Rangel Alves da Costa*
Diferentemente do que fazia todos os dias, naquela manhã Crisosta não despertou no horário costumeiro, que era no primeiro sorriso do alvorecer, logo cedinho mesmo, com o tempo ainda quase escurecido.
“Menina do canto do galo, faz da cama um poleiro e já desce pro terreiro pronta pra malinar. Menina nem abre o olho e já enxerga o dia quando ainda é madrugada, e corre feito uma danada pros amigos encontrar. E corre gato de lado, corre cachorro de outro, passarinho avoeja, papagaio se sacoleja vendo a menina chegar. Menina, coisa malina, deixa de ser traquina e volte pra cama dormitar...”. Não foram poucas as vezes que ouviu sua mãe inventar cantiga pelo seu costume de acordar quase no canto do galo.
Naquele dia, talvez o único dia, não cumpriu seu horário. Não era pra menos. Nas condições que adormeceu ali mesmo na cadeira de balanço, com a porta e a janela abertas, totalmente fora de si, angustiada demais, se esperaria uma noite completamente tensa, um adormecimento entrecortado por pesadelos terríveis, o corpo querendo sair pra qualquer lugar. Mas não.
Adormeceu feito pedra debaixo de sombra, sequer sonhou ou acordou por qualquer motivo. Nem pestanejar pestanejou. A brisa, chegando a um ventinho leve, entrava pela janela e soprava na sua face, nos seus cabelos escorridos, na sua roupa. Como mão que alisa um rosto adormecido, passeou pelo belo semblante e até beijou-a suavemente. Somente a aragem da noite para roçar naqueles lábios tão quentes.
Talvez a lua tivesse descido mais, se aproximada de bem pertinho da janela, e se tornado mais cheia, mais brilhosa e radiante, diante da beleza adormecida encontrada. Talvez as estrelas tenham se tornado todas cadentes e voado até ali para a festa do embevecimento diante de astro tão precioso. Talvez os vagalumes, os seres das matas, os encantados, todos chegaram diante da janela para o noturno deslumbramento.
Com tais vistas ou não, verdade é que foi despertando com o sol já saindo, com o mundo já claro lá fora. Foi abrindo os olhos devagar por causa do reflexo da luz. Contudo, de repente espantou-se com a manhã diante de si. Assustada, apavorada, olhou para os lados, passou a mão pela cadeira, como se não estivesse acreditando que aquilo pudesse ter acontecido, ter adormecido ali e despertado somente àquela hora.
Levantou num pulo, colocou a cabeça do lado de fora e avistou a mesmice de sempre. Ali a mataria, ali os restos do velho curral, ali o carro de boi, ali a árvore frondosa, ali e acolá as estradas e veredas. E também o silêncio e a solidão de sempre. E lá em cima o sol já passeando, já querendo mostrar toda sua vivacidade.
Olhou para baixo, para o pé da parede no lado de fora, e avistou o cachorro deitado ao lado do seu esquecido jardim de única planta. Nunca mais a plantinha tinha recebido uma gota de água sequer, sua dona andou negligenciando a seu respeito, mas se sustentava por conta própria, crescendo cada vez mais.
Estranhou o cachorro ali deitado e num sossego que dificilmente demonstrava. Na verdade, achava tudo nele muito estranho, pois seguidamente sumia, muitas vezes ficando afastado por muito tempo, e de repente aparecia. Quando voltava, geralmente latia querendo dar alguma informação, mas daquela vez reapareceu silenciosamente e ali deitava tranquilamente.
Ainda na janela, ficou imaginando no que poderia ter acontecido no dia anterior para ter adormecido ali daquele jeito. Não estava cansada, não estava indisposta, nada disso. Pelo contrário, até com vontade de encontrar alguma coisa diferente para fazer naquela manhã. Queria se alegrar um pouco mais, disse a si mesma, intimamente. Queria passar o tempo fazendo alguma coisa agradável, proveitosa, que a tornasse mais feliz. Também confessou intimamente.
Mas quando se voltou para o interior da casa, teve que abrir ainda mais os olhos. E então um novo espanto, desmedida surpresa diante de si. Olhou, caminhou um pouco mais para o interior e não acreditou no que via.
Continua...
Poeta e cronista
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