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quarta-feira, 11 de julho de 2012

AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 12 (LAMPIONICES)

                                 
                                             Rangel Alves da Costa*


Lampião falava, Lampião emudecia, Lampião gritava, Lampião sorria. Lampião também entristecia, se afligia, se angustiava e logicamente chorava.
Gente de carne e osso, trazendo nome e sobrenome, raiz familiar na garupa, de juízo na cachola, trazendo guardado no peito um coração, colocado no mundo para viver, então não haveria de pensar que se mantivesse alheio aos sentimentos.   
Tanto Virgulino como Lampião, ou ainda o Rei do Cangaço ou o Capitão, fazia aflorar o sentimento que o instante exigisse. Fúria terrível ao saber da traição, da falsidade em quem tanto acreditava, da ordem dada e não obedecida.
Quem quisesse ver o homem virado numa fera, soltando fogo pelas ventas, lhe chegasse contando mentiras, lorotas que ameaçassem atrapalhar seus planos. Também odiava fofocas, disse me disse, conversinha besta sobre a vida dos outros, picuinhas por causa de ciumeiras.
Chegava pros seus comandados e dizia que os problemas deviam ser encarados, resolvidos na sua raiz, e por isso mesmo não admitia que primeiro a fofoca espalhasse a fumaça pra depois o fogo ser apagado. Se algum do bando tivesse problema a resolver com outro, então que se dirigisse diretamente a este, olhasse olho no olho e resolvesse tudo de uma vez. Até mesmo entre as mulheres não gostava de conversinha miúda e de passo torto.
Inimigo da mentira, já tinha cortado mais de uma língua. Agia sempre de modo que todos soubessem dessa sua inimizade com o embuste e a falsidade. No bando todo mundo pensava duas vezes antes de lhe falar alguma coisa que não tivesse certeza. Coiteiro nem se fala. Ele mesmo chamava cada um num canto e dizia que podia se dar como morto a partir do dia que chegasse ali com uma mentira ou que, falseando o bando, fosse abrir a boca pra contar sobre o refúgio com quem não deveria.
Outras vezes se mostrava endurecido demais, fechado em si mesmo e com cara de poucos amigos, mas todo mundo sabia que aquilo não significava enraivecimento, ignorância ou distanciamento dos seus. Pelo contrário, pois sempre solícito e chegado a uma boa prosa, instante em que o jeito duro observado se transformava em contentamento e risadaria.
Certa feita, enquanto estava de caminho pro refúgio da Vereda Morta, recebeu uma missiva do Coronel Titó Laurentino reclamando que o seu desafeto maior, o Coronel Osmundo Merenciano ainda continuava vivo e se passando por gente mandona naquela região onde não cabia dois como ele de jeito nenhum. No fundo do fundo, queria mandar dizer que Lampião ainda não tinha mandado despachar o latifundiário.
Lampião mal passou os olhos na carta, rasgou-a em pedacinhos, colocou-os embrulhados em molambos e entregou ao portador dizendo que ele próprio, o Capitão, tinha mandado dizer ao sem-vergonha do tal poderoso que fizesse o favor de engolir pedacinho a pedacinho o que lhe enviava de volta, por falta de não poder ir lá entregar pessoalmente. O que seria muito pior.
Mas antes que o homem, tremendo dos pés à cabeça, se retorcendo de medo igual vara verde, subisse no animal, chamou-o de volta e disse para esperar um pouquinho enquanto rabiscava a resposta certa. E escreveu num desgastado pedaço de papel:
“Coronel, se pensava que eu ia mandar dá cabo na vida do coronel seu inimigo tá muito enganado. Não fiz qualquer acerto pra isso não. Só mato inimigo meu, e mesmo assim quando me ataca. Inimigo dos outros, que os outros mesmo que cuidem. Pra seu governo, a mesma proposta ele me tinha feito a seu respeito. E que eu saiba você continua vivinho da silva, além de cada vez mais petulante. Sei que é um fraco, um frouxo, pois se tivesse coragem não ia mandar me perguntar tal coisa. Por conta própria já tinha resolvido seu problema com ele. Mas se for fazer que faça logo, sob pena de que ele se adiante e encha sua boca nojenta de bala”.
Depois selou com cuspe nas beiradas e entregou ao portador. O cabra não sabia ler, mas saiu de lá como se estivesse carregando uma bomba que poderia explodir em sua mão a qualquer momento. Enquanto olhava o outro levantando poeira na curva da estrada, Lampião sorria de se acabar, dando gaitada e dizendo que nos próximos dias iam fazer uma visitinha ao Coronel Titó. Se encontrasse ele vivo, acrescentou. E sorria de se dobrar.
Noutra feita, Lampião perguntou ao coiteiro Nego Véio se conhecia algum sanfoneiro por aquelas bandas. Estava muito longe da cidade, nas brenhas da Matinha da Capoeira, e por isso mesmo sabia que seria muito difícil que o amigo sertanejo lhe desse uma resposta animadora. Mas a verdade é que estava com uma vontade danada de ouvir um lamento sanfonado, uma puxada dolente debaixo da luz do luar.
Coitado de Nego Véio. Pra não desapontar o Capitão, ainda que soubesse que não seria possível atender o seu pedido como deveria, pensou e repensou, balançou a cachola de canto a outro, deu passo pra frente e pra trás, para enfim esboçar um sorriso de quem havia encontrado qualquer solução. E disse a Lampião que conhecia um cabra que não era bem um sanfoneiro, mas que tinha sanfona e se animava todo quando ouvia elogio, ainda que mentiroso.
O Capitão gostou do que ouviu e pediu que fosse até lá fazer o convite, e se o sanfoneiro pé-de-bode criasse dificuldades emendasse logo e dissesse a mando de quem estava ali. Nego Véio saiu em disparada. Depois de subir serra e descer serrote, se embrenhar pelos matos para encurtar o caminho, enfim chegou defronte à porteira do homem. E logo o avistou debaixo de um umbuzeiro, sentado num tronco, reparando alguma coisa.
Outra coisa não era o que o sanfoneiro cuidava senão da velha sanfona. Na verdade, fazia remendos e mais remendos com uma agulha que mais parecia anzol. Linha grossa e cordão de náilon, parecendo mais o doutor remendando o seu Frankenstein. Ao avistar a cena, o coiteiro desanimou na hora. Mas logo naquele dia que o Capitão precisava tanto ouvir os acordes daquele fole, disse a si mesmo.
Ao ser indagado sobre o que tinha acontecido pra sanfona estar sendo remendada daquele jeito, o cabra disse apenas que era manutenção de rotina, pois naquela noite havia sido contratado pela volante pra uma forrozança. Ao ouvir o nome da polícia perseguidora do Capitão, o coiteiro se tremeu todo, ficou de cabelo em pé, mas preferiu não puxar do assunto. Não precisava nem perguntar onde a polícia estava, pois sabia muito que era pros lados do Quelemente, onde sempre ficava quando estava naquela região.
Diante do compromisso do homem, Nego Véio foi logo ao ponto e disse por que tinha ido ali. Ao ouvir o nome de Lampião, o cabra deu um pulo que deixou a sanfona cair. Fanático pelo Capitão, devotado ao cangaço como ninguém, sonhando sempre em um dia se ver diante do maior dos sertanejos, nem pensou duas vezes em firmar o compromisso de estar lá na hora marcada, e acompanhado de zabumbeiro e um cabra bom no sopro do pífano.
Assim, bastou o sol descambar e a noite começar a sombrear que o trio de tocadores foi recebido num lugar combinado pelo coiteiro. Entraram na mata e não demorou muito para chegarem ao coito. Que festa da cangaceirada, que alegria estampada no rosto do Capitão, que contentamento nas faces enrugadas do velho coiteiro. Debaixo da pouca luz, semiescuridão, ninguém nem percebeu o fole furado, todo remendado do sanfoneiro agrestino.
Mas antes que a coisa esquentasse, que o gole de pinga passasse de mão em mão, Nego Véio chamou Lampião num canto e disse da presença da volante nas redondezas. Com a mesma euforia que estava o Capitão ficou, sem demonstrar qualquer preocupação. Mas na sua mente já sabia muito bem o que fazer. Deixaria que todo mundo brincasse a valer, mas antes do dia clarear já deveriam estar tomando outro rumo, cortando mais uma vez as veredas espinhentas. Era sempre assim no cotidiano cangaceiro.
Depois do pio do passarinho da meia-noite a sanfona emudeceu. O trio recebeu seu vintém e todos retomaram o caminho. Lampião anunciou sobre a inesperada partida e ordenou o breve fechar de olho. No pio do passarinho da madrugada já deveriam estar de pé na estrada. E não deu outra.
Sorte melhor não teve o coitado do sanfoneiro do fole furado. Havia marcado com a volante e saiu sem avisar aonde ia. Agora já era tarde demais pra se explicar. Tomou um balaço entre os olhos que caiu por cima do fole. Um triste gemido dos dois.
       

Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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