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sexta-feira, 13 de julho de 2012

AS CRÔNICAS DO CANGAÇO – 14 (ENTRE O FASCÍNIO E O TEMOR)


                                           Rangel Alves da Costa*


Na época do cangaço, principalmente no período do reinado de Virgulino Lampião e seu bando, a vida cangaceira causava verdadeiro deslumbramento em muitos dos meninos e meninas, rapazotes e mocinhas, que viviam nas áridas e deslumbrantes terras nordestinas.
Talvez por desconhecimento da vida perigosa e quase desumana que a cangaceirada levava; encantados com as tantas histórias de valentia e destemor que ouviam dos mais velhos; deslumbrados com a estética cangaceira e seus adornos brilhentos, as riquezas reluzindo nos dedos e no entorno dos chapéus enfeitados; e inegavelmente com a sensação aventureira que tudo aquilo causava, verdade é que o cangaço era uma verdadeira paixão para muitos.
Nem imaginavam a realidade por trás dessa inocente ilusão. Nem de longe sabiam das dores e sofrimentos no cotidiano cangaceiro. O chão batido por onde pisavam era muito diferente do terreno espinhento, cheio de rastros de sangue, entremeado de labirintos, armadilhas, tocaias e emboscadas. O inimigo logo ali, à espreita, de arma em punho, pronto pra atirar. A face da morte adiante, o pio do passarinho que outra coisa não era senão um sinal de ataque.
E lá vai o cangaceiro se esquivando, se abaixando, se protegendo, contra-atacando, indo pra cima disparando fogo, vomitando a morte, destruindo o que encontrasse pela frente. E depois desandando na vereda do mundo, seguindo no passo do bando, contando no olho o que restou. E seguindo adiante, indo beber da lama avistada, indo morder o pé de preá com farinha seca, indo repousar na cama de pedra, indo sonhar sendo atacado. Levanta assustado, suado, aflito, pega a arma e só encontra a lua bonita se derramando por cima.
Ainda bem que havia essa lua bonita, uma manhã radiante de todo dia, uma paisagem encantadora para admirar quando a volante não estava por perto. Eis o momento de viver na desvalia da vida; eis o momento da reflexão diante da realidade assustadora. Mas não tem nem muito tempo pra mais nada, pois o grito de Lampião é ouvido, a ordem já é repassada, tudo será novamente, e do mesmo jeito, mais adiante e em todo lugar.
Mas que graça teria essa vida pra molecada tanto sonhar em seguir seus passos? Verdadeiramente não havia prazer algum. Os que haviam se tornado cangaceiros aos poucos foram compreendendo que o único significado de estarem ali era somente o da sobrevivência. O que talvez tenha começado como atração, desejo, curiosidade ou mesmo absoluta vontade, aos poucos ia se transformado apenas num duro fardo a ser carregado.
Por mais que a cangaceirada brincasse, dançasse, fizesse prevalecer suas vaidades, gostasse de sair da normalidade aflitiva daquela vida, verdade é que ninguém sentia prazer em ter aquele cotidiano de correrias, de enfrentamentos, de constante exposição aos perigos. Certamente que ninguém pode afirmar da felicidade encontrada dormindo nas tocas, nas grutas, nos descampados, nos esconderijos, ao lado de espinhos, bichos e dos inimigos rondando por todo lado.
Logicamente que nem todos, mas quem estava de fora, quem vivia ao largo desse mundo, fazia do imaginário uma forma de pregar o aventureirismo atraente, a vivência recheada de momentos fascinantes, como se tudo aquilo fosse uma grande e épica novela com seus heróicos personagens, cavaleiros andantes em busca do seu Graal.
Desse modo, ser cangaceiro era bom porque vivendo nos descampados e portais da natureza, conhecendo outras realidades sertanejas, virando a curva do estranhamente admirável. Além disso, era respeitado aonde chegava, trajava roupas bonitas e enfeitadas, reluzia ao sol com seus adornos. E principalmente porque ao lado e comandado pelo Capitão Virgulino. Ao ouvir tal nome, uma sensação estranha tomava o corpo, um mundo novo surgia na mente e o passo logo queria abrir cancela.
Essa noção de cangaço como maravilhamento, fenômeno empatizante e de identificação com as causas populares se disseminou pelos quatro cantos da região nordestina. Quase todo mundo tinha medo, grande parte da população fugia ao saber da aproximação do bando, mas ainda assim guardava extrema veneração e respeito. Tanto era assim que preferia mil vezes de repente encontrar um cangaceiro do que ser abordado por um policial da volante. As razões são mais que óbvias.
Talvez fugissem apenas por precaução, não dando chance ao azar como se dizia. E também porque assombrados com as conversas e mais conversas mentirosamente espalhadas de que o bando chegaria para matar todo mundo, não deixar uma cabeça em pé, apunhalar covardemente da criancinha ao mais velho. Neste sentido, procurando desqualificar o cangaço através da falsa imputação de crimes contra a população, é que desde aqueles tempos foi sendo criada uma imagem totalmente distorcida, irreal.
Assim, quando o povo se embrenhava nas matas ao ouvir da aproximação do bando tudo tomava uma feição de delírio coletivo, porém sem razão de ser. Um corria porque outro corria, um fechava a porta porque o outro assim fazia. Era como se grande parte da povoação fosse dormir ainda debaixo do sol porque alguém havia gritado que já era noite e fantasmas viriam amedrontar quem estivesse acordado.
E quando o bando despontava e seguia em direção à casa de quem o esperava, geralmente um coronel nordestino ou pessoa influente do lugar, os olhos começavam a sair das tocas, os passos se achegando, cada um comprovando que ali havia apenas pessoas cansadas, muitas vezes esfomeadas, que precisavam muito mais de matar a fome e a sede do que se preocupar em jogar criancinha para o alto e esperar a descida na ponta afiada do punhal.
E novamente o encantamento com o jeito de ser daqueles homens e mulheres das caatingas, suas roupas, seus adornos, suas armas, seus lenços e chapéus, suas propensões às farrices, xaxados e brincadeiras. Desses encontros, ou apenas no ouvir dizer, como magia repassada de boca em boca, é que a meninada se via despertada por uma vontade estonteante de seguir adiante junto com o bando.
Daí encontrar-se um motivo para que pais de família fugissem com os seus para as matas assim que os cangaceiros se aproximavam. Diferentemente dos filhos que se sentiam mais que atraídos pela vida aventureira dos cangaceiros, os pais tudo faziam para afastar daquelas mentes em formação esses perigosos desejos. Seria permitir um caminho sem volta, jogar ao acaso do mundo alguém com doze ou treze anos e que ainda não conhecia nada dos segredos da vida.
Mesmo assim, por mais que fizessem de tudo para evitar essa aproximação, muitas vezes as precauções se tornaram infrutíferas. Não foram poucos os rapazinhos e as mocinhas, muitos jovens mesmo, ainda meninos e meninas, que de repente já estavam fazendo parte do bando de Lampião. Muitos fugiram de suas casas, alguns por influência de outros jovens e conterrâneos cangaceiros, e ainda outros que fizeram do amor o passo para enveredar no cangaço.
Namoradores como eram, conquistadores de marca maior, contando com a fama existente e com as promessas de vida num verdadeiro reino encantado, muitos cangaceiros fizeram mocinhas caírem nas suas lábias matreiras e se tornar companheiras de sina. Quando os pais acordavam e procuravam as filhas achavam os cantos mais limpos, com um tanto de roupa levada. Por cima da cama um bilhetinho ilegível querendo dizer que havia encontrado sua razão de viver nos braços cangaceiros do bem amado.
E nenhum pai se metia a besta de entrar pelas matas e ir atrás de sua menina. Pranteava o choro da saudade enquanto sua pequena flor se fazia mulher com véu de folhagens secas e grinalda de espinhos.     


Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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