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sábado, 29 de outubro de 2016

A MORTE DA PROSTITUTA


*Rangel Alves da Costa


Morreu ainda na idade de cama, alguém afirmou com voz embargada e olhos lacrimejantes, ao saber do passamento da prostituta. Prostituta não, uma dama das quengas, diria outra, ante um gole de rum como despedida.
Toda a região do meretrício se espantou quando o anúncio da morte foi confirmado. Muitos diziam não acreditar que a mais famosa das putas de cabaré havia morrido. Gente chorava, gente gritava, de repente os desmaios, as dolorosas manifestações. Mas todos se perguntando: Morreu de que?
Morreu de morte matada, um logo respondeu. Não de tiro nem de faca, não de pedra jogada nem de punhalada, mas de uma morte matada diferente: morte matada por amor. Sim, a prostituta havia morrido de amor, mas de um amor tão sofrido que se podia considerar como a lâmina mais afiada.
Um amor tão secreto quanto não correspondido. Suas amigas tudo faziam para que ela derramasse de vez suas mágoas, revelando nome e sobrenome daquele que tanto lhe afligia o coração. Será o Coronel Licurguino, aquele do Engenho D’Água, perguntava uma. Ou será o deputado Climério Veremundo, aquele calhorda fisgador de corações, indagava outra.
Mas a verdade é que ninguém sabia. Ora, quem vai acreditar em amor verdadeiro numa mulher que por toda vida abriu as portas pra qualquer um? Verdade que já na robustez da idade se dava o direito de escolher seu macho, segundo o poder político, governamental ou coronelista que quisesse. Mas ninguém acreditava que pudesse se apaixonar.
Morreu com um copo de uísque derramado sobre o seu peito. Dançava sozinha um bolero antigo, inebriada de amor e solidão, sussurrando baixinho um nome tão desejado e tão cruel ao seu coração. Quando o batom vermelho roçou a borda do copo para mais um trago, um repuxo acompanhado de dor no peito fez com que caísse no meio da solidão do bordel, ao som do bolero:
“Siempre que te pregunto/ Que, cuando, como y donde/ Tu siempre me respondes/ Quizás, quizás, quizás/ Y así pasan los días/ Y yo hay desesperando/ Y tu, tu, tu contestando Quizás, quizás, quizás/ Estás perdiendo el tempo/ Pensando, pensando/ Por lo que más tú quieras/ Hasta cuando? Hasta cuando?...”.
Quizás, quizás, quizás, talvez, talvez, talvez... Eis a tortura a mortalmente afligir aquele coração sem mais tempo para esperar. O copo deitou-se sobre o seu peito, a boca vermelha sorria, os olhos brilhavam vívidos, tão bela ainda, tão bela... O corpo estirado sem vida e a vitrola repetindo: Quizás, quizás, quizás...
Quando Rosaflor - um amulezado zelador de bordel - entrou no salão para fazer limpeza, quase se defunteia também ao se deparar com a morta ao chão. Deu dois gritinhos finos, três pulinhos e procurou um lugar para desmaiar. Depois de passado o chilique, correu a gritar porta afora: Açucena morreu, Açucena morreu, Açucena morreu!
Após a notícia se espalhar, logo foi determinado luto fechado até o enterro da amiga. Quer dizer, daquele instante em diante nenhuma quenga abriria as pernas pra macho algum, em respeito àquela que tão bem havia representado a vida raparigueira. Não havia sido à toa que ela tinha levado ao bordel as classes mais influentes e endinheiradas da região.
O velório mais estranho que já existiu, mas foi assim com o de Açucena. O salão do bordel todo enfeitado de rosas vermelhas, as raparigas chorosas ao redor, todas de xales negros e lenços molhados. A defunta parecia sorrindo, contente com a homenagem das tantas amigas, desde quengas novas a quengas velhas.
Mas seu rosto pareceu entristecer e dos olhos surgirem como um filete de lágrima, assim que os clientes antigos e outros senhores começaram a chegar para o derradeiro adeus. Foi quando uma das mulheres segredou: No meio destes está o grande amor de Açucena. Mas qual será?
Impossível saber. Todos que dela se aproximavam com buquês se derramavam em lágrimas, diziam palavras apaixonadas, revelavam segredos até safados demais para o momento. Mas quando um se abeirou do caixão sem levar qualquer flor, apenas com sua mão para acariciar as mãos da defunta, então esta empalideceu a palidez mais pálida dos mortos.
Será este o doce amor e mortal veneno? Quizás, quizás, quizás...


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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