SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 31 de outubro de 2016

UM OLHAR SEM DISFARCES


*Rangel Alves da Costa


Em muita coisa eu não acredito. Também não gosto de muita coisa. E não sou de meio termo, ou sim ou não, e está acabado. Também não me deixo levar pelos outros nem me conduzir por falsos floreios de modismos ou propagandas. Faço meu próprio modismo e só me sirvo daquilo que reflita o meu jeito de ser e viver. Nem luxo nem lixo, mas o comedimento necessário à humildade, à simplicidade, ao existir para a compreensão e não para a ostentação.
Eu não conheço nem reconheço pessoas pela fama, status, posses, poderes, brilhos ou instantâneos. Eu só conheço pessoas pelo que são enquanto seres humanos, e não pela aparência ou representação social. Não reconheço quem aos outros desconhece, não reconheço que não avista pessoas, mas tão somente submissos ou subordinados. Não reconheço quem se protege em escudos e esconde suas mazelas. Mas conheço o pobre, a pessoa comum, o humilde, aquele qualquer um que por tantos é desprezado.
Eu não dou o mínimo valor àqueles que se acham sempre um patamar acima das demais pessoas, que se sentem sempre como em pedestais, que olham para baixo como se estivessem em cima das escadas da fama e do reinado da celebridade. Igualmente não comungo com intelectualismos exacerbados nem com sabedorias forjadas em poucos livros. Repugnante é toda expressão forjada para que o comum não entenda, é toda escrita cuja leitura seja incompreensível até mesmo para os idiotas de mesma monta. Ou a palavra é expressa para ser compreendida ou a inteligência tem de sair da ignorância.
Eu nunca acreditei em frases atribuídas a filósofos, soberanos, estudiosos, famosos ou se já lá quem seja visto como exemplar sabedoria. De vez em quando, surgem fatos novos transferindo ou modificando as autorais, quando não as negando totalmente. Comumente surgem afirmações de frases que foram citadas nos leitos de morte, ditas como últimos suspiros. Ou ainda frases que seriam impossíveis de serem ditas perante as situações e mesmo registradas por alguém. Quem ouviu o moribundo e solitário alpinista das geleiras do Everest dizer como últimas palavras que “A morte é fria demais”?
Eu não beijarei qualquer boca sem antes perguntar à sua dona se realmente sabe beijar. Acaso ela avance de boca aberta e lábios ávidos por sugar, então não me servirá. Acaso ela pense que beijo é sucção, é mordida ou melação, certamente que não me servirá. Será que tenho de ensinar e dizer que beijo é toque suave, é carinho, é roçar de lábios, é como um amoroso sussurro? Será que terei de dizer que o beijo possui asas e faz voar, que é diálogo entre lábios e não mangueira ou aspirador?
Eu não tiro foto com prato de pouca coisa, com folhinhas e filetes, se o que gosto mesmo é de comida com farinha, arroz, feijão e carne de panela. Gorda, ainda por cima. E se possível com uma pimentinha do lado e um caldo num pires para fazer bolo de feijão com a mão e tascar pra dentro. Comida boa não é aquela de cardápio grã-fino, de menu impronunciável, de chiqueza e etiquetas. Comida boa é aquela que faça gostar, saborear com prazer, querer sempre um pouco mais. E se come bem sem ter de pagar absurdos e levantar da mesa ainda faminto.
Eu não posto fotografia com fotoshop, todo costurado e remendado, maquiado e alisado, com pele de anjo e cabelo de seda, se assim não me reconheço. Acaso eu vivesse escondido e as pessoas jamais confrontassem o que verdadeiramente sou com o que finjo ser, então tudo bem. Mas quero ser sempre reconhecido e não irreconhecível. É melhor se mostrar como é e assim ser avistado, sem se iludir a si mesmo nem querer enganar ninguém. O que é jamais deixará de ser por causa de uma arrumação fotográfica. O belo sempre estará na autêntica simplicidade.
A vida e o viver necessitam, assim, de olhares sem disfarces. As realidades não podem ser fingidas ou maquiadas. Ou a pessoa enfrenta as situações com a sua verdade ou viverá apenas pelas aparências. Ou, o que é pior, num mundo irreal e alheio a si mesmo.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Nas ribeiras do Velho Chico...




Acontecer (Poesia)


Acontecer


Triste
solitário
angustiado

falta-me o amor
falta-me amar

encontrar
querer
gostar

venha-me o amor
venha-me o amar

sorrir
cantar
brincar

sinto-me amando
sinto-me amar

beijar
abraçar
compartilhar

do amor
todo o amar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – arroz-doce, macasado, pote de barro...


*Rangel Alves da Costa


Estou na minha terra natal, em Poço Redondo, no alto sertão sergipano. Dia de segunda é também o dia de feira na cidade. Abrigo-me pertinho do mercado municipal e do local da feira, e desde ontem à noite que vejo a chegada de carros, caminhonetes e caminhões trazendo mercadorias, principalmente frutas: melancia, mamão, laranja, goiaba, jaca, jenipapo, e muitas outras espécies. E hoje, desde as quatro da manhã que já ouço a arrumação das coisas, a caminhada de pessoas, o barulhar próprio da feirança em seu início. Logo mais, então, será meio mundo de gente indo e voltando, passando de sacolas vazias e retornando abarrotadas dos produtos da terra. Certamente um quilo ou dois de carne de porco, de gado, de carneiro. Certamente um quilo ou dois de fato, de sarapatel, de mocotó. Daqui a pouco também por lá estarei, mas não para qualquer compra, ainda que não me encante tanta coisa boa e saudosa que hei de encontrar. Mas objetivo mesmo reencontrar a verdadeira feira interiorana e sua profusão de cheiros, sabores e aparências, que tanto encantam olhar e coração. Bem sei que ali o arroz-doce, o mungunzá, o bolo de macaxeira, o pé-de-moleque, o mingau de puba, o macasado, o pote de barro, a moringa, o boi de barro, a arte em madeira, o trançado de cipó e todo o fazer de um povo, de um povo sertanejo. Assim o mundo interiorano em seu dia de feira. Um mundo que também é o meu, de coração.


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domingo, 30 de outubro de 2016

VIVER E MORRER NO MUNDO CORONELISTA


*Rangel Alves da Costa


Depois de tanto tempo de compromisso e submissão, eis que de repente o cabra, por um motivo ou outro, passava a não ter mais serventia. E ia morrer pelas mãos dos capangas daquele mesmo coronel que um dia lhe garantiu proteção.
E protegia mesmo. Mas até onde o cabra lhe tivesse serventia. Até onde fosse útil à tocaia, à emboscada, ao recado melindroso, ao segredo guardado, a tudo que saiba e que não podia revelar. Mas sempre chegava um tempo de desconfiança, quando o desacreditado tinha de forçosamente silenciar debaixo do chão.
Assim, a segurança coronelista ia até o momento que este precisasse se livrar da ameaça do protegido. Muitas vezes, este conhecia tanto do lamaçal sangrento, de mando e perseguição, que podia se tornar em perigo. Passava a conhecer tramas e segredos que não podiam ser revelados. Então o coronel lhe dava o último sorriso já sabendo de sua sina.
Já dizia o velho Leontino - e com razão - que coronel nordestino nunca gostou de quem quer que fosse. Toda sua amizade era construída por interesse, num jogo de mando e poder, que tanto podia perdurar por mais tempo ou acabar num instante.
Prosseguia dizendo que coronel nunca confiou nem nele mesmo, muito menos em qualquer outro. Sua maldade e perversidade chegavam a tal ponto que parecia viver assombrado, vendo inimigo em tudo e por todo lugar. Numa situação assim, qualquer um podia pagar pela desconfiança.
Talvez fosse o poder acastelado no feudo rodeado de proteção, como num pedestal inacessível, que o tornava tão solitário e tão explosivo. Tramando ter mais poder, tecendo a vida e a morte, ao abrir a boca ou bater o cajado, outra coisa não fazia senão ordenar. E ordem de fogo e sangue a ser cumprida antes que a cusparada secasse.
Numa simples ordem, e uma sentença de vida e de morte. Ora, para ele tanto fazia a vida ou a morte do outro, do inimigo, do litigante ou mesmo do inocente. Mandava matar pai de família empobrecido que não quisesse se desfazer de seu pedacinho de terra nas vizinhanças do latifúndio.
Qualquer um poderia ser sua vítima. Decidia sempre em proveito próprio e contra quem quer que fosse. O coronel de verdade, aquele de latifúndio, poder e capangagem, jamais tomou qualquer decisão que não fosse em seu único e exclusivo benefício. Até mesmo quando abria as portas do curral para eleger um candidato estava trocando o voto por mais poder.
Quando se comprometia a acolher nas suas hostes e dar proteção a foragidos e perseguidos da justiça e da polícia, outra coisa não fazia senão aumentar seu regimento de jagunços, capangas e assassinos. E assim porque todos passavam a lhe dever cega obediência.
A desobediência ou o serviço malfeito, quando o jagunço errava a tocaia ou não trazia a orelha como troféu, era sentença de morte. Ou o cabra fugia ou logo receberia como troco o trato que deixou de cumprir. E se fugisse era derrubado do mesmo jeito. Não havia escapatória. O jagunço ia matar jagunço onde o fugitivo estivesse.
Certa feita, um ex-cangaceiro de Lampião se viu forçado a pedir proteção a um coronel após a chacina de Angico, onde o cangaço teve fim. Temia ser morto pela volante caçadora de fugitivos. Então se debandou para o feudo coronelista e lá foi acolhido com segurança.
No reduto coronelista, logo encontrou outros na mesma situação. Não eram capangas nem jagunços, pois recebendo proteção especial pela fama, linhagem familiar ou a mando de outros amigos influentes. Mas cada um tinha o seu tempo de estadia e de retorno.
Contudo, gente existia que jamais deixava de dever obediência ao poderoso, pois de vez em quando retornando pela reincidência nas práticas virulentas. Mas todos sabiam que jamais, mesmo já estando distantes daquele feudo, poderiam contrariar o coronel.
E o ex-cangaceiro, mesmo já tendo saído do reduto coronelista e alcançado voo próprio, começou a agir de modo não desejado pelo seu ex-protetor. E uma vez contrariado o mando, a sina do subvertido não era outra senão ser alcançado pela poderosa fúria.
Então foi morto pelas mãos de homens que creditava grande confiança e amizade. E eram realmente amigos e de confiança. Contudo, muito mais do coronel. E a este não podiam faltar de jeito nenhum, sob pena de terem o mesmo destino. O que, aliás, acabaram tendo mais tarde.


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Lá no meu sertão...


No remanso das águas do Velho Chico, a canoa, o barco, a vida que segue lentamente bela de cais a cais...




Araticum (Poesia)


Araticum


Araticum
fruta do mato
tempo faz
que não
lhe cato

araticum
carne macia
doce na boca
escorrendo
em alegria

tudo isso
em longe dia
e assim longe
do araticum
nada sacia.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - comer sem frescuras


*Rangel Alves da Costa


Não faço questão de sentar à sua mesa enfeitada, cheia de etiquetas e formalismos. Também não me interesso pelos pratos que são servidos nem pelas taças e garrafas que são colocadas à disposição. Nunca me acostumei com terrinas, compotas, tigelas, louças, talheres finos. Tenho como abominável que o alimento seja servido como ritual e a alimentação como um protocolo. Aflige-me saber que à mesa há uma grã-finagem faminta, mas que não pode comer nem como deseja nem o que quer. Tudo no tiquinho, na porção, na medida. O olho guloso, a boca faminta, mas tem que mostrar educação. Não me exponho a tais ridículos. Comida é para ser comida sem receios ou frescuras. Comer muito, encher o prato se for preciso, servir-se de mais, repetir e querer mais. Comer com a mão, fazer bolo de feijão, colocar ao lado um pratinho com pimenta. E também lamber os beiços e os dedos, se for preciso. E nada de comida com nome estrangeiro, impronunciável ou desconhecido. E nada que venha pouco. Tudo muito. Muita carne de porco, de gado, de cabrito. Muito feijão, muita feijão, muito sarapatel, muita galinha de capoeira, muito caldo, muito mocotó, muita carne assada, muito lombo e pernil. E a única medida ser a fome que se tem.


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sábado, 29 de outubro de 2016

A MORTE DA PROSTITUTA


*Rangel Alves da Costa


Morreu ainda na idade de cama, alguém afirmou com voz embargada e olhos lacrimejantes, ao saber do passamento da prostituta. Prostituta não, uma dama das quengas, diria outra, ante um gole de rum como despedida.
Toda a região do meretrício se espantou quando o anúncio da morte foi confirmado. Muitos diziam não acreditar que a mais famosa das putas de cabaré havia morrido. Gente chorava, gente gritava, de repente os desmaios, as dolorosas manifestações. Mas todos se perguntando: Morreu de que?
Morreu de morte matada, um logo respondeu. Não de tiro nem de faca, não de pedra jogada nem de punhalada, mas de uma morte matada diferente: morte matada por amor. Sim, a prostituta havia morrido de amor, mas de um amor tão sofrido que se podia considerar como a lâmina mais afiada.
Um amor tão secreto quanto não correspondido. Suas amigas tudo faziam para que ela derramasse de vez suas mágoas, revelando nome e sobrenome daquele que tanto lhe afligia o coração. Será o Coronel Licurguino, aquele do Engenho D’Água, perguntava uma. Ou será o deputado Climério Veremundo, aquele calhorda fisgador de corações, indagava outra.
Mas a verdade é que ninguém sabia. Ora, quem vai acreditar em amor verdadeiro numa mulher que por toda vida abriu as portas pra qualquer um? Verdade que já na robustez da idade se dava o direito de escolher seu macho, segundo o poder político, governamental ou coronelista que quisesse. Mas ninguém acreditava que pudesse se apaixonar.
Morreu com um copo de uísque derramado sobre o seu peito. Dançava sozinha um bolero antigo, inebriada de amor e solidão, sussurrando baixinho um nome tão desejado e tão cruel ao seu coração. Quando o batom vermelho roçou a borda do copo para mais um trago, um repuxo acompanhado de dor no peito fez com que caísse no meio da solidão do bordel, ao som do bolero:
“Siempre que te pregunto/ Que, cuando, como y donde/ Tu siempre me respondes/ Quizás, quizás, quizás/ Y así pasan los días/ Y yo hay desesperando/ Y tu, tu, tu contestando Quizás, quizás, quizás/ Estás perdiendo el tempo/ Pensando, pensando/ Por lo que más tú quieras/ Hasta cuando? Hasta cuando?...”.
Quizás, quizás, quizás, talvez, talvez, talvez... Eis a tortura a mortalmente afligir aquele coração sem mais tempo para esperar. O copo deitou-se sobre o seu peito, a boca vermelha sorria, os olhos brilhavam vívidos, tão bela ainda, tão bela... O corpo estirado sem vida e a vitrola repetindo: Quizás, quizás, quizás...
Quando Rosaflor - um amulezado zelador de bordel - entrou no salão para fazer limpeza, quase se defunteia também ao se deparar com a morta ao chão. Deu dois gritinhos finos, três pulinhos e procurou um lugar para desmaiar. Depois de passado o chilique, correu a gritar porta afora: Açucena morreu, Açucena morreu, Açucena morreu!
Após a notícia se espalhar, logo foi determinado luto fechado até o enterro da amiga. Quer dizer, daquele instante em diante nenhuma quenga abriria as pernas pra macho algum, em respeito àquela que tão bem havia representado a vida raparigueira. Não havia sido à toa que ela tinha levado ao bordel as classes mais influentes e endinheiradas da região.
O velório mais estranho que já existiu, mas foi assim com o de Açucena. O salão do bordel todo enfeitado de rosas vermelhas, as raparigas chorosas ao redor, todas de xales negros e lenços molhados. A defunta parecia sorrindo, contente com a homenagem das tantas amigas, desde quengas novas a quengas velhas.
Mas seu rosto pareceu entristecer e dos olhos surgirem como um filete de lágrima, assim que os clientes antigos e outros senhores começaram a chegar para o derradeiro adeus. Foi quando uma das mulheres segredou: No meio destes está o grande amor de Açucena. Mas qual será?
Impossível saber. Todos que dela se aproximavam com buquês se derramavam em lágrimas, diziam palavras apaixonadas, revelavam segredos até safados demais para o momento. Mas quando um se abeirou do caixão sem levar qualquer flor, apenas com sua mão para acariciar as mãos da defunta, então esta empalideceu a palidez mais pálida dos mortos.
Será este o doce amor e mortal veneno? Quizás, quizás, quizás...


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Lá no meu sertão...


Sertão ao olhar. Amar, amar...




Aprender na dor (Poesia)


Aprender na dor


O amor foi à guerra
e com feridas retornou
na força que não se encerra
ainda assim mais amou

o amor foi ao deserto
e tristeza e solidão amargou
mesmo com destino incerto
foi mais amar que buscou

o amor em mim sofreu
por tanta lágrima e aflição
mas da dor a lição aprendeu
cultivar o querer como devoção.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - vivendo das ilusões achadas


*Rangel Alves da Costa


As ilusões perdidas se alastram como desesperanças. Quem necessitar ter esperanças, que se contente com as ilusões achadas. Quando mais jovens, geralmente na fase adolescente, as pessoas costumam sonhar e fantasiar situações que, se realmente acontecidas no futuro, tornariam a vida plena de felicidades. São as ilusões, as quimeras, as fantasias. São os sonhos, os desejos, as expectativas futuras. Com o passar dos anos, contudo, tudo vai se revelando distante, difícil de ser conseguido, numa impotência que chega a doer na alma e desacreditar que seja possível conseguir além do simples viver. Muita gente abandona mesmo o sonho. Outra parte insiste e persiste, ainda que pouca ou quase nada consiga do almejado. Em situações tais, quando os grandes sonhos parecem irrealizáveis, não resta outra coisa senão viver das ilusões achadas. Ou das pequenas ilusões casualmente experimentadas. Ante um mundo tão difícil de ser vivido, ante as tantas dificuldades que surgem, qualquer conquista é comemorada, festejada como grande vitória. São as pequenas ilusões achadas em meio às descrenças e às devastações das esperanças.


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sexta-feira, 28 de outubro de 2016

PADRE MÁRIO ANDA, CORRE, BRINCA!


*Rangel Alves da Costa


Cheguei ao portão, olhei esgueirando-me pelas frestas, e avistei alguém descer de um pé de pé de goiabeira com uma fruta já sendo avidamente devorada e outra bem madurinha à mão. Mas quem será? Indaguei admirado.
E mais surpreso ainda quando não duvidei ser o Padre Mário fazendo estripulias pelos arredores da casa paroquial. Mas não pode ser, pois o homem só vai de canto a outro em cima de uma cadeira de rodas. E de repente ouvi uma bola sendo chutada e a bolada forte bem do lado de dentro da madeira do portão.
Danou-se. Mas não pode ser. O homem não dá um passo sequer sem ser levado, e como agora o encontro descendo de goiabeira e jogando bola às escondidas, numa hora que nem o sol tomou ainda o lugar do alvorecer? Então gritei. E novamente gritei chamando pelo nome: Padre Mário, Padre Mário!
Mas tudo silenciou ao redor. Aquele Padre Mário menino, andante, brincalhão, subindo em goiabeira e correndo atrás de bola, havia sumido. Num segundo depois ouvi uma voz forte, aguda, vinda lá de dentro da casa. “Que pecador incomoda os céus nesta hora do dia? Um momentinho. Já vou!”.
E em seguida, guiando a própria cadeira de rodas, na varanda apareceu aquela imensidão iluminada. Era aquele Padre Mário que eu conhecia. Porém eu não estava maluco de duvidar que, há bem pouco tempo, tinha avistado o mesmo homem descendo da goiabeira e correndo atrás de bola, com a normalidade dos atletas.
“Pode entrar. O portão está aberto.”, ouvi. E entrei. Antes mesmo de pedir sua bênção, fui logo dizendo: “Possa ser que eu esteja malucando, mas juro por Deus que tinha avistado o senhor em danação e correria aí pela frente. Mas como pode ser?”. Então ele espalhou aquele sorriso largo e respondeu:
“Pode ser sim. E era eu mesmo. Quase todos os dias eu faço isso logo cedinho, quase na madrugada. Mas até somente um pouco antes de eu acordar e o meu sonho menino partir. O meu sonho de menino que anda, que sobe em goiabeira, que brinca de bola, que corre e vai andando para onde quiser. O sonho que se realiza até eu acordar. E você me avistou quando eu ainda estava em sonho. Você me avistou no menino que sou em sonho. Mas aqui estou eu, esse pássaro sem asas e com tanto céu!”.
Imaginei que tudo isso eu só poderia ouvir de um semblante entristecido. Engano meu. A força, o brilho e a alegria, eram como aleluias em Padre Mário. Eram maiores que toda manhã, que todo o sol, que toda a vastidão sertaneja.
Para quem ainda não o conhece, informo que o Padre Mário César Souza é um jovem sacerdote, pároco da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição, no município de Poço Redondo, no sertão sergipano. Expressão humana amada por todos, está enraizado no coração sertanejo como o bom fruto da terra.
Cadeirante, cumpre sua missão com a ajuda de pessoas que o conduzem pelas igrejas, povoações, onde o seu rebanho estiver. É encontrado sempre na sua cadeira de rodas. Mas é como se o avistasse levantando para caminhar e receber e abraçar os amigos e fiéis.
E há quem diga que voa. Há quem diga que Padre Mário consegue voar!


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Lá no meu sertão...


Na Trilha do Cangaço. Em meio às veredas sertanejas, no município sertanejo de Poço Redondo, em Sergipe, os passos seguem em direção à Gruta do Angico, local da chacina do bando de Lampião, em 1938.




E eu gostava tanto (Poesia)


E eu gostava tanto


Nunca mais araçá
e eu gostava tanto de araçá

nunca mais quixaba
e eu gostava tanto de quixaba

nunca mais aricuri
e eu gostava tanto de aricuri

nunca mais minha mãe
nunca mais meu pai

e eu gostava tanto de ser filho
e eu gostava tanto de ser menino

e já nem sei se gosto das coisas
como antigamente eu gostava

o que ainda gosto já não existe
o que recordo está distante demais.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - é doloroso demais quando se acostuma a sofrer


*Rangel Alves da Costa


Parece mesmice, mas uma certeza que precisa ser repetida: o ser humano não nasceu predestinado ao sofrimento. A ser um pêndulo do Eclesiastes sim, pois com idas e vindas, com alegrias e tristezas, contentamentos e melancolias, mas não apenas relegado ao sofrimento. Contudo, num mundo e numa existência onde as felicidades e os prazeres são tão inacessíveis, onde os pequenos deleites se tornam fruição a tão poucos, então os sofrimentos, as angústias, problemas, desilusões e pesares, acabam se tornando tão costumeiros que mais parece não existir mais lugar para a felicidade. E muita gente acaba mesmo desconhecendo o que seja a felicidade. Com cotidianos de problemas desde o amanhecer ao anoitecer, com novas aflições que surgem a cada passo, difícil não ter forçosamente que acostumar com o lado pior da vida: viver sem paz. Não são poucos os que sequer se recordam do último sorriso, do último instante de verdadeiro prazer. Mas da lágrima sim, da dor sim, da angústia sim. O homem não nasceu para ser assim, para viver assim. Mas está se tornando assim cada vez mais. É como se a esperança maior não fosse alcançar um sonho bom, mas tão somente que os pesadelos não se confirmem desde o alvorecer.


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quinta-feira, 27 de outubro de 2016

A MENINA AFEGÃ DE OLHOS VERDES E A MULHER AFEGÃ DE OLHOS TRISTES


*Rangel Alves da Costa


Um lenço vermelho sobre a cabeça e se derramando rasgado pelos ombros até se misturar a uma veste verde-escuro. Olhos grandes, vívidos, de castanho-esverdeado, como que surpreendidos ou espantados. Cabelos castanhos em acaju, e no semblante de pele clara queimada de sol uma menina estranhamente bonita. Filha da guerra, filha do refúgio, filha da crueldade do homem para com os seus. Seu nome: Sherbat Gula. Ou simplesmente “A Menina Afegã”. Uma órfã que desde a meninice começou a conviver com os sofrimentos dos forçosamente deslocados para terras estranhas.
Nesta quarta-feira, 26/10, li no noticiário que Sherbat Gula havia sido presa. Para melhor delinear a situação, informo que a prisioneira é aquela menina afegã, com cerca de 13 anos, de olhos verdes, fotografada pelo jornalista Steve McCurry da revista National Geographic, em 1984, mas com reportagem publicada somente na edição de junho de 1985, então vivendo como refugiada no Paquistão. A fotografia fora tirada em meio a meninas estudando no campo de refugiados de Nasirh Bagh, na província de Peshawar, fronteira com o Afeganistão.
À época, Nasirh Bagh havia se tornado o forçado lar para milhares de refugiados afegãos que fugiam das atrocidades contra mulheres, velhos e crianças no seu país. Desde a invasão soviética no Afeganistão (1979-1989) até a tomada do poder pelos talibãs, num entremeado de guerras, guerrilhas e acossamento sangrento das minorias, que o território paquistanês foi tido como lar distante para deserdados, fugitivos e retirantes. Era neste campo paquistanês que a menina Gula estava quando foi encontrada e fotografada pelo jornalista da National Geographic.
É com Sherbat Gula, pois, a mais famosa capa da famosa e prestigiada revista. Segundo afirma Star Kaur, no site Café com Chai: “A imagem de seu rosto, com um lenço vermelho enrolando sobre sua cabeça e com seus marcantes olhos verdes, olhando diretamente para a câmera, tornou-se um símbolo e tanto do conflito afegão de 1980 e a situação dos refugiados em todo o mundo. A imagem em si foi nomeada ‘a fotografia mais reconhecida’ na história da revista” (http://cafecomchai.blogspot.com.br/2013/03/sharbat-gula-foto-que-deu-volta-ao-mundo.html).
A fama do retrato, contudo, parece não ter acompanhado igualmente a fotografada. Após retornar, vivendo no anonimato ao redor das montanhas afegãs, quando reencontrada em 2002 pelo mesmo jornalista, recordava apenas ter sido fotografada, porém sem jamais ter visto o seu rosto estampado na revista e espalhado pelo mundo inteiro. Feita a devida identificação, uma nova fotografia foi tirada, com ela já aos 30 anos, repetindo a mesma posição, porém nada que revelasse a mesma beleza visual. Apenas uma moça triste, de olhar espantosamente entristecido.
Gula já estava casada, mãe de filhos. E logicamente esperançosa de poder criar os seus sem os sofrimentos do passado. Mas os tempos difíceis no seu país, com a continuidade das guerras, guerrilhas e perseguições às minorias, fizeram com que ela retornasse, mais uma vez na condição de refugiada, ao Paquistão. Dessa vez se deslocou trazendo os filhos. Mais uma vez imitava milhões de pessoas desesperançadas que fogem do medo para viverem a ilusão da salvação em refúgios pelo mundo afora.
Porém, ao tentar esconder seu passado em nome de uma nova vida, incorreu em falsificação de documento. Hoje com 46 anos, a menina de olhos verdes, apenas uma mulher de olhos tristes, foi presa por autoridades paquistanesas. O seu retrato será sempre aquele, mas seu futuro tão incerto quanto a de todos os desvalidos pelas guerras, perseguições e assombrosos refúgios. O retrato de Sherbat Gula hoje poderia novamente estampar a capa da National Geographic, mas com os seguintes dizeres: eis a feição de um povo que sofre pela eterna maldade humana!
Deveras lamentável o ocorrido não só com Gula, que foi transferida para uma prisão à espera de julgamento e certamente será expulsa do país, mas com todos aqueles que ainda convivem com a mesma situação de medo e fuga. Ao falsificar sua identidade, fazendo-se passar por cidadã paquistanesa, a mulher talvez tivesse tentado apenas viver com mais segurança e enfim poder afastar de si aquele eterno véu de temor que sempre encobre as feições dos apátridas, dos renegados da sorte.
Um temor que infelizmente ainda continua perseguindo milhões de pessoas. Os países conflagrados por conflitos acabam expulsando principalmente aqueles mais frágeis e envelhecidos. E estes, sem pátria, vão atravessando fronteiras, se lançando ao mar, procurando a todo custo um meio de sobreviver. E nem sempre sobrevivem. Todos os dias os jornais noticiam naufrágios no Mar Mediterrâneo e mortos como em cardumes. Todos os dias os jornais dizem das desumanas condições de vida dos que alcançam a terra firme para viver como refugiados.
Sherbat Gula queria apenas esquecer o passado. Porém mais uma vez será expulsa do seu refúgio. E novamente ser jogada na crueldade afegã. Novamente fugir pelas montanhas até que seus olhos verdes percam toda a cor.


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Lá no meu sertão...


Paisagem em Bonsucesso, povoação ribeirinha no município de Poço Redondo, sertão de Sergipe. Uma beleza sem igual!




Bolo de panela (Poesia)


Bolo de panela


Tudo tão simples
a mesma receita
o mesmo cuidado
o mesmo carinho
apenas com outro
modo de fazer

o abraço afetuoso
ao invés do forno
o doce da palavra
ao invés do açúcar
e ao sentir o sabor
descobrir que é amor.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - só faltava essa!


*Rangel Alves da Costa


Só faltava essa. Já desde alguns dias que venho observando um fato não só estranho como inexplicável. A verdade é que toda vez que passo em frente a uma loja de roupas femininas aqui pertinho, eis que percebo a roupa da manequim levantar. Manequim de plástico, obviamente. Como se soprada pelo vento, a saia levanta, mostra o que tem por baixo, e depois baixa. E manequim sem calcinha, sem nada. Toda vez é assim. Basta eu olhar naquela direção e ela levanta a saia. Mas hoje cedo resolvi desvendar o mistério. Com a certeza que era a ventania que fazia a roupa levantar, pedi a um amigo que passasse umas duas vezes defronte à loja e ali olhasse na direção da modelo sintética, observando se a saia levantava ou não. Ele passou não duas, mas três vezes, e nada de a saia levantar. Então resolvi não mais passar pela frente da loja. Um pouco mais tarde segui pelo outro lado da rua, mas de repente, ouvi um psiu vindo daquela direção. Olhei para saber quem era e avistei a manequim de saia estendida, e como se sorrisse com a cara mais safada do mundo.


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quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O QUE SOMOS EM NÓS MESMOS


*Rangel Alves da Costa


Somente o ser conhece a si mesmo. O outro imagina, supõe, dialoga com a aparência, mas somente o homem se conhece no todo e se reconhece nas suas partes, sentindo sua alegria, sua dor, seu contentamento ou seu sofrimento. Pode até fingir e mostrar ser outro, exteriorizar uma aparência que não condiz com sua realidade. Contudo, jamais consegue fugir do seu interior e daquilo que se faz carência ou abundância. Dentro de si é que mora toda a verdade, é onde está seu livro aberto e verdadeiro. Do outro lado da porta, apenas a moldura condizente com o momento ou a necessidade. Da porta adentro o retrato sem disfarces ou maquiagens. Que doa ou não, que faça sofrer ou não, é neste retrato que se encontra toda vez que sente desejo de se reencontrar.
Não raro que as armadilhas do mundo tentam ser mais fortes que a pessoa em si mesma. Como predadoras do ser, tais armadilhas forçam o desvirtuamento de desejos, de fazeres e até de comportamentos. Nas armadilhas também os modismos, as lições maléficas, as insistências para que deixe de ser a si mesma para se tornar apenas em mundo, para pactuar e compartilhar de realidades que nada condizem com os anseios da alma e as necessidades espirituais. Corre-se o risco de deixar de ter fé, de abster-se da prece e da oração, de negar o sagrado, de ajustar-se somente ao que é desajustado lá fora. Armadilhas que também desnorteiam o caráter, a moral, a ética, os bons e verdadeiros atributos humanos. E não é fácil fugir de tais armadilhas, eis que o mundo está cheio de garras e ilusões que tudo farão para levar ao precipício aquele que só deseja caminhar na superfície.
Ou se tem fé ou se deixa levar. Ou se tem abnegação própria ou se deixará conduzir. Ou se luta contra as garras e as ilusões mundanas ou se deixará mortificar. E só há um remédio para que a pessoa se mantenha em si mesma: a persistência. Nisto, o compromisso consigo mesma, a força de vontade para atender unicamente à sua vontade, a certeza que tem objetivos e caminhos e que nada conseguirá afastá-la de sua direção. A pessoa tem que querer continuar sendo a própria pessoa, sendo a si mesma. Certamente haverá luta ferrenha contra o mal e todos os tipos de tentações, mas nada consegue vencer a persistência do bem e a tenacidade do amor, da fé, do humanismo, do compromisso com a vida própria e a além. É uma questão de escolha entre a esperança e a perdição.
Por isso que necessitamos sempre de ter necessidade de nós mesmos. E só sente as carências aquele que busca compreender as ausências. Ainda que o mundo seja atraente, convidativo e tentador, nada deve ser mais importante que a pessoa em si mesma. Ora, o mundo tem seu próprio passo, a sua própria direção, e quem desejar simplesmente segui-lo deixará para trás a si mesmo. É preciso que a pessoa permaneça sempre perto e dentro de si. Que tudo adiante seja diferente. O que o ser humano não pode é ser igual ao estranho e diferente de si próprio. Mas como reconhecer-se nas suas necessidades e procurar seu caminho interior e, consequentemente, sua paz? Sendo como a voz e o silêncio das catedrais.
Em muitos instantes da vida, ainda que em meio a algazarras ou multidões, somos apenas o que somos em nós mesmos: os nossos silêncios e as nossas catedrais. Dentre de nós e povoando a nossa mente, tão somente o espaço preenchido pelo que desejamos. Precisamos de paz, precisamos de felicidade, precisamos de compreensão, precisamos de amor verdadeiro. É uma necessita da alma e que nos reclama. Precisamos pensar mais em nós mesmos, precisamos afastar os nossos abandonos interiores, precisamos nos revelar mais amigos e confidentes de nós mesmos. É uma necessidade espiritual e que tanto nos clama. E por que de repente nos sentimos assim, distante de tudo e tão próximo de nós mesmos, é que temos de respeitar nossos silêncios e caminhar em busca de nossas catedrais. Como é útil a reflexão, a meditação e a oração em momentos assim. Encontrarmo-nos neste silêncio, ajoelharmo-nos perante a luz. E sentir que Deus nos fará levantar como homem novo, aquele que ecoará na vida uma nova canção!


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Lá no meu sertão...


Assado e com gosto de sertão...




Face a face (Poesia)


Face a face


Assim face a face
tiro o meu disfarce
de fingir que não amo
e a tua boca eu chamo
para dizer o que sinto

já fingi e não minto
que já olhei outro mar
quis outra boca beijar
mas você esperou
e meu disfarce acabou

já não posso negar
sua doçura de amar
e não há o que revelar
senão o prazer em viver
e ter eternamente você.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - a crise migratória e a fuga pelo mar da morte


*Rangel Alves da Costa


O mar mediterrâneo se transformou no mar da morte. Pela sua situação geográfica banhando a península ibérica, a itálica e a balcânica, além de ser uma passagem para o oceano atlântico, suas águas se tornaram em desesperado caminho aos que fogem das guerras, dos genocídios e das tantas misérias que atualmente assolam países, tendo a Síria como realidade mais contundente. Desesperados perante as diversas formas de violências, milhares de pessoas se lançam às águas mediterrâneas sonhando aportar em países europeus. Contudo, conduzidos por contrabandistas humanos ou por conta própria, pessoas de todas as idades e famílias inteiras se jogam em barcos improvisados, geralmente com superlotação exagerada, e acabam morrendo nas águas pelos constantes naufrágios. Segundo as Nações Unidas, desde 2015 cerca de dois milhões de pessoas já tentaram fugir de seus países através do mediterrâneo. E somente este ano já morreram 3.740 pessoas pela estatística oficial. Certamente muito mais. E um número que tende cada vez mais a aumentar ante a relutância dos governantes em resolver os problemas e a busca de refúgio como última saída na luta pela sobrevivência. Mas é a morte o que quase sempre encontram.


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terça-feira, 25 de outubro de 2016

SE A MONTANHA CAI POR CIMA DO GRÃO DE AREIA


*Rangel Alves da Costa


E se de repente a montanha mais alta, mais larga e mais robusta, despenca de sua altura e cai por cima de um mísero grão de areia que por acaso repousava numa beira qualquer de estrada?
Logo vem uma clara imaginação: nada mais restará ao grão de areia. Mas será assim mesmo? Certamente que outra ideia não se faz senão a de que o grão de areia logo deixará de existir. Ora, o que é um mísero grão perante a maior das montanhas?
Supõe-se algo assim como uma formiga pisada por uma bota, como uma folha seca pisoteada pelo caminhante, como uma pequena poça d’água ante um largo pneu. Um quase nada sendo esmagado por uma imensidão que se desprende voraz.
E não é fácil pensar diferente. Se uma imensidão de pedra, rocha, granito, calcário, areia e outros minerais, desabam uniformemente sobre um grão ou qualquer outra coisa, não há mesmo que se imaginar qualquer sobrevida ao que foi vorazmente esmagado.
É a lei da destruição pelo peso, pelo impacto ou pelo esmagamento. Neste sentido, o impacto será tal sobre o grão de areia que este jamais sequer será avistado ou recordado. Apenas o que sobre ele caiu de forma destruidora.
Contudo, há uma revelação que tudo pode modificar: ao desabar e cair, também a montanha se descompacta, deixa de ser o todo para se tornar em partes. E partes que também se diluem em partes menores, até mesmo esfarelando.
Ora, se a montanha ao cair tende a se dividir no seu todo, certamente que o que cai sobre o grão logo se estilhaça. E ao se estilhaçar pelo impacto da queda, serão pedaços que ficarão por cima do grão. E tais pedaços também transformados em grãos de areia.
Considerando-se que grão de areia é uma partícula de rocha degradada, muito do que estará por cima após a queda igualmente já estará na condição de grão de areia. Então, será um amontoado de grãos por cima daquele tão pequenino grão.
Então, como se observa, aquele grão não se findou quando a montanha caiu sobre si. Pelo contrário, se misturou aos outros grãos de areia que se formaram após o estilhaçamento da montanha sobre o chão.
Contudo, necessário dizer que os novos grãos muito se diferenciam daquele preexistente no lugar. Ao serem abruptamente transformados, os novos grãos não passam de amontoados de areia, inermes, sem vida.
E diferentemente ocorre com o outro grão. Dentro dele uma minúscula partícula de vida que logo rebentaria. Daquele pequeno grão surgiria um broto, um caule, uma folha, um fruto. Prenhe na natureza, porém premido quando já ia brotar, guardou dentre si aquela vida.
Enquanto os outros grãos estavam acima de si apenas como grãos, aquele pequenino ainda respirava e suspirava. E mesmo no calor e na escuridão, mesmo sem qualquer força para se mover, sentiu quando a vida nova irrompeu para fora de si.
E uma árvore foi subindo, rompendo passagens, buscando caminhos, até que um dia, muito tempo depois, já podia ser avistada imponente em meio e muito acima daquele amontoado de terra, daquele monte de grãos.
Significa dizer que nem a montanha vence o grão. E não porque o amontoado caído por cima foi formando uma junção apenas de areia sobre areia. Não. Simplesmente por que o pequenino grão soube vencer a destruição pelo compromisso que guardava dentro de si.
Mesmo tendo por cima milhões ou bilhões de outros grãos, ainda assim esperou seu momento chegar. Certamente que não subiu acima dos outros grãos, mas sentiu seu fruto a tudo vencer.
Os outros grãos novamente em montanha se transformaram. Mas aquele pequenino grão de areia em raiz se transformou. E de dentro de si a árvore mais bela e imponente que já beijou as nuvens, que já chegou pertinho do céu.


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Lá no meu sertão...


O Velho Chico caminha pelos sertões e vai deixando no seu passo um misto de encantamento e amor infinito...






O sol ou a lua? (Poesia)


O sol ou a lua?


Há um sol
e uma lua
e eu não sei
qual escolher

o sol me aquece
a lua me ilumina
e eu não sei
qual escolher

se o sol esfriasse
e a lua esquentasse
então eu saberia
qual escolher

precisa de lua
secando a lágrima
assim como um sol
no meio da noite.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - nossos silêncios, nossas catedrais


*Rangel Alves da Costa


Em muitos instantes da vida, ainda que em meio a algazarras ou multidões, somos apenas o que somos em nós mesmos: os nossos silêncios e as nossas catedrais. Dentre de nós e povoando a nossa mente, tão somente o espaço preenchido pelo que desejamos. Precisamos de paz, precisamos de felicidade, precisamos de compreensão, precisamos de amor verdadeiro. É uma necessita da alma e que nos reclama. Precisamos pensar mais em nós mesmos, precisamos afastar os nossos abandonos interiores, precisamos nos revelar mais amigos e confidentes de nós mesmos. É uma necessidade espiritual e que tanto nos clama. E por que de repente nos sentimos assim, distante de tudo e tão próximo de nós mesmos, é que temos de respeitar nossos silêncios e caminhar em busca de nossas catedrais. Como é útil a reflexão, a meditação e a oração em momentos assim. Encontrarmo-nos neste silêncio, ajoelharmo-nos perante a luz. E sentir que Deus nos fará levantar como homem novo, aquele que ecoará na vida uma nova canção!


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segunda-feira, 24 de outubro de 2016

UM CEGO TROPEÇA NO VENTO E CAI


*Rangel Alves da Costa


Um menino tropeça no vento e voa. Mas um cego tropeça no vento e cai.
Como é bom caminhar, avistar o mundo, divisar os horizontes, ter diante do olhar o pôr do sol e a última revoada que passa. E ao avistar tamanha beleza, diz ao cego que está ao lado, que num instante se levanta tomado de emoção, então tropeça no vento que passa e cai.
A mulher estende a roupa e chama a ventania. Mas um cego tropeça no vento e cai.
Como é bom sentir o sopro do vento, seu avanço sobre o varal, as roupas esvoaçando e também as folhagens dos arredores. Quem o avista sabe se vai chover, sente como passa varrendo tudo ou apenas enxuga a roupa. E quando um pano se desprende do varal e é levado, e a mulher logo grita, o cego se levanta querendo ajudar, mas tropeça no vento e cai.
Ao entardecer sobre as calçadas, entre proseados e cadeiras espalhadas, pessoas celebram a brisa boa e vão comentando sobre as realidades ao redor, sobre as novidades que passam, sobre o céu nublado que vai se formando e a ventania que parece querer tomar o lugar da refrescante aragem. O cego quer se aproximar para ouvir mais de perto, porém tropeça no vento e cai.
Nem com a força de vendavais, aquela árvore centenária geme sua idade. Mas o cego tropeça no vento e cai. Só depois de muita força a janela é aberta pela ventania. Mas o cego tropeça no vento e cai. Um passa correndo, pulando por cima de tudo, enquanto outro parece até voar querendo ser o primeiro a chegar, e ninguém tropeça e cai. Mas o cego tropeça no vento e cai.
O pássaro voa solene, singelo, cortando horizontes e seguindo adiante. O avião faz seu risco no ar e vai sumindo entre as nuvens, longe, cada vez mais longe. A pipa sobe desajeitada, querendo seguir, querendo voltar, mas depois toma os espaços como a coisa mais bela, enquanto menino a domina com apenas dois dedos. Tudo assim com seu voo, seu passeio pelo ar, sua dança nas nuvens. Mas o cego tropeça no vento e cai.
O bêbado vai de calçada a outra, titubeia sem cair. Mas o cego tropeça no vento e cai.
As folhas secas e mortas vão seguindo pelo ar. Seguem o caminho, o impulso, a força do vento. Bem assim com a poeira que se desprende das coisas velhas e se junta ao pó que vai sendo soprado até se espalhar mundo afora. Tudo tem seu momento e sua lógica de acontecer. Nada estranho no graveto que vai sendo arremessado pela rua ou pelos restos que vão sendo soprados adiante. Mas nada normal quando um cego tropeça no vento e cai.
O ser humano precisa discernir sua estrada, precisa escolher o melhor caminho a seguir. É este poder de decisão que o torna capaz de ser dono do próprio destino. Mas qual estrada seguir, qual caminho escolher, qual poder de decisão naquele que nada avista adiante, e não por que deseje que seja assim. Quer também ter sua estrada, até tenta dar um passo sem medo, mas logo tropeça no vento e cai.
Mas não somente o que tem cegueira na visão que tropeça no vento e cai. Cego é também qualquer um que podendo avistar não deseja fazê-lo com os olhos da razão. O cego de visão conhece os seus limites, sabe que está propenso ao passo em falso, mas o cego de razão sabe que vai cair e ainda assim caminha ao precipício. Mas o vento que faz tropeçar e cair não é o mesmo para os dois. Há num a tentativa de acerto, enquanto no outro há tentativa de erro. Um cai pelo tropeço do vento, o outro nem precisa de qualquer sopro para cair.
É que o homem é frágil demais. Qualquer vento lhe surge como ameaça. Um cego tropeça na sua passagem e cai. Mas qualquer um que pretensiosamente se ache em segurança ou forte demais, de repente poderá ser transformado em frangalho que se desprende de varal. O cego tropeça no vento e cai, mas igual folha seca será aquele cuja visão perfeita não lhe permita enxergar o que está além de seu passo.


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Lá no meu sertão...


Em Curralinho, na beirada do rio, talvez as gerações presentes ainda ecoem os velhos cantos das antigas lavadeiras: Meu São Francisco adorado, meu Velho Chico amado, sou a sua lavadeira, dai um viver abençoado a essa pobre beiradeira...






Retrato com janela aberta (Poesia)


Retrato com janela aberta


Sou alguém que sempre chega
e encontra a janela sempre aberta
com aquele vaso de flores mortas
perante uma solitária cadeira
que ao desalento se embala
como testemunho de um tempo
que se repete em silêncio e solidão

e fico imaginando aquele olhar
que partiu deixando suas flores
e sua janela aberta ao entardecer
e tudo dolorosamente se repetindo
em meio ao silêncio e à solidão
com um salmo amarelado de tempo
e um lenço de uma lágrima antiga.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - tão geniais e tão drogados


*Rangel Alves da Costa


De repente me veio a ideia de que muita obra-prima existente no mundo é de autoria da droga, e não do artista da letra, da canção, da pintura, da literatura. Tudo nascido pelo que o delírio e o êxtase ditaram para ser feito. Com efeito, inegável que durante a ação mais contundente da droga, quando certamente a pessoa planava fora de si, como por encanto ou encantamento muita coisa foi produzida e mais tarde reconhecida como genialidade. Mas genialidade de quem, da droga ou do drogado? Imagine-se alguém totalmente domado pelo efeito do entorpecente, sem condições sequer de qualquer pensamento válido, tomar para si a pena, o pincel ou o teclado e fazer surgir a obra-prima. Quem será o autor da obra-prima, o entorpecente ou o entorpecido? Por isso mesmo que grande parte da genialidade roqueira, por exemplo, nada tem de autoria pessoal. Tudo produzido pelos fantasmas em instantes de abismos e absurdos.


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domingo, 23 de outubro de 2016

JARDIM DE PEDRA


*Rangel Alves da Costa


Talvez o Eclesiastes ainda não tenha se revelado em mim. Procuro acreditar que amanhã será outro dia, que a boa semente enfim vingará e que se cumprirá a sina de o sorriso aparecer depois da tristeza. O Eclesiastes se esqueceu de mim.
Como um dia li de um poeta qualquer, chega um tempo de ser um tempo tão revoltoso que já não serão mais ouvidos os trovões das tempestades nem o estilhaçar vidraças pelos raios que abruptamente caem aos pés. E nem o pingo grosso faz molhar o que já tão inundado.
Todos os dias eu procuro onde deixei meus sentimentos e não há jeito de encontrá-los. Quero ter de volta minha sensibilidade e não consigo mais senti-la dentro de mim. Mãos táteis que apenas tocam e não sentem. Um tanto faz assim de tanta dor. Dói ser assim.
Dói viver perante um jardim de pedra, adiante e dentro de mim. Como um arco-íris sem cor ou uma borboleta sem brilho, eis o matiz do olhar que nunca mais avistou nada além de brumas e cerrações. Tanto faz a lua, tanto faz o sol. A vida e seu inverso, tudo tanto faz.
Eu não queria nem ser assim nem estar assim. Tenho poemas inacabados, escritos ainda em sementes, talvez alguns sonhos que precisam despertar em realidade. Preciso lembrar-me de colocar açúcar no café e de acender a lamparina quando tudo é escuridão.
Jurei jamais sofrer por amor, comprometi-me a jamais lamentar perdas vãs, a não acenar ou entristecer por adeuses que não deveriam continuar. Mas acho que tudo de mim se foi com o que tanto prometi. Quando tudo partiu, então me restei assim perante o jardim de pedra.
Eu era tão diferente. Coisas simples, mas singelas, assim como o entardecer, o sol se pondo, a sonata, o noturno, tudo me fazia tão bem. Acendia um incenso e deitava no tapete flutuando na Barcarola de Offenbach, navegando pelo Danúbio todo azul com Strauss, sentindo conforto espiritual com aquele Jesus de Bach.
De repente foi como os espelhos sumissem de minha frente, as janelas e portas se fechassem, as estações deixassem de ter importância. Quanta importância eu dava à flor viçosa e à folha seca! Mas agora, tanto a flor como a folha se perderam no jardim de pedra.
Comecei a sentir-me assim quando deixei de caminhar ao redor do jardim, de sequer pensar em observar borboletas e colibris voejando sobre as flores. As folhas secas se acumulando infinitamente, o mato tomando os canteiros, meu velho banco quase sumindo pelos outonos.
Sim, ainda avisto adiante begônias, lírios, rosas, cravos, jasmins, girassóis, violetas e outras flores. É amanhecer, e ao sol nascente as flores parecem mais vívidas, mais perfumadas e coloridas. Mas apenas parecem. Mas como distinguir uma flor de outra flor, um perfume de outro perfume, se tudo está petrificado no jardim?
Tanto faz que as flores estejam assim tão vívidas, perfumadas e coloridas. Meus olhos apenas veem, apenas avistam, mas sem qualquer sentimental correspondência. Já não sou sensível a manhãs nem a jardins, já não avisto mais senão o ferro, a ferrugem, a pedra, o pó.
Eu bem poderia ter um muro no lugar da janela e ainda assim teria a mesma manhã. Eu bem poderia avistar túmulos no lugar das plantas floridas e ainda assim não enxergaria nem jazigos nem roseirais. Eu bem poderia ter a noite no lugar do alvorecer e ainda assim tudo seria a mesma visão.
O meu gato não está aqui. Também tanto faz. Talvez o meu cachorro esteja miando e o gato latindo. Não ouço nem vejo nem um nem outro. O que me rodeia o faz por mera insistência. Não sei se ando calçado ou descalço, se grito ou silencio. Penso que retratos antigos são folhas mortas e os lanço à ventania.
Sei que há um jardim além da minha janela. Sei que há um jardim bem depois da porta lateral. Também sei que há amendoeiras imensas e folhagens que caem dentre os muros, formando um tapete ocre-acinzentado. E também que há um velho banco tomado de folhas onde eu costumava sentar ao entardecer.
Sei por que minha memória desperta ao que faz doer. Somente na memória tudo isso ainda vive. Ainda assim tudo chega como punhal, como lâmina afiada, como ponta de espinho, como cálice de sutil veneno.
Não sei, não sei. Não envelheço para a insensatez. Eu queria ouvir uma notícia boa. Eu precisava ter a certeza de que alguma coisa boa acontece na vida. Algo que chegasse como um motivo, um suspiro, um alívio. Mas nada acontece além do jardim de pedra.


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