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quarta-feira, 18 de julho de 2012

AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 19 (“O HOMEM É O SEU DESTINO”)


                                               Rangel Alves da Costa*


As palavras não saíam da cabeça de Lampião: “O homem é o seu destino”, “O homem é o seu destino”, “O homem é o seu destino”...
Com qual sentido o velho Gameleira havia dito isso, por que o danoso do homem não explicou tudo de uma vez e me deixou menos atropiado do juízo? Uma coisa besta dessas, apenas um dizer ligeiro, e é como agora eu tivesse um grande mistério a desvendar; safado do velho, intriguento o bixiguento, metido a conversador, vai que fala demais e me deixa assim desconcertado; já se vão dois dias que esse negócio de o homem é o seu destino não me sai do pensamento. Matutava consigo mesmo o Capitão logo cedinho, enquanto andava de canto a outro pelos arredores do coito.
E de repente se voltou para os lados da cangaceirada e gritou: “Qualquer um de vocês, tanto faz mais moço ou mais vivido, quero que vá agorinha mesmo na casa do coiteiro Mané Félix, lá onde vocês sabem muito bem onde fica, e diga a ele que vá procurar com urgência o coiteiro Gameleira, que já de tão velho só tem serventia pra me trazer preocupação. Ele mesmo me falou que se mudou da Grota Grande e tá morando um pouco mais pra riba, e por isso mesmo Mané Félix deve saber o paradeiro de agora e ir até lá em diligência e trazê-lo à minha presença. Mas de antemão diga que não é vespeiro não, de modo a não assustar nem um nem outro. É só uma informação importante que quero ouvir da boca do velho Gameleira. Agora arriba!”.
Procurando sempre chamar a atenção do seu comandante, de modo que lhe caísse sempre nas graças, o cangaceiro Brasinha saiu com mais de mil, sem nem querer saber da intenção dos demais. Quinze minutos depois, e sempre correndo por dentro da mata seca, se estropiando e lanhando todo, chegou à casa de Mané Félix, que morava nos arredores do local onde o bando estava refugiado naquela passagem pelas terras ribeirinhas sergipanas.
Brasinha, ainda se mantendo escondido nos beiços da mata, deu um piado aumentando de tom como aviso ao coiteiro. Era a senha já conhecida, já acertada entre todos para que não houvesse surpresa na chegada de gente do bando e principalmente com a aproximação da macacada, das forças policiais de perseguição, também conhecidas por volantes. Assim, ao ouvir o piado, o coiteiro já sabia de quem se tratava. Do mesmo modo fazia quando se aproximava do coito. Só depois da resposta, dessa vez três pios compassados, é que podia se aproximar.
Estava remendando uma sela quando o cangaceiro se aproximou. Num segundo e já seguiu naquela direção. A conversa foi pouca, foi rápida, apenas o recado dado e recebido e pronto. E uns cinco minutos depois Mané Félix já cortava estrada, e sempre por dentro do mato como achava mais seguro, seguindo em direção ao casebre do velho Gameleira. Era pobre o homem, e que pobreza danada!
O coiteiro Gameleira, caboclo sertanejo, homem de sina e de sola, já na curva dos setenta, era um dos mensageiros e informantes mais confiados por Lampião. Não sabia, porém, que o rei do cangaço não o tinha apenas na condição de coiteiro, mas, e acima de tudo, como um bom amigo que gostava de conversar e ouvir suas sábias e proveitosas lições. Nem imaginava que isso acontecia, mas toda vez que Lampião o chamava para um proseado tudo ocorria como um discípulo presta atenção ao que o mestre diz.
Gameleira tinha certas características que o Capitão silenciosamente apreciava. Sem falar em honestidade e confiança, o velho sertanejo não se intimidava quando tinha de dizer o que pensava, sentia ou achava. Olhava no olho do cangaceiro e falava sem medo, esperando apenas a reação para dizer que mais tarde lembrasse o que havia acabado de dizer. Era como se dissesse que podia até achar ruim agora, mas depois...
Do mesmo modo agia com o próprio comandante, tão temido por uns mas para ele apenas um amigo cheio de dúvidas e problemas que precisavam ser resolvidos. E por isso mesmo é que, com palavras, procurava sempre ajudar, orientando, dizendo o que sabia por experiência de mundo. Virgulino não deixava transparecer, mantendo-se sempre na sua posição um tanto vaidosa demais, mas absorvia com verdadeira sede cada palavra que o coiteiro dizia.
O sol triscava lá em cima quando Mané Félix e Gameleira riscaram nos arredores do coito. Depois dos sinais e dos caminhos abertos, seguidos por olhos sempre presentes por dentro dos tufos e labirintos, seguiram para avistar o Capitão Lampião já vindo naquela direção.
Parou bem diante dos dois e primeiro falou com Mané Félix: “Vá lá na casa de Dona Guiomarina e me traga um bode. Leve esse dinheiro aqui e faça o acerto. O restante bote no bolso e compre uma sela nova. Brasinha me contou do estado de sua montaria, e um cabra como você não pode subir no pelo e osso do bicho não. Escolha uma a seu modo e depois traga aqui que quero ferrar e colocar uma estrela dourada do lado. Vai-te, homem de Deus...”.
E voltando-se pra Gameleira, olhando bem dentro do olho de pouca cor e sem brilho, foi dizendo: “Quer dizer que você agora deu pra atormentar meu juízo, não é seu velho de uma figa?”. Depois deu um sorriso, colocou a mão no ombro do sertanejo e prosseguiu:
“Precisa me falar sobre uma coisa homem. Já desde dois dias, desde aquele nosso último proseado que fiquei encafifado com uma coisa que você disse. Precisa me dizer tudinho sobre essa coisa de o homem é seu destino. Lembra que você disse essa frase, esse negócio de o homem é o seu destino antes de sair? Saiba que isso se entranhou na minha cabeça que não quer sair de jeito nenhum. E foi você que botou agora vai ter que tirar...”.
Gameleira pensou que era coisa mais difícil de resolver. Mas por outro lado sabia que não seria nada fácil explicar tudo certinho a um homem como Lampião, pessoa de opinião formada demais, intransigente naquilo que achava, sem dar muita brecha ao pensamento dos outros. Mas já que ele queria ouvir, então que fosse assim e desse no que desse. E assim seguiram até a beirada do rio, caminhando lentamente pelas suas margens.
“Então, Gameleira, que negócio é esse de o homem é seu destino? Explique tudo de uma vez que é pra não ficar reimosia no pensamento. É coisa boa ou ruim?”. E o velho coiteiro, apontando umas pedras para que sentassem, foi tentando explicar:
“Ainda bem que você não esqueceu o que eu disse, e vou repetir que o homem é seu destino. E nisso pode tanto ter um lado bom como um lado ruim. Tudo depende de você mesmo Capitão. É o próprio Capitão que vai dar sentido ao ditado. Agora ouça bem, preste bem atenção e responda na sua mente. Qual homem você é Capitão? É homem que gosta de viver nessa vida de medo, de dor e sofrimento, correndo de canto a outro, fugindo e reaparecendo, matando pra não morrer, dormindo ao relento e conversando com pedra e espinho, simplesmente por que gosta de viver assim? Ou é homem jogado nessa vida por força das circunstâncias, forçado a sair de casa e deixar a família, a pegar estrada, entrar na vida mais que perigosa que é essa cangaceira, e tudo por que o seu coração e o seu sentimento não deixariam você em paz se não fosse enfrentando as injustiças, os covardes que vivem espalhando o medo e a aflição nesses pobres sertanejos, todas as mazelas que querem transformar o nosso chão numa terra de ninguém e as pessoas carentes em bichos, em escravos, em submetidos aos desejos nefastos dos poderosos? Se o capitão está nessa vida sem ter compromisso com ela, então o seu destino não era esse. Talvez se sentisse bem vendendo fato na feira ou ferrando gado de coronel. Mas se está nessa estrada por que sente que sua luta é justa, é necessária, então o Capitão é homem que cumpre o seu destino. E foi por isso que eu disse que o homem é o seu destino...”.
“Então é isso, então...”. E o velho coiteiro nem deixou Lampião terminar para acrescentar: “Então o Capitão nasceu para ser assim, para viver essa vida, para enfrentar o que vier pela frente, pois assim a sua honra e coragem não se contentariam de outro modo. E mesmo que tombe lutando, ainda assim será o homem no seu destino, pois o homem é e sempre será o seu destino”.
Satisfeito, cada vez mais orgulhoso consigo mesmo, Lampião botou no bolso do amigo a feira do mês e em seguida perguntou o que seria, então, um homem sem ter destino. E o velho coiteiro simplesmente respondeu que é aquele cujo futuro cuidará de seu esquecimento.  


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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