvez num tempo de possível paz, havia certeza de ter uma família, ter o imenso prazo dessa linhagem familiar, desde o mais mocinho à ponta mais alta na árvore da ascendência.
Meus avôs, meus pais, meus irmãos e eu, tudo cabendo na sala-de-estar, todos nós com as faces de então, com as idades de então, espalhados pelos móveis, sempre à vista do olhar que os reencontrava para depois perguntar por que mudamos tanto, nos transformamos tanto. Por que somos ainda e não somos mais?...
Muitas vezes aproximei o porta-retrato do meu olhar e quis enxergar bem de perto aquele sorriso de menino que o tempo me tomou sem pedir licença. Depois sigo em direção ao espelho e, ainda com a fotografia na mão, tento sorrir o mesmo sorriso, imitar aquele gesto de um dia. E descubro que não somente o sorriso sumiu, mas que também sou apenas a cópia daquilo que os dias permitem me revelar.
Porém, o que mais me doi não é a vida que distorce o retrato, não é a mudança imposta em cada fotografia, não é o tornar tão diferente daquilo que fomos um dia. As pessoas crescem, envelhecem, mudam mesmo, e não seria possível desejar que o retrato de ontem refletisse a imagem de hoje. Não, isso não.
O que realmente doi, e faz doer muito - ainda que os outros digam que a vida é assim mesmo e que temos de acostumar – é a fotografia que parece também morrer com a pessoa que já não está entre a gente. Numa relação dolorosa, o retrato do ente querido cada vez mais também vai precisando de uma vela para ser enxergado.
Isso doi, e doi muito, mas não poderia ser diferente. Se não bastasse a dor incontida da perda, da lembrança que sempre traz aquela imagem querida à memória, temos que viver por muito tempo ainda nos despedindo para, enfim, talvez aceitar essa trama do destino. E a fotografia entende essa nossa angústia, esse tamanho sofrimento, e também vai tramando um lento distanciamento que é para o nosso bem.
Se eu olhasse para o porta-retrato agora encontraria nove sorrisos alegres, jovens, saudáveis, meninos. Reencontraria minha mãe sorrindo como ela lindamente sorria. Mas por que olhar agora, se é noite e a saudade dela já me basta nessa eterna aflição?
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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