SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 31 de julho de 2012

PAU DE GALINHEIRO (Crônica)


                                              Rangel Alves da Costa*


Não sei por que impuseram uma fama tão ruim ao pau de galinheiro, qualificando-o como algo de mais abjeto, sujo e nojento que possa existir. Pura injustiça, pois no reino dos bichos há coisas muito mais desagradáveis do que o coitado do sustentáculo que se estende na casa das galinhas.
Sustentáculo este que também é conhecido como poleiro. Consiste numa vara que, no interior das gaiolas, viveiros ou galinheiros, serve para os pássaros ou as aves pousarem. No mesmo sentido, é o conjunto de varas dispostas horizontalmente à maneira de escada, geralmente dentro dos galinheiros, onde as aves domésticas pousam ou repousam.
Mas voltando à injustiça impingida, tem-se que a pocilga a céu aberto, por exemplo, é muito mais suja do que mil paus de galinheiro juntos. Além da lavagem – restos de comida que são despejados ali para o deleite da porcaria -, da lama putrefata e do cheiro insuportável dos próprios porcos, há ainda a agravante das doenças disseminadas por outros bichos que por ali passam para uma lambida ou uma bicada.
Não significa, contudo, que o porco seja um animal sujo e que só se alimenta de restos estragados e malcheirosos. Pelo contrário, passaria muito bem e engordaria do mesmo jeito se tivesse por dieta uma comida mais saudável e fosse criado num ambiente menos devastador. Ainda assim é a melhor carne que possa existir, a mais apetitosa e mais apreciada.
E injustiça também porque aos porcos é imputada uma fama que mais caberia às galinhas. Quem suja a pocilga é o próprio homem, o dono ou criador, que vai jogando ali casca de melancia, abóbora estrada, banana podre, além logicamente de baldes e mais baldes de restos nojentos e pegajosos de comida.
O mesmo não ocorre no galinheiro, que é sujo por natureza, imundo desde a entrada, e por lá não tem a ação do homem do mesmo jeito que ocorre na pocilga. O que se faz no galinheiro é jogar milho, colocar água e pronto. Toda sujeira é feita única e exclusivamente pelos seus habitantes, que são as galinhas, galos e pintos.
Contudo, mais sujos do que porcos e galinhas somente determinadas pessoas. Superando em muito até as hienas e urubus, bichos famintos por carne morta, apodrecida, cheia de vermes. Pessoas que possuem nome e sobrenome, andam como gente, falam e agem como tal, mas para por aí, pois são sebosas até dizer chega.
E não somente porque fogem do banho, não possuem asseio pessoal nenhum, lambuzam comidas, são inimigas de qualquer tipo de limpeza, mas também intimamente, no caráter encardido, na imoral impura, na honra enlameada. São estas mesmas que se arvoram do direito de sempre enxergar defeito nos outros.
Pau de galinheiro perde feio de gente assim. Aliás, muito há que se dizer para comprovar que o pau de galinheiro tem muito mais fama ruim do que merece ter. É um pau comum, uma madeira estendida dentro do galinheiro e onde as aves sobem para repousar, para dormir. Dormem em cima do pau, mantendo-se equilibradas pelos pés enrugados que possuem e que se dobram em torno da madeira.
Esse pau jamais poderia ser limpo, vez que dentro do galinheiro e tendo constantemente pés sujos de aves por cima. Mas sujeira normal, nos mesmos moldes das galinhas. Se há sujeira, imundície e mau cheiro, certamente que estará mais abaixo, no chão onde as aves defecam e onde se espalham os restos de comida ali colocados.
E mais uma vez a culpa não é nem das aves, que vivem, se alimentam e sujam tudo o redor na normalidade dos criatórios. E sim dos donos dos galinheiros que se preocupam apenas em jogar comida ali dentro, engordar suas aves e toda manhã passar por lá com uma cestinha para recolher os ovos das poedeiras.
Apenas fazem isto e vão deixando ao abandono, acumulando imundície e tudo o mais. E quando o mau cheiro começa a seguir o vento nem pensam em culpar nem as galinhas nem o seu dono, mas o coitado do pau do galinheiro que pouco tem a ver com a situação.
Por isso mesmo que sujo não é o pau do galinheiro, mas muito mais o dono das galinhas. Este deveria ser trancado e mantido no galinheiro, em cima do poleiro, só saindo de lá quando desaprendesse a cacarejar.


Poeta e cronista
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Escolha (Poesia)



Escolha


Como seda
pétala
véu
fio
macio
algodão

ou como
espinho
ponta
pedra
agulha
cortante

ou como
o querer
o desejo
o amor
a paixão
a união

ou como
você quiser
sentir
a vida
e amar
o amor
feito flor
de espinho
ou feito cacto
de ternura
e suavidade

ou como
o amor
lhe pareça
ser ou não ser
sendo o que é
quando não é
porque amor
é um amar
que se ama
não como é
mas como
se quer.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (97)


                                                 Rangel Alves da Costa*


Passou a noite de sono tranquilo, fechado. Acordou na madrugada do galo imaginário. Que canto bonito, altivo, empolgante. Após se ajoelhar aos pés do oratório para a primeira prece do dia, abriu a porta e a janela, deixou que a luminosidade invadisse moradia e vida.
Estava consciente de tudo que acontecia ao redor, do barulho da mataria, dos sons dos bichos, do sopro já morno do vento, da mesma vida de sempre. Sim, era a mesma vida de sempre, de tanto silêncio e tanta solidão, porém agora a ser vivenciada de uma outra maneira.
Durante a prece prometeu a si mesma que não se deixaria levar pelos hálitos da tristeza e do sofrimento. Era sadia, não tinha qualquer deficiência física, sabia falar, andar, ler vagarosamente, cuidar de casa e de si mesma, possuidora, portanto, de uma vida normal. Daí não haver razão para cavar tristeza na terra e querer nela deitar.
Ademais, tinha de compreender e aceitar outras realidades ali existentes, e tudo fruto do meio desolado em que vivia, da distância de tudo, do afastamento forçado de outras pessoas. Não tinha amigos nem pessoas para conversar por causa disso, pelo isolamento do lugar onde vivia.
E ainda por consequência desse isolamento, não encontrava um moço bonito para olhar no olho, um galanteio de uma boca apaixonada, um homem para pensar e viver as alegrias e desilusões amorosas próprias de qualquer um. E também por isso não recebia um buquê de flores do campo, não era presenteada com uma fruta do mato, não recebia uma lembrancinha carinhosamente talhada na madeira.
Mas o que se mostrava como fundamental nessa promessa de novo pensar e agir era a consciência plena dessa realidade. Tendo a exata noção do contexto onde vivia e porque tudo acontecia daquele jeito, então tudo seria mais fácil de ser superado. E o passo seguinte seria buscar sair dessa realidade fechada, de mesmice, de nada acontecer, do mesmo amanhecer com o mesmo anoitecer.
Somente assim seria possível se motivar para conhecer outros lugares, outras pessoas, outros modos de ser e viver; somente assim seria possível de vez em quando ir à cidade fazer suas compras, abrir a cancela para a viagem, para o conhecimento, para novas experiências. Não precisava vender a pequena propriedade de herança e tentar a vida noutro lugar. Não. Continuando ali seria também do mundo, de outros mundos.
Pensar assim já era caminho aberto. Agir assim já era caminhar pelo caminho aberto. Seguir adiante seria outra coisa, outra história, coisa para o futuro retratar. E talvez porque tão disposta para uma nova realidade é que agiu diferente naquela manhã. Resolveu que mandaria urgentemente consertar o velho carro de boi, daria um jeito pra arranjar um garrote bom para colocar adiante do transporte.
Não demorou muito, procurou uma enxada e começou a arrancar os matos que cresciam ao redor da casa; subiu numa escada para ver onde as telhas estavam quebrando; passou o olho cuidadosamente em cada buraco que se abria na parede; juntou garranchos, folhas secas e restos do mato morto em coivara para tocar fogo mais tarde; se dirigiu calmamente até sua plantinha de pé de parede, alisou o tronco, sorrio, conversou com ela.
Em todo esse processo de mexer numa coisa e noutra ali fora, varrendo, limpando, passando a enxada, certamente que logo chegaria ao local onde a pedrinha continuava escondida somente esperando a sua dona. A visitante querubim sabia que ela a encontraria, o seu irmão e o amiguinho mortos queriam demais que ela se apoderasse logo daquele amuleto. Ora, na pedrinha estaria uma indescritível surpresa. Mas ainda não foi nesse dia que Crisosta lançou a mão sobre o objeto tão precioso.
Passaram-se um, cinco, mais de dez anos assim, com ela realmente modificada, cheia de planos, levando uma vida normal e se afastando o quanto podia de tristes, angústias e sofrimentos. Mas não consertou o carro de boi, não comprou o garrote, deixou a casa continuar com os buracos aumentando e as telhas deteriorando ainda mais. A sua planta de vez em quando murchava rejuvenescia.
E por mais que quisesse manter um aspecto feliz, jovial, com vigor físico, ela não conseguia mais. Sua pele clara e sempre exposta ao sol começava a mostrar pequenas rugas. A mocinha já estava distante, a moça agora já era madura, já era mulher cuja idade corria cada vez mais apressada.
Tinha medo do tempo, do tempo passando, o tempo correndo, fugindo e ela ficando. E fugia do espelho, não queria nem mais ver um espelho em sua frente. Um dia teve coragem e se olhou. E perguntou onde ela estava, e perguntou por onde andava aquela Crisosta. E chorou.
Continua...


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segunda-feira, 30 de julho de 2012

UMA ESTÓRIA DO SERTÃO (Crônica)

                              
                                                 Rangel Alves da Costa*


Nos tempos mais antigos, idos em que o sertão era marcado pela força coronelista, pela arrogância jaguncista e pela submissão do autêntico e empobrecido sertanejo – sem esquecer, porém, da lutas cangaceiras que se travavam noutras veredas -, teve lugar um acontecimento que até hoje é relembrado debaixo dos pés de pau, em tardes de proseado.
E diz que certa feita o homem mais poderoso da região, o Coronel Querilânio Bonome, senhor de um mundão de terras que não acabava mais, fora bichos de monte e jagunços de rodo, deu uma cusparada na varanda do casarão e depois chamou um cabra para ordenar que fosse chamar o jagunço Tervino. E que o pistoleiro estivesse ali antes que aquele cuspe secasse. E apontou.
Em menos de dois minutos o mais famoso dos jagunços estava na presença de seu patrão, fazendo reverência com o chapéu e dizendo que estava à ordem pro que desse e viesse. Antes de falar sobre o que realmente queria, o Coronel Bonome olhou para o local da cusparada e depois levantou o olho pra perguntar onde estava aquele que havia ido lhe dar o recado.
Sem saber nada do que se tratava, Tervino disse apenas que talvez ele tivesse ido tomar algum chá de planta medicinal, pois sem um pingo de sangue como estava e tremendo feito vara verde, só podia estar doente. E o coronel nem pensou duas vezes pra dizer:
“Quando vosmicê pisou aqui na varanda uma cusparada que dei havia acabado de secar. Gosto de castigar a quem não cumpre minhas ordens dentro do tempo acertado. E vosmicê chegou quando o cuspe já havia secado. Entonce o jeito que tem é mandar dar um jeito naquele cabra, e de um jeito que ele num cuspa nunca mais nessa vida. Entendeu o que quero dizer? Vosmicê tá encarregado de mandar outro cabra fazer o serviço, pois tenho outra missão que vai lhe ser mais fácil do que imagina...”.
O jagunço era homem perigoso demais, pau pra toda obra segundo o desejo do seu patrão, e por isso mesmo já havia tocaiado e derrubado mais de vinte, desde inimigo comum do coronel até desafetos poderosíssimos, da mesma patente coronelista sertaneja. Contudo, mesmo trazendo consigo essa sina de matador, fazia tudo pra não puxar o gatilho se antes de fazer a derrubada conhecesse um motivo injusto para uma morte tão medonha e covarde.
Por isso mesmo já tinha no pensamento que ia mandar o coitado marcado pra morrer pra bem longe dali, e depois dizia que o homem já tinha ido pro beleléu do mal repentinamente acometido. Mas isso ficaria pra depois, pois em seguida perguntou ao coronel o que pretendia que ele fizesse daquela vez. Coisa boa não seria, disso tinha certeza. E se pôs a ouvir a ordem da cobra velha, jaracuçu da pior espécie. E lhe chegaram as palavras:
“Vosmicê sabe muito bem que nunca fui homem de aguentar nem desaforo nem desfeita de ninguém, seja padre ou governador. E sabe também que quem atravessa o meu caminho tem de sair por bem ou por mal. Imagina vosmicê que já faz mais de vinte anos que não faço inimizade, não arrumo confusão nem mando derrubar ninguém por causa de terra. O último a se lascar foi o besta do Coronel Elesbão. E agora me surge uma coisa sem pé nem cabeça, coisa só pra tomar espaço no meu tempo. Não é coisa do outro mundo, é verdade o que vou dizer. Conhece João do Burro, aquele mesmo que tem uma filepinha de terra lá vizinha da minha Fazenda Taquara? Sei que conhece. Pois bem. Preciso ajuntar a nesga de terra dele com a minha e o cabra se nega a vender pelo preço que eu mandei oferecer. E diz que só aceita por dez vezes mais. O cabra safado deve ter enlouquecido. Como ele tem uma filha muito bonita, morena cheirosa, ainda cheia das purezas da mulher, então num queria que a bichinha ficasse sem pai. Mandei oferecer o dobro do oferecido e o safado mangou da cara do mensageiro. Então agora cabe a vosmicê, Tervino, cuidar do negócio. Mas agora não vou oferecer nada não. Tocaie o bicho, faça uma emboscada bem feita, e acerte bem na testa do bode velho. Quando o corpo for encontrado e a família empobrecida estiver chorosa, na precisão, apareça por lá e bote esse dinheiro aqui na mão da mocinha e diga quem lhe mandou como auxílio de entristecimento. E num esqueça de dizer a flor sertaneja quem tem muito mais desse aqui pra ela, bastando que ela queira...”.
O coronel falava numa tranquilidade de sacristão. Acendeu o cachimbo de fumo importado, entregou o maço de dinheiro na mão do jagunço e antes que este saísse ainda avisou: “Amanhã já quero esse trabalho feito. Já tô sentindo o cheiro da flor mimosa. Agora anda, vai, vai. E não esqueça de mandar matar também o outro que deixou o cuspe secar...”.
Antes de sair, Tervino prometeu que tudo seria feito segundo o determinado pelo patrão. Mas botou o pé do lado de fora da varanda meio acabrunhado com essa situação. Havia percebido que lhe havia sido repassada a responsabilidade por mais uma morte desnecessária, injusta, desumana, sem cabimento algum. Já estava na hora de o coronel saber que as coisas não eram mais assim como ele queria não, tudo na bala, no sangue, na morte, na covardia da emboscada. E geralmente de gente pobre e inocente.
Decidiu que não cumpriria a ordem recebida de jeito nenhum, até mesmo porque andava de olho caído por aquela mocinha que agora o coronel queria se intrometer. Se corresse até lá para contar sobre a encomenda da morte talvez a família ficasse agradecida e o recebesse para um café de vez em quando. Então seria a porta aberta para adentrar naquele coração agrestino. Mas antes de ir até lá resolveu fazer outra coisa não menos importante. E seria o fim daquela história toda de perseguição, tocaiagem, encomenda de cabeça de gente.
Correu até o rapazinho que também já estava marcado pra morrer, aquele mesmo do cuspe, contou-lhe a situação e fez uma surpreendente proposta. E era aceitar ou perder a vida. E disse ao quase morto que daria aquele pacotinho de dinheiro que o coronel havia mandado entregar a outra pessoa se ele fosse até a varanda do casarão e acertasse em cheio o cabrunquento do velho coronel. E entregou sua própria arma carregada e o dinheiro.
Cinco minutos depois ouviu o disparo. Correu até lá para contar tudo aos outros jagunços e acalmar a situação, afinal de contas já havia até passado o tempo de algum cabra valente prestar contas com o safado do velho mandante de pistolagem. Mas assim que chegou defronte ao casarão parou surpreendido.
De lá de dentro, tranquilamente e de arma na mão, saiu João do Burro, aquele mesmo pai da mocinha e que o coronel já havia encomendado sua morte. Sabendo que morreria a qualquer momento, se antecipou e reverteu a situação. O jagunço mandou que ele seguisse sem medo, que fosse embora cuidar da família. E depois entrou na varanda e deu uma cusparada por cima do coronel estrebuchado no chão.


Poeta e cronista
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Cor de lua (Poesia)



Cor de lua


Noite
de cor assim
amarelo lua
brisa dourada
raio de prata
tanta saudade
saudade mata
quero viver

luz
brilho no olhar
cor de lembrança
tanta esperança
dor mais ingrata
tanto desejo
desejo mata
quero viver

agora
na cor de lua
verdade nua
um grito aflito
voz que desata
nessa distância
distância mata
quero viver

venha
estou aqui
a noite vai
corre no sonho
e só quero ter
tua presença
beijar ainda
preciso viver.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (96)

                                         
                                                  Rangel Alves da Costa*


Que fato inusitado, impossível de acontecer, mistério que um dia haveria de ser desvendado, mas a verdade é que Crisosta, estando do lado de fora da casa, avistou a si mesma, a mesma Crisosta, do lado de dentro, ali sentada na cadeira e voltada para a janela.
Virada para a janela na mesma posição que a outra ficava, do mesmo jeito, com a mesma face, a mesma feição, os olhos distantes, um aspecto terrível de sofrimento e dor. Olhava para fora, avistava a outra, fixava o olhar sem luz, e assim continuava mesmo após a verdadeira Crisosta soltar o grito: Meu Deus!
Esta, a que continuava do lado do fora sem ter forças nas pernas para seguir adiante, começou a demonstrar seu espanto:
“Meu Deus, meu Deus, o que será que está acontecendo? Isso não pode ser verdade. Eu estou aqui, sou uma só e não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo. Quem é aquela outra ali sentada então, que é aquela que me olha desse jeito querendo chorar, com cara de sofrimento, parecendo mais uma alma do outro mundo. Será que morri, será que ali é meu fantasma, meu espírito, uma coisa do outro mundo? Mas não morri, não chegou ainda o meu dia, por mais que me dissessem que até já havia sido encaminhada. Mas eu não morri, não morri, continuo viva e aqui, sendo a única, sendo uma só. Então quem é você, fale, saia daí, diga alguma coisa, tenha coragem de mostrar quem realmente você é...”.
Calou um instante e encontrou coragem para se aproximar um pouco mais da janela. No passo que deu, próxima que estava, apenas confirmou ainda mais que não era outra senão ela mesma. E perguntou: Como é o seu nome, como foi parar aí, de onde veio, o quer aqui? De silêncio cerrado, apenas olhava no olho, e de forma profundamente no olhar da verdadeira Crisosta. Ou será que a verdadeira era a outra?
Os mesmos cabelos, a mesma roupa, tudo que se podia ser avistado em uma do mesmo modo se tinha na outra. Menos o desespero de uma e o silêncio meditativo da outra, a feição aflitiva de uma e apenas o semblante entristecido da outra, as tantas indagações de uma e as mudas respostas da outra. E de repente a que se achava verdadeira percebeu algo mais intrigante: a outra abandonou o aspecto triste e esboçou um sorriso.
Nesse momento, a que estava do lado de fora pensou em pular a janela naquele mesmo instante para tirar a limpo aquela história toda. Mas resolveu correr até a porta de entrada e se atirou veloz para o lado de dentro. Parou no instante que se dirigia até o local da cadeira porque não avistou mais ninguém sentado nela. Apenas o balanço, o sinal de que quem estava ali havia saído naquele mesmo momento.
Mas não pode ser. Agora mesmo havia outra pessoa parecida comigo sentada aí e agora encontro o canto mais limpo. Será que estão querendo me testar ou me enlouquecer de vez, será que estão brincando comigo, querendo me fazer medo, tentado que eu desabe de vez e me perca de novo num mundo de sofrimento e dor? Será, será, será, será? Perguntava a si mesma a agora lacrimejante Crisosta.
E de repente lhe surgiu a ideia de que quem estava ali bem poderia ter pulado a janela enquanto ela entrava em casa ou mesmo ter corrido para um dos quartos, a cozinha ou até mesmo o quintal. Então olhou da janela, entrou nos quartos, vasculhou embaixo das camas, procurou pelos cantos, pela cozinha e no quintal, mas nenhum sinal de qualquer presença.
Passou o restante do dia pensando no acontecido, imaginando tudo aquilo que repentinamente havia acontecido. E sua mente não parava um só instante, buscava compreender melhor um monte de fatos e acontecimentos capazes de testar dolorosamente a sanidade de qualquer um.
E nesse passo lembrou a visita da que se apresentou como querubim, as palavras ditas, a misteriosa limpeza da casa, o pão surgido na mesa, a Bíblia aberta naquelas palavras do Levítico, as suas promessas e o surgimento daquela outra pessoa com a sua mesma feição, a cadeira apenas balançando e o seu sumiço.
Antes de fechar a porta para deitar na rede ali mesmo na sala, decidiu fazer uma coisa que poderia ser o significado maior de sua mudança. Eis que foi até o local onde ficava a cadeira e retirou-a de lá, levando-a para um dos cantos do quarto da mãe. Não sentando na cadeira diante da janela não trazia ao pensamento coisas tão ruins, sofridas e dolorosas.
Ao menos assim pensava.
Continua...    
   
 
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domingo, 29 de julho de 2012

O ESTADO E O JUDICIÁRIO CONTRA O MENOR (Artigo)


                                         Rangel Alves da Costa*


O menor aqui abordado não é a pessoa diminuída diante do poderoso nem qualquer coisa que diga respeito à inferioridade econômica e social, mas o menor criança mesmo, o menor adolescente, aquela pessoa que ainda está em formação física e desenvolvimento intelectual e que, diante de tais condições, necessita de um amparo estatal privilegiado.
Sob o aspecto legislativo, teórico e doutrinário, o menor, ao lado do idoso, é possuidor de uma série de privilégios e prerrogativas, bem como de legislações protetivas específicas que deixam induvidosos um manto jurídico de segurança perante os malefícios da sociedade.
Neste sentido duas leis específicas. A primeira é o denominado Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei nº 8.069/90), que cuida dos mecanismos garantidores da proteção integral à criança e ao adolescente. Define a criança como a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.
De especial interesse merece citação o disposto nos caputs dos artigos 3º, 4º e 5º, do ECA:
“Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade”.
“Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.
“Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.
Por sua vez, a Constituição Federal de 1988 chama para si uma imensa responsabilidade sobre o menor, apontando políticas e mecanismos de ampla proteção. Adotando a Doutrina da Proteção Integral, não vê o menor apenas como sujeito de direitos, mas sim como ser em especial condição de desenvolvimento, portanto merecedora da proteção integral do Estado, da família e de todo contexto social.
Neste sentido, preceitua o art. 227 que “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
Por sua vez, o § 3º do mesmo artigo afirma que: “O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: I - idade mínima de quatorze anos para admissão ao trabalho, observado o disposto no Art. 7º, XXXIII; II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; III - garantia de acesso do trabalhador adolescente à escola; III - garantia de acesso do trabalhador adolescente e jovem à escola; IV - garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica; V - obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa da liberdade; VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado; VII - programas de prevenção e atendimento especializado à criança, ao adolescente e ao jovem dependente de entorpecentes e drogas afins.
Pois bem. Sob o aspecto legislativo, toda criança, de qualquer condição, precisa receber proteção integral do Estado. Contudo, o que se observa é que na prática muitos desses preceitos legais tomam caminhos totalmente diferentes, até conflitantes, e que muitas vezes afetam vergonhosamente a vida do menor. E o que é pior: o próprio Estado atropela seus estatutos e age para que leis sejam criadas retirando direitos do menor.
Parece absurdo, mas não é, e sim a mais clara realidade. Por iniciativa da Presidência da República, através da Medida Provisória n.º 1.596-14/97, posteriormente convertida na Lei n.º 9.528/97, o menor sob guarda simplesmente perdeu sua condição de dependente para fins previdenciários. Segundo a lei, com o aval do judiciário, o menor sob guarda não pode ser equiparado a filho. E não sendo filho não é dependente. O fim dos tempos e do respeito à dignidade humana!
Quer dizer, foi o próprio governo que retirou um direito previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente no § 3º do art. 33: “A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários”. E tal disposição legal ainda está em vigência, menos com relação ao direito previdenciário do menor sob guarda. Manejaram a lei, recortando-a acintosa e vergonhosamente.
Foi o próprio governo, depois repassando ao judiciário o seu desejo na aplicação da lei, que fez quebrar o tal manto da proteção integral. Eis que com o advento da Lei 9.528/97, o menor sob guarda deixou de constar expressamente no rol do art. 16 da Lei 8.213/91 como dependente do segurado. Quer dizer, cabe agora ao Poder Judiciário dizer que o instituto da guarda não vale nada, não tem proveito algum no mundo jurídico e que o menor nesta condição está totalmente desprotegido.
Nos julgamentos envolvendo inscrição ou reconhecimento do menor sob guarda para fins previdenciários logo se pacificou a jurisprudência no sentido de desqualificar a guarda, desrespeitá-la, afrontá-la diante das situações da vida, gerando um imenso e profundo descontentamento social. Ora, para o Poder Judiciário filho só o natural, reconhecido ou sob tutela. O guardiado é um reles, um ser abjeto que não precisa de proteção previdenciária alguma.
Surge, então, uma indagação: Aquele menor que está sob a guarda de alguém não é seu dependente? Certamente o mundo inteiro diria que sim, menos o Poder Judiciário que não o reconhece mais como nada. E o mesmo judiciário que irá mandar prender o guardião acaso chegue ao seu conhecimento que o menor está sendo maltratado. Quer dizer, serve para castigar e não serve para proteger. Dois pesos e duas medidas desprezíveis em se tratando desse poder que deveria realmente objetivar a Justiça.
O Judiciário vê e não quer enxergar, sente a mazela que faz e não quer reconhecer, conhece as consequências dos seus abomináveis atos e simplesmente relega à sorte dos desafortunados. Será que o julgador conhece a realidade familiar de um menor que está sob guarda, amparo e cuidado de uma família? Não, e mil vezes não.
Ridicularizaram com a conceituação da guarda, menosprezaram o menor e passaram a ver o guardião quase como um infrator. Contudo, não é uma lei – inconstitucional em sua plenitude - que vá “desconceituar” o menor guardiado na mesma condição de filho. Com a guarda, cabe ao guardião ter o menor na mesma condição de filho. E assim deve ser considerado.
Ao não equipará-lo a filho, mesmo que em outra condição, pretende-se ver o guardiado sem qualquer conceituação ou natureza jurídica perante o direito familiar. Não sendo filho nem equiparado, então seria o mísero abandonado que recebeu acolhimento, o objeto de carne e osso que está sob amparo e proteção. Verdade é que em nome de uma economia previdenciária estatal, desconstitui-se completamente a importância do menor sob guarda para colocá-lo no lugar dos malditos, dos renegados, dos entraves sociais.
As altas cortes, as jurisprudências e as decisões judiciais, atendendo às exigências do lado economicamente muito mais forte, que é o Estado, acabam ferindo de vez a dignidade humana do menor sob guarda. Criaram uma nova situação jurídica para o mesmo: um ser sem direito! É elementar: Se com a guarda, transfere-se também ao guardião a responsabilidade pela criação, educação e assistência ao menor, tais aspectos não seriam possíveis se o guardiado não fosse caracterizado como filho e tido como tal.
Os doutos julgadores dos tribunais, subordinados que são ao poder maior – vez que suas verbas e vultosos salários são provenientes desta fonte profunda -, sabem perfeitamente que a exclusão do menor sob guarda na qualidade de dependente é inconstitucional, fere o princípio da isonomia, causa extrema insegurança nas relações familiares, mas ainda assim julgam contrário ao direito e à justiça para satisfazer as economias estatais. Ou seja, não reconhecendo o menor como dependente estarão economizando em nome do Estado.
Que coisa mais insidiosa, mais nojenta, mais deplorável em se tratando do Poder Judiciário. E não menos miserável esse Estado fajuto que rasga seus estatutos para retirar direitos do menor garantidos por lei. Verdade é que muito mais economia faria se não fosse corrompido e não corrompesse, se não sustentasse com salários aberrantes verdadeiros vermes da máquina pública, se não gastasse tanto para transformar o poder num partido político.


Poeta e cronista
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A chuva (Poesia)



A chuva


Ontem nublado
hoje molhado
sempre aguado
chuva caindo
derramando aqui
quase tarde
sempre noite
e uma nuvem
dentro de mim
que nem o sol
o calor da rua
nada me fez
menos água
menos lágrima
menos saudade
lá fora a luz
o passo e a vida
mas essa chuva
caindo em mim

molhei o retrato
bebi seu sorriso
nadei no olhar
quis até viajar
mas não pude
sem a chuva passar
preciso de abrigo
preciso de ti
ainda faz sol
ainda é dia
e esse temporal
o vento cortante
tudo em mim
pela falta tua
mostre a esperança
diga o que é amar
cesse a tempestade
faça a chuva passar.


Rangel Alves da Costa

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (95)


                                             Rangel Alves da Costa*


Deslumbrada com o que leu, deixou o livro sagrado aberto no mesmo Levítico. A mensagem havia sido tão clara que não poderia ter deixado de entendê-la, porém precisava refletir mais calmamente sobre a mesma.
O que fez em seguida foi algo completamente inesperado: pegou o pão e foi comendo pedacinho a pedacinho. Estava com uma fome danada, fome antiga, já de alguns dias. No estado que estava, bebia das lágrimas e se alimentava da certeza que não comeria nunca mais. Verdade é que não tinha fome nem sede.
Contudo, avidamente se deliciou com o pão macio encontrado, cheiroso, gostoso, parecendo ter sido feito ainda naquela manhã. Ainda com os cantos da boca esfarelados do alimento, foi em direção à moringa e derramou num copo uma água tão fresquinha que parecia de geladeira. Que água mais doce, mais saborosa, verdadeiramente reconfortante.
Somente após respirar bem fundo começou a pensar numa coisinha simples, um quase nada, mas que agora intrigava. E disse a si mesma: Mas eu não comprei pão, não saí daqui, não tinha nenhum pedaço guardado, muito menos inteiro e fresquinho como aquele estava, então o pão também foi colocado ali por quem arrumou a casa bonita e limpinha desse jeito.
E continua dialogando intimamente: Desse modo, o pão era pão e não era, tinha jeito de pão, sabor e gosto de pão, mas não era. Será então que ele tem algo a ver com aquela frase ali da Bíblia, que por sinal está até marcada de forma diferenciada?
E correu para o livro sagrado e leu novamente a frase: “A debulha do trigo prolongar-se-á até a vindima, e a vindima até a sementeira; comereis o vosso pão à saciedade, e habitareis em segurança na vossa terra”.
Leu novamente e releu, repetiu e repetiu outras vezes, e em seguida sentenciou para si mesma e dessa vez em voz alta:
Meu Senhor, que este pão que me enviaste para matar muito mais minha fome espiritual do que corporal, seja o alimento que tanto preciso para me fortalecer diante das dificuldades da vida. Forte, renovada, renascida, então serei uma mulher apta a seguir todas aquelas palavras divinas que li na Bíblia. Mas só peço, meu Senhor, que me conceda um tempo para ir refazendo a minha vida, pois de tantas pedras espalhadas pelo caminho, jogadas ao léu e ao desvão do sofrimento, não será fácil recolhê-las para a construção da fortaleza que serei e onde meu espírito forte habitará!
Em seguinte, com aspecto festivo e sorridente, correu até a frente da casa e ali, debaixo do sol ardente, abriu os braços, ergueu-os, e mais uma vez falou em voz alta bendizendo tudo aquilo que lhe vinha ao pensamento:
Bendita seja a vida e tudo que nela há, desde os seres humanos aos bichos do mato, desde a terra seca ao barreiro lamacento, desde a boca sedenta ao copo de água, desde a pobreza e o ter abundância, pois tudo na medida de Deus que não desampara ninguém e fartará todo aquele que estiver na precisão; bendita a madrugada e a manhã, o raio de sol e o tempo ensolarado, a tarde e o entardecer, a boca da noite e a noite, o anoitecer e a lua que surge, a estrela que brilha e a sombra silenciosa tomando conta de tudo, pois aí também está a feição de Deus emoldurando a vida; bendito o amor naqueles que amam, o amor que virá naqueles que precisam amar, o amor que nunca virá naqueles que se findarão na esperança, pois sabe Deus que é melhor a solidão do que sofrer a ilusão amorosa; bendita a família, o pai, a mãe e o irmão, o sangue que corre na veia, a linhagem familiar, o parentesco, uma casa que já vem desde outros e nunca deixará de ser habitada porque passando de raiz a raiz; benditas as pequenas coisas, aos nossos olhos quase nada, mas que sem elas a vida seria de menor importância, como o grilo que canta escondido, a folha seca que passa ao alto, a pedra que silenciosamente faz sua prece, a brisa e o vento que passam trazendo notícias; benditos os sentimentos que povoam cada um de nós, desde a dor à alegria, da tristeza à euforia, do encontro à saudade, pois na balança do bem e do mal é que está o equilíbrio da vida; bendito este momento, esta hora, este dia e todos os outros que virão, pois bendita é a certeza que Deus sempre reservará o melhor para nossas vidas...”.
Nunca bendisse tanto tudo como nesse momento, nunca esteve tão cheia de si e tão animada, tão desejosa de cantar, correr, brincar. E cantou, correu, brincou, até que cansou e deu vontade de voltar pra casa e tomar um banho. Mas ao se virar para o retorno avistou alguém além da janela, sentada na cadeira e olhando pra fora, para onde ela estava.
E reconheceu a pessoa: era ela mesma.
Continua...   
 

Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

sábado, 28 de julho de 2012

UM CAMINHO ENTRE BANANEIRAS E COQUEIRAIS (Crônica)


                                                     Rangel Alves da Costa*


Já estou com mais de quinhentos anos e juro que não consigo acostumar com a vida na cidade grande. Talvez não seja nem acostumar, mas não gostar mesmo, ter pavor a esse cheiro de asfalto, a essa manhã sem passarinho, a esse entardecer sem cores e às noites de desbotada lua, toda sem graça, apenas lua. Que diferença do luar do meu sertão!
Bem que poderia ter continuado por lá, pelas lonjuras do meu sertão amado. Arrumei o saco, abri cancela, peguei estrada, não por vontade própria, pelo iludido desejo de arriscar a vida noutra ribanceira, mas pela necessidade mesmo. Naquela época, um tempo de palmatória e cartilha, caderno de caligrafia e catecismo, ou a pessoa pensava em estudar fora ou parava nas primeiras letras.
Por causa do estudo é que fui enxotado do meu chão de espinho e garrancho, de areal e massapê, deixando chorosa a amiga catingueira, a beirada do riachinho, a rolinha fogo-pagô. Dei adeus ao mandacaru e xiquexique, ao cavalo de pau, à bola de gude, aos banhos nus pelas ladeiras em dias de trovoadas, aos tantos e bons amigos, todos molecotes de uma laia sem igual: tempo de meninice agrestina!
Depois de muito chorar até acostumar, hoje, mais de quinhentos depois, não posso reclamar do destino que eu tinha de cumprir na cidade grande. Foi dolorosa a separação, continua sendo difícil e lastimosa a convivência, mas acabei conseguindo o que realmente desejava: alcançar um nível maior de estudo. Formado estou, continuando pisando em asfalto, mas ainda umbilicalmente ligado ao meu lugar.
E nesse passo a coisa mais terrível que acontece, eis que todo dia prometo pegar o caminho de volta, arrumar novamente a trouxa e abrir novamente a cancela, gritar que cheguei e que cuidem em preparar minha rede. E já estou com sede só em pensar na água doce e fresca da moringa de barro, já estou com fome só em imaginar no cuscuz de milho ralado ali mesmo, nos ovos de capoeira, no bolo de macaxeira, na coalhada, no queijo de coalho, na buchada de bode. Tudo delícia de outro mundo: o mundo sertanejo!
Prometi a mim mesmo que voltava e voltarei, mas não pra dois ou três dias como sempre faço, e sim pra fincar pé de novo e eternamente no meu lugar. E porque nada do que tenho conseguido dará para uma vida farta, então já penso contente em apenas ter uma casinha no mato, uma manhã no mato, um anoitecer no meio do mato, tanta lua e tanto sol e tudo no meio do mato. E que me venham os passarinhos, as plantas selvagens, os bichos, os mistérios, os encantamentos.
Enquanto a mochila de viagem não fica pronta e os dias estafantes daqui continuam me consumindo, procuro fugir dessa cruel realidade imaginando, e até muitas vezes sonhando, com tanta coisa bonita que me espera por lá. O abraço no velho amigo, beijar a mão de toda velha senhora minha avó, caminhar pelos descampados, visitar famílias nos arredores, sentar ao entardecer na pedra da relembrança.
Logo chegará esse dia, o mais rapidamente possível estarei refeito na mesma terra onde nasci e sarapantei a minha meninice. Antes que chegue esse momento procuro me contentar em passar minhas tardes caminhando entre bananeiras e coqueirais. Nada igual aos caminhos de pedras e flores do campo, entrecortados de espinhos e outras surpresas, mas ao menos tenho muito a encontrar ladeando as bananeiras e coqueirais.
Nesse caminho aqui mesmo da cidade, um pouco afastado do centro, me preparo em refúgio espiritual para reencontrar meus próprios caminhos. Ao lado da natureza, pertinho de plantas que só são avistadas no meio do mato ou nas beiradas interioranas, me fortaleço da seiva e do olhar, da casca grossa dos troncos, das folhagens longas e largas dizendo que as belezas da vida também se estendem sempre mais adiante.
Nesse caminho entre bananeiras e coqueirais, nesse percurso de vida onde já é muito difícil viver, me sinto como se adiante, andando um pouco mais, fosse dar diretamente na malhada sertaneja, defronte à minha casinha de barro batido. E toda vez que colho uma banana para saborear é como se estivesse colhendo um umbu maduro, um araçá amarelinho, uma saborosa goiaba.
Depois de me fartar de saudade, retorno pisando no asfalto. E para arrumar a mala, colocar num saco tudo que consegui juntar nesses anos de luta e partir qualquer dia. E que seja amanhã esse dia.


Poeta e cronista
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