Rangel Alves da Costa*
Já estou com mais de quinhentos anos e juro que não consigo acostumar com a vida na cidade grande. Talvez não seja nem acostumar, mas não gostar mesmo, ter pavor a esse cheiro de asfalto, a essa manhã sem passarinho, a esse entardecer sem cores e às noites de desbotada lua, toda sem graça, apenas lua. Que diferença do luar do meu sertão!
Bem que poderia ter continuado por lá, pelas lonjuras do meu sertão amado. Arrumei o saco, abri cancela, peguei estrada, não por vontade própria, pelo iludido desejo de arriscar a vida noutra ribanceira, mas pela necessidade mesmo. Naquela época, um tempo de palmatória e cartilha, caderno de caligrafia e catecismo, ou a pessoa pensava em estudar fora ou parava nas primeiras letras.
Por causa do estudo é que fui enxotado do meu chão de espinho e garrancho, de areal e massapê, deixando chorosa a amiga catingueira, a beirada do riachinho, a rolinha fogo-pagô. Dei adeus ao mandacaru e xiquexique, ao cavalo de pau, à bola de gude, aos banhos nus pelas ladeiras em dias de trovoadas, aos tantos e bons amigos, todos molecotes de uma laia sem igual: tempo de meninice agrestina!
Depois de muito chorar até acostumar, hoje, mais de quinhentos depois, não posso reclamar do destino que eu tinha de cumprir na cidade grande. Foi dolorosa a separação, continua sendo difícil e lastimosa a convivência, mas acabei conseguindo o que realmente desejava: alcançar um nível maior de estudo. Formado estou, continuando pisando em asfalto, mas ainda umbilicalmente ligado ao meu lugar.
E nesse passo a coisa mais terrível que acontece, eis que todo dia prometo pegar o caminho de volta, arrumar novamente a trouxa e abrir novamente a cancela, gritar que cheguei e que cuidem em preparar minha rede. E já estou com sede só em pensar na água doce e fresca da moringa de barro, já estou com fome só em imaginar no cuscuz de milho ralado ali mesmo, nos ovos de capoeira, no bolo de macaxeira, na coalhada, no queijo de coalho, na buchada de bode. Tudo delícia de outro mundo: o mundo sertanejo!
Prometi a mim mesmo que voltava e voltarei, mas não pra dois ou três dias como sempre faço, e sim pra fincar pé de novo e eternamente no meu lugar. E porque nada do que tenho conseguido dará para uma vida farta, então já penso contente em apenas ter uma casinha no mato, uma manhã no mato, um anoitecer no meio do mato, tanta lua e tanto sol e tudo no meio do mato. E que me venham os passarinhos, as plantas selvagens, os bichos, os mistérios, os encantamentos.
Enquanto a mochila de viagem não fica pronta e os dias estafantes daqui continuam me consumindo, procuro fugir dessa cruel realidade imaginando, e até muitas vezes sonhando, com tanta coisa bonita que me espera por lá. O abraço no velho amigo, beijar a mão de toda velha senhora minha avó, caminhar pelos descampados, visitar famílias nos arredores, sentar ao entardecer na pedra da relembrança.
Logo chegará esse dia, o mais rapidamente possível estarei refeito na mesma terra onde nasci e sarapantei a minha meninice. Antes que chegue esse momento procuro me contentar em passar minhas tardes caminhando entre bananeiras e coqueirais. Nada igual aos caminhos de pedras e flores do campo, entrecortados de espinhos e outras surpresas, mas ao menos tenho muito a encontrar ladeando as bananeiras e coqueirais.
Nesse caminho aqui mesmo da cidade, um pouco afastado do centro, me preparo em refúgio espiritual para reencontrar meus próprios caminhos. Ao lado da natureza, pertinho de plantas que só são avistadas no meio do mato ou nas beiradas interioranas, me fortaleço da seiva e do olhar, da casca grossa dos troncos, das folhagens longas e largas dizendo que as belezas da vida também se estendem sempre mais adiante.
Nesse caminho entre bananeiras e coqueirais, nesse percurso de vida onde já é muito difícil viver, me sinto como se adiante, andando um pouco mais, fosse dar diretamente na malhada sertaneja, defronte à minha casinha de barro batido. E toda vez que colho uma banana para saborear é como se estivesse colhendo um umbu maduro, um araçá amarelinho, uma saborosa goiaba.
Depois de me fartar de saudade, retorno pisando no asfalto. E para arrumar a mala, colocar num saco tudo que consegui juntar nesses anos de luta e partir qualquer dia. E que seja amanhã esse dia.
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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