Rangel Alves da Costa*
Raramente os pesquisadores, os estudiosos do fenômeno cangaço, os escritores e historiadores, abordam com mais vagar e profundidade acerca da infância e meninice de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, o maior dos cangaceiros do nordeste brasileiro. Cabra afamado demais, mas que um dia piruetou nas pivetezas da vida.
Optando por desvendá-lo basicamente a partir das lides de sangue da família que culminaram com sua entrada na vida bandoleira, esquecem que todo comportamento humano, sua predisposição para as vinditas de sangue debaixo do sol, bem como a sua concepção de mundo e de ação perante este, depende em muito da sua criação e dos tipos de experiências que vai acumulando desde a mais tenra idade.
Ora, Virgulino não se fez Lampião de hora pra outra. Do mesmo modo, ninguém dá saltos na vida que a infância possa ser relegada a um plano de quase inexistência. Primeiro o nascer, o ser o menino, depois o moleque, e assim por diante. Por isso mesmo é que não se pode esquecer que este que se tornou no rei dos cangaceiros um dia foi infante, moleque traquina, sertanejinho buchudo de lamber barro da parede, perigosinho correndo descalço pelos descampados e veredas cobertas de pontas de pedras e espinhos.
Dependendo do lugar onde tenha nascido, do mundo circundante, das experiências vivenciadas nas primeiras fases da vida e principalmente das características familiares, todo menino levará consigo um tanto de reflexo disso tudo na sua caminhada adulta. O pequenino certamente seguirá o passo que lhe é ensinado, e isto faz parte do tipo de criação recebida. Fosse com Virgulino ou qualquer outro, verdade é que ninguém nasce e se cria distanciado de sua realidade familiar e do meio que o circunda.
Mas uma coisa é certa, tenha nascido em família puritana ou de relacionamentos difíceis, lastreando inimigos nas vizinhanças e por todo lugar, ainda assim a criança vive o seu mundo distanciado das preocupações próprias dos adultos. Ao menos enquanto não é apanhado pelo mundo da consciência, do senso crítico, o que muitas vezes se transforma num processo doloroso demais.
Assim, é como se um retrato antigo mostrasse o pequeno Virgulino chorando de se rasgar, lambendo barro e areia, brincando inocentemente com formigueiro e piolho de cobra. Lá adiante um grito de sua mãe para que saia dali e entre logo em casa se não quiser apanhar. O irmão passando, o pai quase não dando atenção, apenas o cachorro magro chegando para lhe fazer companhia. Coisa de berço não, nem de fraldinha na cama, mas vida de chão e de ralamento na terra agrestina.
O retrato amarelado não se apaga e ele é avistado descalço, de bucho grande e cheio de verminose, com o corpo sujo de barro dos pés à cabeça, correndo atrás de catenga, matando saúva pra botar na boca. E noutro álbum, o menino correndo na vida, brincando descalço, chutando bola de pano, tentando acertar buraco com bola de gude, de baleadeira na mão para matar passarinho, com gaiola e arapuca rumando pro meio do mato.
E não podia ser diferente, pois menino sertanejo, e criança agrestina não vive sua idade sem ser assim, diabinho malino, moleque travesso, tico de gente desnaturado, um ser simplesmente procurando viver. E mais tarde ajudar a família, cumprir as ordens do pai, tanger o gado, cortar a palma, ajeitar o tronco na cerca que está caindo, passar remédio na bicheira do bicho, seguir até a cidade comprar mantimento. O corpo já transformado, o menino vai se percebendo homem.
Quem não vive assim no sertão nordestino não pode ser considerado como pessoa normal, quiçá no meio do mato, nas pequenas povoações, nas fazendas, nas cidades em formação. E fruto do seu tempo de criança, Virgulino certamente que era um tanto tudo disso tudo. No que se tornou mais tarde, no homem valente e destemido que se fez, nada se pode dizer da raiz inocente que cresceu e se tornou temida, pois o menino continuou seu passo normal de vida até ser transformado por outra realidade na vida adulta. Não que o homem tenha rompido com sua infância, mas foi como se o adulto jamais tenha sido criança.
Espelho do menino que foi, retrato do homem que se tornou, assim diz o ditado popular. Neste sentido não poderia haver outro reconhecimento senão o de que Virgulino já era chegado à desenfreada valentia desde cedo na vida. E logicamente que não foi assim, pois apenas menino nordestino, molecote sertanejo, tendo uma vida normal como todos os outros e sem demonstrar desde cedo uma clara predisposição para a vida guerreira.
Contudo, nesse passo as opiniões se dividem, pois alguns, talvez num mirabolante exercício de criatividade sensacionalista e exacerbada extravagância, chegam a afirmações verdadeiramente absurdas, como as dando conta que desde os cinco anos Virgulino já carregava consigo arma de fogo e aos sete já tinha feito sua primeira vítima. Matou um homem só porque achou feio. Contudo, outros mais realistas, mas nem por isso mais verdadeiros, afirmam que o pequenino, de tão quieto e pacífico que era, chegou a ser pensado como futuro religioso, nascido que havia com uma missão divina.
Só mesmo com muita cara de pau para chegar a conclusões como tais, mas a verdade é que alguns afirmam da predisposição, da sina e do desígnio cangaceiro já nascido com Virgulino. Deslavadamente, chegam a dizer que ao nascer, ao invés do choro o pequenino deu um grito de guerra. Que jamais aceitou mingau e papinha porque dizia que comida de homem era farinha seca com jabá, que não deixava que ninguém lhe desse banho ou lhe oferecesse roupinhas de criança. Exigiu que lhe dessem calção de couro cru e nem peteca de brinquedo aceitava. Levava de canto a outro, feito brinquedinho, uma espingarda carregada.
Não se pode acreditar em nada disso, mas ainda têm coragem de relatar que uma das brincadeiras que o Virgulino menino mais gostava era mirar na cabeça de todo mundo que passasse em sua frente. Por diversas vezes varou a noite dando tiros nos rebanhos das vizinhanças, enchendo as portas e janelas de chumbo e gritando que se tivessem coragem que saíssem para morrer. E tudo isso com menos de oito anos.
Um verdadeiro terror era o menino. Gato e cachorro não chegavam nem perto dele; os irmãos evitavam o máximo possível contrariá-lo; havia jurado de morte a própria mãe porque esta tinha beliscado sua bochecha e chamado de menininho lindo da mamãe. Com seu pai não havia sido diferente, pois certa feita fez o homem ficar de quatro pés por duas horas, tendo uma garrafa por cima das costas pra ele brincar de alvo. E não era pro coitado do pai se mexer de jeito nenhum, senão erraria o tiro por conta própria.
Noutra vertente, são mentirosas também as afirmativas dando conta que um anjo desceu sobre o berço do infante Virgulino, e espargindo água benta sobre sua cabeça anunciou que sua missão na terra seria a de espalhar pelos quatro cantos a palavra do Senhor. E ainda dizendo que desde novinho o futuro Lampião chorava em terrível agonia todas as vezes que ouvia palavras como morte, violência ou sangue.
Mentirosas também as afirmativas que o pequeno Virgulino, à moda de São Francisco, enveredava pela mataria nos arredores de Vila Bela para conversar com os passarinhos e os bichos que encontrava. E muitas vezes avistaram o pequenino seguindo por estradas, sempre acompanhado de borboletas esvoaçantes ao redor, passarinhos pousando no seu ombro, caititus, onças e cobras acompanhando os seus passos para onde enveredasse.
Tudo mentira. Nem menino violento, já sanguinário na criancice, nem um anjinho de candura na mesma época. Apenas um menino sapeca, um traquina sertanejo, cujo destino de adulto foi se contrapor às injustiças do seu tempo, lutar pela vida e tombar diante de uma guerra que nunca pôde ser vencida, ainda que jamais tenha sido derrotado.
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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