SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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quinta-feira, 28 de abril de 2011

QUANDO OS PÁSSAROS MORREM (Crônica)

QUANDO OS PÁSSAROS MORREM

Rangel Alves da Costa*


Manhã chuvosa, sempre mais triste do que a tristeza que sempre vem, é para lembrar dessas coisas mesmo. Lembrar um monte de coisas e ter que entristecer, sofrer, e muitas vezes não há como ser diferente.
E como a gente começa a sentir como a vida possui situações dolorosas, coisas de cortar coração. Surgindo de uma coisa simples, como a própria chuva que cai, e uma imensidão de ilações surgem para confirmar o que vivemos tentado esconder.
Por que esse banco de jardim estava quase caindo e eu nunca fui perceber; essa árvore de galhos mortos agora mais fantasmagóricos quando a chuva faz escorrer seu sangue escurecido; esse chão repleto de folhas boiando, passeando no olhar como náufragas da omissão; esse jardim que era tanto meu e que de repente o esqueci e abandonei? E por quê, por quê e por quê?
Doi-me ser preciso que essa chuva venha inundar minha manhã para que eu tome conhecimento de tudo isso, tenha certeza do que não fiz, saiba que muita dor no olhar e no íntimo poderia ser evitada e não foi por minha própria culpa.
Não posso fingir que me chegam tantos sentimentos cortantes sob pena de o sol fazer esquecer tudo novamente, deixar tudo como está, apenas deixar para fazer os reparos necessários um dia qualquer. E se amanhã amanhecer chovendo novamente, o que me direi se não fizer nada agora?
O pior não é somente o galho apodrecido, a folha espalhada, o banco quebrado, o jardim praticamente abandonado. E se eu encontrasse o meu amigo passarinho, o meu grande amigo de asa e bico, que sempre fez moradia no meu jardim, morto, esparramado por cima dessas águas que se acumulam?
Nunca pensei como me sentiria se encontrasse numa dessas manhãs o meu amigo pássaro morto. Galho nasce todo dia, folha existe aos montes, banco é reconstruído, jardim pode ser transformado num paraíso verdejante a qualquer momento. Mas se o meu passarinho agora estivesse boiando por ali, por cima daquelas águas?
Conheço a dor de perto. Aliás, já vivi e senti todas as dores da dor, já fui vítima e réu em diversas situações dolorosas. Morri e renasci mudado, prometendo a mim mesmo que tudo faria para não mais sofrer, para não ter mais que suportar tanta dor. Mas tudo isso sempre fez parte do mundo lá fora, onde a grande maioria das pessoas vive para engendrar o sofrimento nos outros.
Mas aqui nesse jardim nunca tinha me vindo à mente uma dor tão misteriosamente dolorida como essa advinda da suposta morte do meu passarinho. E de repente, apenas com o pensamento que parece avistar o meu amigo virando de pernas pro ar numa poça d’água, tudo começa a parecer angustiante demais. E essa chuva que continua, e essa chuva que não quer cessar...
Com a visão do meu pássaro morto boiando por cima das águas sinto que muitas das dores sofridas não passaram de medos e meras aflições. Ainda que o sofrer fosse indubitável presença, mesmo assim não seria suficientemente forte para dizer que era verdadeiro sofrimento. Ora, eram apenas poeiras transformadas em furacões porque não conhecia o sofrer verdadeiro.
Agora com a simples imagem do meu passarinho no seu leito de morte posso sentir que a dor tem outros limites. Muitas vezes o ser humano não merece uma lágrima sequer, qualquer sentimento honesto de comoção. Ele não é passarinho, não sabe apenas viver, procura meios para o que o pior aconteça.
Mas com meu passarinho é diferente, pois ele é a pessoa que eu queria ouvir, sentir e tocar. E ainda assim sinto tudo que ele sempre quis me dizer: quando os pássaros morrem, morre também um pouco do jardim e de quem os ama. E com as pessoas busca-se apenas o esquecimento.
E essa chuva não passa, não cessa e preciso avistar meu amigo pássaro. As águas trazem mais folhas, mais lixo, mais tudo. E não quero tanta dor, não quero tanto e tão verdadeiro sofrimento...



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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