SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 2 de julho de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (68)


                                         Rangel Alves da Costa*


Já madrugada. Tempo agrestino mais bonito de se ver. Parece que nesse momento o dedo de Deus começa a desenhar a mais bela paisagem. E não somente o quadro que se tem adiante, mas também os sons, os gorjeios, as folhagens farfalhando, tudo num encantamento só.
Mas ainda não estava assim não. Deus ainda estava escolhendo as cores de sua pintura. A tela do momento ainda estava escurecida, um tanto lúgubre, sombria. Estava frio, com uma aragem tão fresca que merecia casaco. Logo mais, assim que o sol despontasse, a temperatura mudaria de tal forma que era preciso estar se abanando por todo lugar.
Nesse clima, nesse tempo ainda escurecido, nesse madrugar levantando para abrir a porta do alvorecer, é que Crisosta se sentiu ao abrir a porta e sair. Ainda estava com sono, é verdade. Bocejou, se espreguiçou, ergueu os braços. Em seguida verdadeiramente procurou despertar para esse mundo lá fora.
Não pretendia nada especial ali, encontrar nada, avistar nada, tirar conclusões. Resolveu abrir a porta e sair àquela hora do dia apenas para fugir daquele sonho terrível que parecia ainda rondar sua sala de dormida. Verdade é que a leitura da Bíblia a havia confortado muito, até dado forças para pensar em abrir a porta e sair. Contudo, continuar ali dentro era martelar tudo novamente.
Avistou o primeiro amarelo do dia enquanto caminhava em direção ao velho carro de boi. Continuava pensando seriamente em transformá-lo em carroça. E enquanto andava, lançando o olhar de canto a outro, sempre agraciada pelos murmúrios vindos da mataria, pensava o quanto era bom viver ali distante de tudo, ainda que morando na companhia do silêncio e da solidão.
Não havia nada melhor do que ter aquela paz, aquele cheiro de terra, aqueles sons da natureza, o barulho dos bichos, o açoite do vento passando apressado e carregando folhas secas no ar. Não poderia ser comparado aos frutos simples brotando do chão, ao jeito pacato de viver, ao acordar e adormecer na paz do Senhor.
Coisas existiam por ali que em nenhum outro lugar se poderia pensar. A mão colhia a fruta madura no mato, o passarinho chegava à janela e entrava porta adentro em busca de naco de comida, o preá se escondia nas locas das pedras nas malhadas, os vagalumes viravam faróis no meio da escuridão, os grilos se escondiam a cantarolar nos ocos dos paus, as galinhas ciscavam na frente e nos fundos das casas.
Por ali e adiante, um povo pobre e ordeiro, uma gente pacata e amiga, famílias honradas desde a primeira raiz, gente cuja inocência se comparava à do irmão do mato. Casas de barro, de sapé, de tijolo, de madeira apodrecida, de quase nada, mas todas as portas mais largas do mundo para que todos pudessem chegar para uma visitinha ou uma prosa. Lá dentro, mesmo com o quase nada ter, era sempre oferecido um cafezinho, uma caneca d’água, um pedaço de bolo, um naco de pão.
A meninada buchudinha, desnuda e apetitosa pelo barro da parede, crescia tão forte que desafiava a medicina. Mas tudo no chá, na raiz de pau, na planta medicinal, na perna de preá, na farinha seca, no pedaço de pão dormido. E que vida bonita, meu Deus, a desse povo abençoado. Tudo amigueiro, tudo prestativo, tudo como se fosse uma imensa família.
Toda aquela terra agrestina era verdadeiramente uma grande família. O mesmo sangue sertanejo corria na veia de cada um, a tez ensolarada encobria o semblante de todos, os lanhos espinhentos que iam surgindo com o tempo não escolhia lombo de um ou de outro. E por todo lugar, desde a raiz maior, uma imensa esperança que servia de instrumento para superação das grandes dificuldades.
E eram muitas as dificuldades e mais ainda os problemas. O eterno vai e vem das estiagens, a pobreza batendo em toda porta, o esquecimento dos governantes, as mãos que infelizmente tinham de ser estendidas para não passar fome. E estender a mão de esmola era a última coisa que o agrestino fazia. Só quando não tinha mais jeito mesmo, quando nem o preá tinha mais, a farinha seca acabava e a meninada começava a espernear faminta.
Pensar em tudo isso causava em Crisosta, ao mesmo tempo, um senso de orgulho e felicidade e um laivo de tristeza e comoção. De um lado os encantamentos do seu lugar, do outro os tantos problemas surgindo diante do seu povo. Mas era assim mesmo, o doce e o sal da vida. Acabou se contentado.
Olhou pra cima e já avistou o tempo começando a clarear de vez. Olhou ao redor e viu a paisagem maravilhosa tomar sua cor. Mas avistou também duas pessoas que se mantinham em pé ao longe, perto da entrada da mataria.
Continua...    


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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