Rangel Alves da Costa*
Ao ser descida da nuvem ou qualquer outro lugar onde permanecera naqueles últimos dias, Crisosta apresentava a mesma feição quando da subida, ou seja, estava com a feição dos vivos, a pele ensolarada, de tez tomada de cor, lábios carnudos, cabelos novamente esvoaçantes ao vento.
Ao ser posta novamente ali antes de o sol aparecer com maior vivacidade, assim que os primeiros raios incidiram sobre seu corpo deu o primeiro sinal que havia acordado, voltado à vida ou ressuscitada.
Qualquer coisa poderia ser verdade, apenas um acordar ou um ressuscitar, ante a estranheza de tudo que havia acontecido. Mas a verdade é que tudo ainda continuava numa terrível dúvida e somente ela, se algum dia quisesse falar, poderia falar sobre a experiência vivenciada.
Assim, o primeiro sinal veio com o tremular dos olhos ainda fechados. Continuavam cerrados, mas interiormente ganhavam vida, mexiam as pálpebras, tremulavam os cílios, tencionavam abrir a qualquer momento. E de repente os dois olhos foram abertos, vívidos, cheios de cor, de brilho.
E depois a mão protegendo da intensidade da luz derramada. A mão afastou um pouco e em seguida a boca se abriu para perguntar onde estava. E a voz surgida, a indagação um tanto espantada:
“Onde estou meu Deus, onde estou? O que estou fazendo aqui? Preciso voltar pra casa, preciso fazer uma coisa muito importante. Não deveria estar aqui por essa hora quando tenho uma coisa muito importante a fazer. Que horas já são, onde estou, qual caminho devo seguir até encontrar minha casa?”.
Tentou levantar, ficou de joelhos, procurou juntar forças, ergueu-se. Sentiu-se fraca, com pouca força para caminhar, mas estava decidida a não ficar mais um só instante ali. Abriu os braços, levantou-os para o alto, respirou profunda e calmamente, olhou para os lados e deu o primeiro passo.
Olhava ao redor procurando achar um caminho. Não havia estrada, não havia uma indicação segura, apenas uma vereda aberta em meio a troncos, garranchos, plantas rasteiras. Com tudo já quase seco, seguia olhando para os lados para ver se reconhecia o lugar.
Nada havia sido modificado por ali. Tudo ao redor e adiante muito conhecido por ela. Ali estrada sua, caminho seu, vereda que poderia seguir de olhos fechados. Porém depois de tanto tempo sem ver a luz do dia, os olhos teimavam em confundir, em embaçar a visão.
Mas não teve mais dúvida quando saiu do mato e botou o pé na malhada, no descampado defronte à sua casa. Ao avistar a porta aberta apressou o passo com toda a força que tinha. Queria correr pra chegar logo, queria gritar de alegria. Contudo, deitou no chão quente, e estendendo os braços acariciou o leito, beijou a face da terra, e começou a chorar.
Mas um choro como de gratidão, de alegria, de contentamento. Depois levantou desgrenhada, toda suja de pó, cabelos emaranhados, o rosto parecendo enlameado, e começou a fazer uma coisa que parecia loucura, algo próprio dos insanos.
Eis que lançava as pontas dos dedos na roupa que estava vestida e transformava tudo em pedaços, tiras, restos, molambos. E quanto mais rasgava mais jogava os restos para o alto, como se desejasse que a ventania chegasse forte para levar tudo para bem longe.
Era como se quisesse ficar livre daquela roupa já velha, já suja, já marcada demais em sua vida. E nesse gesto, com a vestimenta talvez significando o velho, o ultrapassado, querendo mostrar que aquele corpo agora estava pronto para um novo vestir. E tal vestir não significava necessariamente uma roupa, mas a idealização de um novo ser que nascia da nudez.
Sim. Havia rasgado a roupa e estava nua, completamente despida. Mas não ficou assim por muito tempo, eis que se afastou para os fundos da casa, destampou um reservatório de água, e de cuia na mão fez a água cair sobre o seu corpo.
E por baixo escorria não a água caída, mas um líquido negro e pegajoso, talvez o sumo do sofrimento que havia dentro dela. A alma estava sendo lavada. Limpo o corpo a esperar uma nova mulher. Será?
Continua...
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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