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sexta-feira, 21 de outubro de 2016

BARRACA DOS NEGROS


*Rangel Alves da Costa


Povos, grupos de pessoas, comunidades, e até civilizações, existiram sem o menor desejo que fossem conhecidos e aproximados pelo mundo exterior. Fechavam-se em si mesmas, distanciavam-se como podiam do contato de desconhecidos. E há notícias que algumas sociedades tribais ainda se mantêm evitando qualquer aproximação de forasteiros.
De vez em quando, o noticiário dá conta de tribos indígenas ainda preservadas na sua integralidade, ainda vivendo nos seus modos mais primitivamente enraizados. Desconhecem outras realidades e evitam ao máximo ser avistados e importunados por aqueles estranhos e sempre tidos como ameaças. O mesmo ocorre com outros povos ainda existentes na Índia, na região caribenha e polinésia, no mundo saariano, nas remotas regiões soviéticas e em muitos outros lugares onde seus moradores vivem, desde os tempos primeiros, em total isolamento. E por um querer próprio.
E assim ocorre por diversos fatores, envolvendo aspectos geográficos, históricos e sociais. Mas é na Antropologia que reside uma possível explicação: o isolamento como necessidade de sobrevivência. Ressalta-se sempre a necessidade de manutenção dos costumes, crenças, tradições e todo um modo de vida caracterizado como único em seu contexto. Na preservação de mundos tão próprios, tais povos tudo fazem para serem ignorados pelo restante do mundo, praticando até o canibalismo, como ocorre com algumas tribos ante a aproximação de forasteiros.
Contudo, outros motivos existem para que surjam os isolamentos. No Brasil, durante o período da escravidão enquanto prática social aberta e recorrente, muitos negros trazidos do além-mar africano e vendidos a senhores de engenhos e latifúndios, não suportando as crueldades e as sangrias na pele e na alma, simplesmente fugiam de seus cativeiros e senzalas e iam se esconder em locais de difícil acesso, evitando a fácil captura. E assim foram surgindo os quilombos, comunidades de escravos libertos por si mesmos, geralmente em regiões serranas e de mata fechada, com verdadeiras armadilhas da natureza ao seu redor, a exemplo do Quilombo de Palmares.
Mesmo com o fim da escravidão oficial, muitas dessas comunidades permaneceram como verdadeiros refúgios. Os quilombos continuaram existindo não mais como esconderijos, não mais como meio de proteção e defesa contra as cruéis e aterrorizantes investidas dos algozes brancos, mas sim como verdadeiras sociedades organizadas nos seus modos de viver, de produzir, de vencer os desafios da sobrevivência. Daí terem surgido inúmeras povoações nascidas escravas, negras, de passados tristes e humanamente abomináveis.
A Barraca dos Negros nasceu assim, surgiu em tal molde de memória de açoite e dor, a partir da assentada de negros fugidios, de escravos que um dia arribaram e ali chegaram para fincar o futuro de um povo. E um povo negro legítimo, de raiz, flor e fruto africanos, de pele tingida na cor e de desmedida tenacidade na luta. Primeiro o quilombo, depois a comunidade organizada em seus costumes e práticas sociais, e ainda hoje, tantos anos depois, o livro ainda aberto naquela página antiga.
Hoje é uma comunidade aberta, com mistura de outras raças à raça primeira, com miscigenação nascida dos matrimônios e filhos que nem sempre trazem no semblante a raiz escrava, mas permanecendo a mesma matriz local. Nos mais antigos, porém, ainda se avista o passado, ainda o espelho de um tempo que parece jamais esquecido. Por isso mesmo, olhos que continuam tristes, palavras que saem lentas, pensativas, como se o silêncio fosse a melhor expressão.
Um povo pobre, buscando na terra a sua sobrevivência, vivendo o seu dia a dia e evitando as influências negativas do mundo exterior. Sente que para muitos a escravidão ainda não acabou, que ainda é visto com submissão, preconceito e discriminação. Por isso mesmo a vida em meio a todos, mas um tanto distanciada de todos; o relacionamento amigável com todos os forasteiros, mas sempre desconfiando de suas reais intenções.
O fogão de chão ainda no quintal. A lenha mais adiante, no meio do mato. O pedaço de toucinho estendido no varal, a moringa d’água esfriando no umbral da janela do barraco de barro e cipó. Um menino corre de canto a outro, uma galinha cisca enquanto a velha negra coloca seu cachimbo no canto da boca. Em tudo uma sabedoria impregnada de crendice e misticismo. Não há adoração de deuses outros. De vez em quando um tambor ressoa em louvor ao passado. Assim uma vida.
Uma vida na Barraca dos Negros. A mesma vida de tantas e mais tantas barracas negras ainda existentes. Muitas ainda são encontradas pelos remotos caminhos e distâncias de um Brasil ainda negro. E negro, retinto e luzente, pelo orgulho arraigado num povo que tem na cor sua marca indelével de beleza e encorajamento à luta.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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