DESCONHECIDOS – 77
Rangel Alves da Costa*
Logo cedinho, coisa de madrugar mesmo, quando Pureza já havia levantado, preparado um cuscuz e um café batido no pilão, daqueles cujo aroma sobe as serras e vai invadindo tudo que encontra pela frente, Cristina apareceu lhe desejando um bom dia, porém se espreguiçando e bocejando.
“Bom dia pra você também minha fia, mas cuide de voltar pro seu cantinho que ainda é madrugar e isso não é lá hora de moça da cidade levantar não. Pode ir dormir um pouquinho mais. Eu já estou na lida porque sempre faço assim, nem que esteja caindo canivete. Depois de tomar uma golada de café vou ajeitar meu barquinho, colocar ele n’água pra mais tarde jogar a rede. Se der sorte vamo comer peixe de novo hoje, do contrário você vai ter que comer suas coisa de lata mermo. Mas se não quiser deitar mais, aproveite e passe ovo de galinha de capoeira. O cuscuz já tá pronto e o café também. Experimente. Mas se eu fosse você só tomava o café com mistura depois de tomar um banho no rio. Minha fia, essa hora a água tá geladinha e boa que só...”.
“É isso mesmo Dona Pureza, vou tomar um gole de café e vou experimentar a água desse rio. Logo cedinho deve ser uma delícia mesmo. A senhora não vai não?”, perguntou Cristina, ao que a pescadora respondeu: “Mai minha fia, eu tomo banho é o dia todinho pescando nesse rio”.
Logo após sair do barraco, Cristina sorriu e levantou os braços como estivesse cumprimentando a natureza. E merecia fazer isso mesmo, pois a manhã estava realmente belíssima, com os encantos próprios da natureza, cantos de pássaros e o murmurejo das águas correndo tranqüilas.
Olhou adiante, na direção da casa da tapera de João e enxergou apenas alguma coisa parecendo duas pessoas em alguma ocupação. Do outro lado, rumando para a casa das mocinhas, tudo mansamente calmo. Noutros barracos ao redor, uma lidinha ainda preguiçosa demais.
Tirou o roupão e foi entrando de short e camiseta de malha curtinha na água. Caminhou um pouco mais e quando já estava com a cintura molhada mergulhou de corpo inteiro, e que maravilha. Ficou mergulhando por uns cinco minutos e imaginando como alguma coisa ruim poderia existir ali. Dificilmente alguém poderia acreditar naquelas conversas de pavor e medo envolvendo o próprio paraíso. Ao menos ao amanhecer, ali era o próprio paraíso.
Em seguida sentou numa pedra e ficou observando o outro lado, olhando para a montanha com a igrejinha já pronta para ser inaugurada, bem como a casa de veraneio da família Apogeu. Mais tarde ia ver de perto aquelas obras, pois tinha também interesse em conhecer tudo ali detalhadamente. Assim, pensando, ainda admirada com tanta beleza, nem percebeu quando a água começou a borbulhar mais adiante, como se alguma coisa se aproximasse por baixo.
Quando baixou o olhar para mergulhar novamente viu a imagem de uma mulher debaixo d’água, mas cuja voz era ouvida como se saísse de cima: “Nem pense em olhar pro meu João, nem pense em se aproximar dele outra vez. Ele é meu, me pertence, e também sou dele. E gosto tanto dele que venho buscar ele antes dele nem imaginar. Mas se ficar com você vai ser pior pra os dois”. E tudo repentinamente desapareceu.
Num salto e Cristina já estava fora d’água, tremendo, assustada, amedrontada. Correu para a tapera, mas sem a intenção de contar nada a ninguém. E lá onde estava, já ajeitando também seu barquinho para a pescaria, João recebeu igualmente a inesperada visita. Sabia que de vez em quando ouvia vozes da falecida esposa, e até já estava acostumado. Mas nunca ela havia aparecido raivosa como ontem ao entardecer, enquanto a moça colocava a corrente no seu pescoço.
Diferentemente do que sempre ocorria, agora ouviu a voz logo cedo, e falando assustadoramente: “Se afaste daquela mulher, se afaste daquela estranha. Se não se afastar será pior pra ela, que vai ter o que bem merece por querer o que já tem dona. Estou dizendo. Se afaste daquela desconhecida antes que seja tarde, antes que seja pior. Está bem avisado. Se afaste daquela mulher”. E a voz desapareceu também repentinamente.
Depois disso João correu até o barraco e acendeu uma vela e fez uma oração em intenção daquela alma que não queria descansar de vez. Mas isso não podia ficar assim de jeito nenhum, pensava entristecido. Por mais amor e saudade que sentisse de sua esposa, não podia aceitar que um espírito quisesse agora dizer o que devia fazer ou não. Ademais, querer envolver quem não tinha nada a ver nessa história de ciúmes do outro mundo.
De qualquer maneira, ao menos por enquanto os dois resolveram silenciar sobre o caso. João não comentou nada com o amigo Quelé nem Cristina disse nada à amiga Pureza. Contudo, aquelas aparições, a voz chegando e as palavras ditas ficaram martelando na cabeça de cada um.
Se por um lado a jornalista nem imaginava o que significava aquilo, a não ser o conteúdo das palavras, por outro João sabia muito bem o porquê da aparição: a falecida não aceitava de jeito nenhum que ele se envolvesse e amasse outra mulher. O pior é que a ameaça estava feita. E ameaça de defunto que de vez em quando se põe a vagar nunca deve ser desconsiderada.
Um pouco mais tarde, quando já ia saindo do barraco em direção à tapera das mocinhas, com o triplo objetivo de visitar, saber da saúde de Soniele e tentar descobrir mais alguma sobre o danado do segredo, avistou uma movimentação diferente do outro lado. Alguns barcos e canoas estavam sendo descarregados e pessoas iam e vinham, tanto subindo em direção à igrejinha como entrando na casa do coronel.
E ele próprio, o coronel Demundo Apogeu, já vinha no meio do rio gritando o nome da jornalista. Dirigia-se para o lado de cá, para a vila dos pescadores.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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