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sexta-feira, 22 de abril de 2011

O VELÓRIO DA VAGABUNDA (Crônica)

O VELÓRIO DA VAGABUNDA

Rangel Alves da Costa*


Até pouco tempo antes de estranhamente morrer, ainda tão jovem, bonita e radiante de si mesma com muito orgulho, a mocinha só não era chamada de santa, pois de vagabunda a ladra, além de outros deploráveis adjetivos, era qualificada de janela a esquina, de boca em boca, do menor ao maior.
Morreu, de forma ainda não convincentemente explicada, e estava simplesmente estirada no caixão da casa dos seus pais. Era filha única de um casal humilde, bondoso, de inabalável conduta.
As pessoas foram chegando para o velório, formando um grupinho aqui outro ali, e as conversas que se ouvia sobre a falecida eram consensuais. Pelo visto a totalmente desqualificada de repente havia se tornado santa.
Pedro da Farmácia dizia em voz alta que o melhor da juventude estava ali representado naquela pessoa tão querida, honesta e amiga, agora lamentavelmente sem vida.
Tonho do Correio chegava a chorar e dizia que ontem mesmo, de tão amiga que era, tinha lhe confidenciado que o seu sonho era ser modelo ou atriz, era seguir a carreira artística para ajudar os seus pais.
Maria de Pureza tecia elogios de não acabar mais: uma santa, uma verdadeira santa, um amor de pessoa, com um coração maior que o mundo, e que ia deixar um vazio jamais preenchido no coração de todos os seus amigos.
Lopeu, o maior namorador da cidade, chorava pelos cantos e de vaga em vaga dizia que nunca tinha visto na vida mulher mais bonita, mais cheirosa, mais honesta, que até tinha feito promessa para ao menos beijar sua mão um dia.
Leninha, de óculo escuro maior que o rosto, chegou com um arranjo de flores plásticas que não tinha mais tamanho e foi logo depositando numa cadeira ao lado do caixão. E depois declamou um poema onde misturava os anjos voando tristonhos para levar aquela pequena e linda flor para a eternidade.
Em meio às declarações, declamações, elogios e endeusamentos, eis que chega o padre para rezar a missa de corpo presente. Ao adentrar na humilde sala empesteada de gente e observar os rostos e semblantes de quem estava ali, nem pensou duas vezes e se danou a falar:
O que estão fazendo aqui, cambada de falsos, mentirosos, fofoqueiros imprestáveis? Essa pobre mocinha não teve um dia sequer na vida que não tivesse sido difamada, injuriada, achincalhada, colocada em cabaré pela língua ferina e nojenta de vocês.
Venha cá Pedro da Farmácia, venha aqui dizer que ela era pessoa boa, venha. Se tiver coragem venha, para o povo saber que você ontem mesmo pagou a viúva Quitéria pra escrever uma carta inventando as maiores mentiras sobre ela.
Você, Tonho do Correio, falou alguma coisa? Acho que não, pois semana passada você veio aqui fofocar nos ouvidos do pai dela e mentir dizendo que ela tava fazendo vida no cabaré.
Tenho certeza que Maria Pureza não tinha a petulância de tecer um só elogio a essa pobre defunta. Você não jurou ela de morte antes de ontem, dizendo que pagava quanto fosse a pistoleiro pra matar quem desse em cima de seu marido? E tudo mentira, pois o safado você sabe bem quem é.
Lopeu está aí, é Lopeu? Está fazendo o que aqui, seu descarado? Lembra que você disse que ia botar a moto por cima dessa vagabundinha rampeira que nunca deu a mínima pra você?
Como vai Leninha? Tire os óculos que é pra o povo ver seu olhar de falsidade, esses seus olhos infames que a terra devia comer logo antes de qualquer outra. Quanto você pagou, por ciúme da beleza dela e de sua feiúra, pra Zoião dar uma surra nela, fato que não se concretizou porque eu soube antes?
E já que estão aqui, agora todos tão amigos da pobrezinha, então vamos tentar descobrir quem fez essa maldade com ela.
E não ficou um pé de pessoa.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

José Mendes Pereira disse...

Amigo Rangel Alves:

Gosto muito de sonetos, pois quero publicar um dos seus neste blog, mas não encontrei.

O velório da vagabunda é excelente, fala realmente a realidade dos falsos, dos mentirosos, dos fofoqueiros, das invenções para denegrir a imagem dos outros. Valeu! Muito bem criada esta crônica.

José Mendes Pereira - Mossoró-RN