Rangel Alves da Costa*
A palavra açoite talvez tivesse surgido para agradar o poeta, para animar o vento, para ser exatamente o contrário daquilo que se transformou por muito tempo. Ora, seria muito melhor que servisse apenas para rimar com noite ou para mostrar como a ventania chega voraz.
Na outra vertente que deram a palavra, o açoite tomou medonho sentido. E tão medonho que logo faz lembrar os negros escravos sendo açoitados, daquelas tristes figuras humanas amarradas ao tronco levando chibatada, sendo lanhadas pelos couros cortantes dos seus algozes.
Longe do sentido humano da palavra, logo faz lembrar seus usos e suas nefastas consequências. O arreio num canto, a corda na cintura, a corrente ao alcance, a tira desumana e cortante na proximidade, uma sombra ainda suja de sangue de outras costas pendurada na parede.
Açoite. A noite da face, do corpo, da boca aberta, do gemido do grito. Açoite. A noite na claridade, no meio do tempo, dentro da senzala, no festim dos insanos, nas mãos dos covardes, no curral dos desvalidos, em qualquer lugar. Açoite, rimando com noite, mas somente na cor da dor.
O que é o açoite? Homem branco não conhecia resposta, apenas sabia usar. O negro nem imaginava responder sem sentir passo fúnebre em sua direção. O capataz, o algoz, o senhor-do-mato, o rastreador, o que vai no encalço fugitivo, todo ele sabia muito bem do que se tratava. E tanto era amigo que fazia valer a plenitude mais desumana do seu significado.
Açoite. Azorrague, chicote, látego, vergasta, chibata, couro, cordame, calabrote, chiqueirá, junco, vara afiada, canaflecha, tudo a mesma coisa: a arma ou instrumento utilizado para açoitar, reprimir e castigar não só os negros rebeldes, fugitivos, indisciplinados, mas também todo trabalhador submetido às ordens de um sanguinário e desumano senhor.
Açoite. Pancada com a chibata, golpe com o chicote, investida na pele desnuda com o azorrague. Instrumento utilizado para diminuir a capacidade do ser humano, para denegrir sua imagem, para submetê-lo, para fazê-lo sentir na pele e no espírito a dor de ser rebelde e desobediente. O açoite como limite da ação humana e como fronteira de sua liberdade.
Tempos tristes aqueles, e tristes tempos também estes ainda sombreados pelo açoite. Na época da escravidão oficial não havia remédio melhor para combater negro safado, astuto, fugitivo, como diziam dentro e ao redor do engenho. Açoitava o rebelde onde fosse encontrado e mais ainda quando já estivesse amarrado ao tronco, no cenário ideal para o festim da desonra humana.
O negro já chegava todo alquebrado dos castigos impingidos desde o instante da captura. Depois de amarrado recebia os primeiros açoites, as primeiras feridas para não esquecer os motivos de estar sendo castigado. Em seguida era levado em cortejo, puxado feito animal bravio e jogado no terreiro das aflições.
Ali no pelourinho do engenho, local ideal para fincar o imenso tronco da correção, o coronel de terno de linho branco era chamado para ordenar os limites do castigo. Para não sujar sua roupa de respingos de sangue, logo apontava o dedo em direção ao carrasco, que geralmente era o feitor, e segredava-lhe ao ouvido.
De repente e os escravos eram trazidos da senzala para rodear o impiedoso tronco da tortura e ali assistir seu irmão de sangue e de sofrimento ser castigado. Aquele que baixasse a cabeça ou fechasse os olhos também era açoitado. Não era difícil que algum negro forte fosse chamado para levantar a chibata e descer no lombo do seu irmão.
A chibata abria ferida no lombo, nas costas e por todo lugar, o sangue espanava em todas as direções e o negro sob ameaça de outro açoite para continuar mortificando aquele que sofria calado, que não gemia, não chorava, não gritava, recolhendo-se apenas no seu silêncio de quase morte.
Depois jogavam por cima água com sal grosso e deixava o negro ali mesmo no meio do tempo. Talvez salgando a carne humana para os urubus. E desse açoite ainda sentimos na pele vestígios e sombras de sua dor.
Poeta e cronista
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