SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 10 de julho de 2012

ESTÓRIAS DOS QUATRO VENTOS: ALI O SILÊNCIO, ALI A SOLIDÃO... (76)

                                         
                                                     Rangel Alves da Costa*


Por mais que implorassem, que se ajoelhassem invocando a permissão divina, não foi consentido que os familiares de Crisosta acompanhassem os seus passos. Nem a eles nem ao amiguinho caçador e ao irmão.
Esses dois desapareceram dali defronte à malhada da casa, enquanto os outros, o pai, a mãe e a irmã com seu filhinho, continuaram vagando ao redor, num lamento só, numa tristeza infinita. No dia seguinte e ainda estavam por lá. Somente no terceiro dia veio a ordem imediata para retornarem.
E também desde três dias que o corpo da mocinha estava estendido numa clareira no meio do mato. Estendido, desacordado, no vão do tempo, no desvão da vida. Poderia uma pessoa, depois de tanto tempo assim, continuar vivendo?
Ao adentrar no meio da mata, inconscientemente guiada para atender ao chamado, certamente que não sabia para onde ia nem o que iria fazer. Outras vezes já havia andado por ali, mas porque gostava de caminhar pelo mato ou seguindo para visitar o túmulo do amiguinho ao redor.
Mas agora não foi levada exatamente naquela direção, por mais que o trajeto feito indicasse que isso poderia acontecer. Seguindo, se lanhando sem sentir, se ferindo sem gesto de dor, vencendo as barreiras próprias do lugar, chegou ao lugar escolhido e parou.
Ali ficou parada no meio do tempo, no meio do mato, ainda que o local fosse tomado apenas por uma vegetação rasteira, com algumas flores do campo ressequidas e algumas pedras espalhadas.
Em pé, nessa posição permaneceu mais de uma hora. O sol não estava tão quente como nos descampados nem o calor era tão intenso como nos desmatados, mas ainda assim tudo era quente demais, calorento, assombroso, assustador.
Em pé, olhou para cima por muito tempo, mirando o sol, mirando o horizonte, mirando as nuvens que de vez em quando passavam muito acima. Não sentia calor nem frio, muito menos a dor causada pelos espinhos e arranhões com seus filetes de sangue.
O corpo totalmente afogueado, como que avermelhado, fazia surgir uma face abrasada, suada demais, gotejando suor. Olhava para cima sem sentir ardência nos olhos, sem movê-los, sem qualquer piscadela.
Em seguida, depois de muito tempo, baixou a cabeça e assim permaneceu. Quase uma hora depois repentinamente levantou-a novamente para bradar: Eis-me aqui. O que quer de mim? Após pronunciar tais palavras foi tomada por um forte sopro, uma súbita ventania que espalhava seus cabelos, levantava sua roupa, balançava as folhagens adiante, fazia todo o arvoredo gemer.
E em meio aos murmúrios uivantes da natureza, sua boca abria-se para dizer:
“Guardai-me, ó Deus, porque é em vós que procuro refúgio. Digo a Deus: Sois o meu Senhor, fora de vós não há felicidade para mim. Quão admirável tornou Deus o meu afeto para com os santos que estão em sua terra. Numerosos são os sofrimentos que suportam aqueles que se entregam a estranhos deuses. Não hei de oferecer suas libações de sangue e meus lábios jamais pronunciarão o nome de seus ídolos. Senhor, vós sois a minha parte de herança e meu cálice; vós tendes nas mãos o meu destino. O cordel mediu para mim um lote aprazível, muito me agrada a minha herança. Bendigo o Senhor porque me deu conselho, porque mesmo de noite o coração me exorta. Ponho sempre o Senhor diante dos olhos, pois ele está à minha direita; não vacilarei. Por isso meu coração se alegra e minha alma exulta, até meu corpo descansará seguro, porque vós não abandonareis minha alma na habitação dos mortos, nem permitireis que vosso Santo conheça a corrupção. Vós me ensinareis o caminho da vida, há abundância de alegria junto de vós, e delícias eternas à vossa direita”.
Salmo 15. Salmo de Davi. Onde ela teria encontrado forças para se expressar desse modo, sem esquecer nenhuma passagem, como se estivesse diante do livro sagrado? E por que tais palavras surgidas nesse momento, quando dela própria não se ouviria um murmúrio sequer?
Só o tempo dirá. São os mistérios, mistérios, mistérios. E em seguida caiu desacordada, desmaiada.
Continua...


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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