Rangel Alves da Costa*
O anjo visitante, a doce e meiga querubim, pediu para Crisosta lembrar o que pudesse da recente viagem, bem calmamente, de modo que os detalhes pudessem ser costurados como numa colcha de retalhos e tudo enfim pudesse ser revelado como realmente havia acontecido.
Logicamente que a querubim já sabia de tudo, já havia sido enviada conhecendo todos os detalhes da viagem feita. Conhecia todas as minúcias: o porquê de aquilo ter acontecido, os reais motivos, o que aconteceu durante o período de morte aparente, quais os pensamentos que inconscientemente brotavam na cabeça dela, como se deu o chamado para subir, o porquê dessa decisão, o que aconteceu lá em cima, tudo enfim.
A querubim, para não dizer anjo feminino, não podia adiantar nada, revelar nada antes da hora porque corria o risco de não ter efeito nenhum a sua missão terrena. Tudo só alcançaria os objetivos se a própria Crisosta fosse se revelando através da rápida passagem, da viagem realizada.
Compreender qualquer coisa nesse sentido seria também sentir se alguma transformação havia ocorrido, se aquele procedimento adotado pelas forças superiores possibilitaria uma mudança na vida silenciosa, de tristeza e de solidão da moça. Neste sentido, a viagem havia sido um percurso em busca de transformação.
Antes de partir, a querubim foi chamada a ouvir claramente como deveria agir perante a recém viajante. Nada de falar sobre a vida pessoal da moça, nada de falar sobre o que a fazia tão triste e sofrida, nada de falar sobre o que poderia encontrar no mundo lá fora, nada de perguntar o que faria para encontrar a verdadeira felicidade. Tudo isso seria conhecido através das próprias palavras, das respostas dadas, das divagações transformadas em expressões.
Por isso mesmo que a visitante tanto precisava ouvi-la, sentir como estava agora, saber se o seu futuro seria o de outra mulher. O problema é que não podia dizer, por exemplo, que aquela viagem havia sido o melhor caminho encontrado para que ela pudesse ser transformada, ou seja, que o estado de morte foi uma experiência para chamar a vida. Daí que não restava outra coisa senão apenas atiçar seu pensamento, procurar que sua memória fluísse as revelações necessárias.
Mas quando indagada, Crisosta simplesmente disse: “Mas não lembro nada. Se você sabe tanto dessa viagem, então bem que me poderia falar sobre ela. Quem sabe assim poderei recordar alguma coisa...”
E a visitante tentou abrir os portais da mente, dizendo: “Há sete dias você lembra o que fazia aqui? Tente lembrar como estava acerca de uma semana atrás, o que fazia, o que sentia, se estava alegre ou triste, se passava o dia inteiro naquela cadeira de balanço, diante da janela, ou se caminhava por aí catando folhas secas, brincando com os bichos, passando da melhor maneira possível o seu tempo de solitária...”.
“Ah, lembro sim, lembro de uma coisa sim, mas não sei se foi antes ou depois de sete dias. Talvez antes mesmo. Só sei que já faz um tempinho. E lembro como se duas pessoas já mortas tivessem aparecido e falado comigo. Mas eram duas pessoas boas e que eu ainda gosto muito. Um era meu amiguinho caçador e o outro o meu irmão. Aquele mesmo que um dia partiu com uma pedra por mim presenteada e nunca mais voltou. Morreu o bichinho, disso eu tenho certeza. E como me dói falar assim...”.
Ao ouvi-la falar sobre a pedra, a querubim deu um sorriso por dentro. Mais tarde voltaria a esse assunto, e não apenas sobre a pedra como também com relação aos dois falecidos. Aliás, já havia afastado os dois lá em cima e conversado coisa muito interessante. Mas antes disso perguntou se ela sabia o que tinha feito no período entre a visita dos dois e aquele mesmo dia que estavam ali conversando.
Nesse momento Crisosta modificou sua feição, ficou assustada, com jeito de quem tentava recordar alguma coisa muito importante. E disse em seguida: “Que coisa mais estranha. O que eu fiz mesmo durante esse tempo todo? Se já faz algum tempo que encontrei os dois ali naquele local, e o tempo passou até chegar o dia de hoje, então eu deveria ter feito muita coisa. Mas o que fiz mesmo?”
Continua...
Poeta e cronista
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