Rangel Alves da Costa*
O sertão cangaceiro era o mesmo tabuleiro onde se espalhavam as peças do jogo acirradamente disputado pelos quatro cantos, desde o alvorecer ao mais fechado negrume da noite. A manhã surgida aos olhos do vivente entrincheirado nas caatingas e tocas era a mesma brotando festiva diante do olhar do velho matuto ao abrir a porta de sua tapera de barro.
Sertão bonito demais, indescritível sertão! Terra e chão, malhada e vastidão, saleta de chão e alpendre sombreado, mataria e garrancho, bicho amigo e indócil, um sopro de tempo chamando à vida, a esperança de sempre chamando a sobreviver. Um horizonte infinito, ainda que azul demais por causa do tempo seco, um entardecer que se alonga e vai tornando cada ser um poeta sem precisar escrever qualquer verso. Apenas olhar ao redor, se encantar, deixar aflorar os sentimentos e versejar os amores e as saudades no vão poético da memória.
Eis o sertão do cangaceiro e do lavrador, do coiteiro e do citadino, da volante e do vaqueiro, do bandoleiro das caatingas e do homem de paz no roçado, da beata e do vigário, do coronel e do jagunço. Sertão de muitos lados, muitas faces e muito mais. Eis que vastidão de véu e cortina, de espelho turbado, em cujo lado de lá mora a dor e o sofrimento, o grito e o lamento, a pobreza e a fome, a injustiça e a perseguição, a morte tragando a vida, o sobreviver fraquejando diante do mundo apocalíptico.
E por que será que o sertão é assim tão contrastante, de um lado a beleza e de outro a feiúra horripilante, numa face o sorriso e na outra o lanho do sofrimento? Desígnio divino, tudo vem na medida do merecer da terra e do homem. Se a grandiosidade paisagística do lugar, com seu luar inigualável, seus caminhos instigantes e as cores que vão se formando por cima da mata durante o entardecer servem para acalentar o vivente, de outro lado faz do sal do sofrimento a balança que há em tudo. Não há nada tão belo que não venha com uma pontinha de amargura.
O sertanejo vive num paraíso sem jardim, vive ao lado do roseiral sem poder cheirar a flor, vive ladeando o que há de mais belo na natureza e caminhando por estradas de pontas de pedras e espinhos pinicantes. O orgulho imenso de ser filho da terra e com ela se confundir em tudo, não afasta o desencanto que também bate à porta. O prazer de repente se transforma em dor e agonia. Porque o homem é instigado ao prazer e ao sofrimento para se conhecer o seu merecimento no mundo.
Contudo, dentro do próprio sertão, perante os seus filhos, há outras diferenças que parecem querer dividir os nativos em muitos. São vidas e jeitos de viver diferentes, pessoas com atitudes e vocações que desafiam os entendimentos. Por cima da mesma terra, gente que nasce para a paz e tantos que buscam a guerra; muitos cheios de contentamento com a vidinha humilde e simples que têm, e outros deixando a porta sossegada de casa e seguindo rumo ao desconhecido, ao perigoso, ao desafiador.
Um dia, num tempo distante, lá pelos idos dos anos desde muito envelhecidos, muitos desses jovens de famílias pobres, trabalhadoras na terra, sobreviventes do suor e do alimento da estação, de repente decidiram que a guerra era melhor que a paz, o perigo era melhor que o viver sossegado nos seus cantos. E não somente os meninos pobres, mas também filhos de famílias mais abastadas, mas que por impulsos e revoltas debandaram pelas veredas esturricadas e de encruzilhadas sangrentas.
Ao escolher a vida cangaceira, fazer valer seu ímpeto sertanejo para se tornar errante nas caatingas, o jovem certamente não tinha o pensamento suficiente claro para imaginar as consequências imediatas desse ato nem as durezas futuras no seu cotidiano debaixo do sol, sob a lua, correndo de costas, enganando a morte, saltando pedras e caindo em espinhos, deixando para trás rastros de sangue. Vida de sangue, de medo, de ataque e de fuga.
A paixão pelo cangaço, como acontece com todas as paixões, trazia a insanável cegueira até que o espinho de quipá furando olho o acordasse para a realidade. E será que estava vivendo, que aquilo era mundo, que era jeito de gente viver e morrer? Somente quando abria os olhos e já não podia voltar atrás é que é se entregava de corpo e alma ao mundo que escolhera. Primeiro o encanto, depois a realidade. E então o espanto. Em tudo a vida ao lado da morte.
Coisa simples, até sem doer, pois forçado a acostumar com toda dor, com o espinho de facheiro, de xiquexique, de mandacaru; a urtiga e cansanção roçando na pele sem ferir, sem queimar, mais parecendo pétala de flor agrestina. E tudo passa a ser visto de modo diferente porque assim tem de ser. A lama é água, o barro é líquido, a chuva é milagre do céu, pingo d’água é coisa que chega a assustar; carne de cobra parecendo com peixe, perna de preá não tem igual. Se não tivesse fogueira ou não houvesse tempo para o assamento que os cantos da boca sangrassem derramando o apetite, a fome.
Amigo do tempo, amigo do mato, amigo do bicho, amigo do matuto do lugar, muitas vezes amigo do inimigo, mas também hostil a quase tudo. Confiar sempre desconfiando, falar meia palavra porque já é demais, não se aproximar muito para não deixar marcas, ser apenas o vulto e a sombra que no instante seguinte já não é mais. Cangaceiro era tudo, quase sem ser nada. E até era melhor ser assim mesmo para ver se tinha uma vida sem tanta perseguição.
Que coisa boa ao encontrar uma casa, um imenso palácio para o merecido descanso. A porta maior do mundo, ladeando o sertão e suas veredas. Palacete de cama macia, adornada por terra cheia de espinhos, pedras como travesseiros, uma lua inteira como cobertor. E sonhar com a linda princesa que vai chegando devagarzinho, subindo pelos lados da serra, cautelosamente caminhando ao encontro do seu amado. E traz na mão alguma coisa bonita, brilhosa, reluzente. Mas não, é a volante de mosquetão. O mesmo pesadelo de todas as noites.
Que vida dura, seu moço, e o menino nem pensou um bocadinho nisso antes de tomar a decisão de ser cabra de Lampião. Mas agora é tarde demais. Está formado na vida, sabe tudo, é doutor. Conhece o remédio do mato, a cobra que é venenosa, cada pegada que encontra, todo barulho que ouve, todo farfalhar de folhagem. Sabe que há inimigo na redondeza, que o silêncio da mata logo se tornará em grito, em disparo, num pega-pá-capá desgraçado.
Correu mil léguas, caminhou mais duas mil e ainda não chegou ao coito. Todo mundo pensa o que seja um coito, porém ninguém nunca soube o que é um coito. Nem cangaceiro sabia. Quando o Capitão dizia que em tal lugar descansariam, então ali poderia ser tido como o refúgio chamado coito. Muitas vezes o lugar mais aberto no meio da mataria, um esconderijo detrás das pedras, uma toca grande moradia de animais, um lugar qualquer que servisse pra descansar. Não tinha número na porta nem ficava em endereço, apenas num local onde os bichos nativos eram espantados para que outros bichos se apossassem.
Bichos não. Nem quase bichos. Apenas seres humanos com seus destinos. E tão seres humanos que se compraziam com qualquer instante de paz que encontrassem, que conseguissem alcançar naquelas vastidões sertanejas. Sagrado era o alimento conseguido, sagrada era a visita do coiteiro que trazia o carregamento que tanto precisavam pra sobreviver, sagrada era a esperança de adormecer e amanhecer com vida, levantar cedinho para seguir adiante. E sagrada a prece da noite, a oração pedindo proteção, pois a mesma mão calejada e acostumada com o mosquetão, segurava mansamente o terço ou o rosário para o ofício da fé.
Assim eram os dias, assim eram as noites cangaceiras. Assim era a vida no sertão de Lampião.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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