Rangel Alves da Costa*
Jogada ao chão, espalhada ao relento, caída de lado por cima das plantas rasteiras, não respirava, não dava qualquer sinal de vida. Mas também não carregava sobre si a face feia da morte, de cor esbranquiçada, amarelada, de brancura cinzenta, sem cor definida.
Que coisa mais triste, mais horrenda, horripilante, tenebrosa, é a face da morte. E dizem quem é infinitamente ainda mais feia do que o vivente possa enxergar. Este jamais olha no olho da morte, no seu verdadeiro semblante. Com seu medo e sua dor, apenas enxerga uma parte daquilo que serão olhos no seu labirinto por toda vida. Espreitando, amedrontando, tentando lançar suas garras. Até que um dia...
Mas que face linda, perfeita, admirável, também tem a morte. Se o vivo a enxergasse apenas como rito necessário de passagem, principalmente naqueles que se vão depois de cumprido longamente seus afazeres na vida, constataria que a morte é sublime e doce, é abençoada e cristã, um aceitável meio de levar ao encontro com Deus.
Mas ninguém por ali que avistasse a feição da mocinha, nenhuma só pessoa que temesse ou admirasse aquele corpo parecendo morto. E se Crisosta era tão bonita, certamente a olharia assim, vez que a vida parecendo ainda presente com seu fulgor. E se morta estivesse ainda não tinha enfeado, ainda que a feiúra no morto dependa da visão de quem olha e não quer aceitar a situação exposta.
Verdade é que já haviam se passado três dias ou quase isso. Horas correndo, passando, voando, com ela ali no mesmo lugar, na mesma posição, completamente desacordada. Morta talvez. Não haveria de se pensar diferente, eis que não se pensa noutra coisa numa pessoa que cai no meio do tempo e fica desacordada durante tanto tempo.
O problema é que a morte não podia ser constatada. A não ser que uma pessoa desfaleça e três dias depois continue como se estivesse apenas inerte no meio do tempo, adormecida profundamente, ainda que sua estranha cor e a falta de respiração tendessem para o falecimento.
Estranho também que a pele não ia se deteriorando, amolecendo, apodrecendo, se tornando cinza para depois tomar o marrom e o negrume. Fora a palidez desde o primeiro instante do desmaio e a falta de respiração, nada mais sinalizava qualquer transformação diferente no corpo.
Dizem que eventos milagrosos ocorrem assim. São muitas as histórias de pessoas santificadas que continuam como se apenas dormissem. Deitadas em seus últimos aposentos, continuam conservadas como se o tempo jamais passasse, com se a vida permanecesse apenas em sono profundo. Apenas aquela palidez, aquela brandura, aquele aspecto santificado.
Mas a verdade é que tais pessoas haviam realmente morrido. Óbitos constatados, seres pranteados, para depois reconhecer-se o milagre da perpetuação da carne e do semblante. Será que o mesmo teria acontecido com Crisosta que, estando morta, o seu corpo se conservaria como se viva estivesse, e talvez eternamente? A pureza e a inocência naquela alma sofredora seriam bastantes para torná-la assim?
Nada disso se sabia ainda ou talvez jamais pudesse ser conhecido. Naquele lugar, naquelas condições, nenhum corpo morto teria chances de ficar intacto por muito tempo. Estava largado, estendido no meio do tempo, ainda que a natureza parecesse derramando sobre ela um manto de proteção.
O mato ao redor não havia avançado sobre o seu corpo, as folhagens secas não buscaram refúgio ali, poeira e areia não se acumulavam por cima, nenhuma sujeira se fazia presente, nada havia modificado desde a sua queda. Não caiu ao redor nenhuma árvore ressequida, nenhum galho despencou das alturas. A ventania não voltou mais, a chuva da noite foi se tornar umidade noutro lugar.
Os urubus não faziam algazarra ao redor, não sobrevoavam o corpo estendido esperando o momento certo de começarem as bicadas; os gaviões não chegaram mais perto; as corujas não cantavam agourentas; nenhum bicho chegado a carniça e putrefação havia sequer rondado o local.
Contudo, o mais estranho é que pequeninas plantas começaram a surgir e já se faziam floridas, mesmo em tão pouco tempo de gestação. Ao redor de todo o corpo, ladeando as pernas, os braços e a cabeça, flores idênticas àquelas que encobriam a sepultura do menino brilhavam em festim primaveril. E tudo seco ao redor e mais adiante.
Continua...
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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