DESCONHECIDOS – 88
Rangel Alves da Costa*
Havia surtido efeito aquela maldição do passado. Há muitos anos, ainda quando o coronel estava juntando suas posses, e para tal agia sem qualquer comedimento invadindo terras de pessoas que não tinham onde cair mortas, ameaçando pequenos proprietários, fazendo grilagem, derrubando tudo que encontrava pela frente e demarcando como se fosse de sua propriedade, foram momentos de acontecerem muitos absurdos e mortes.
Ele próprio, Demundo Apogeu, pouco se metia naqueles desmandos, pouco sujava suas mãos de sangue. Quem fazia o serviço todo eram os seus cabras, os seus contratados, pistoleiros que só enxergavam diante de si a próxima vítima. Pagava bem pago, mandava fazer bem feito, e mesmo que todo mundo soubesse quem era o mandante quase ninguém tinha coragem de falar nada sobre o assunto, Apenas choravam, enterravam seus mortos, saíam do lugar e pronto.
Contudo, um dia o próprio Apogeu se encarregou de fazer o serviço. Havia dado um prazo para que um velho trabalhador de roça aceitasse alguns contos de réis pelo seu roçado de melancia e abóboras. Como resposta, o senhor mandou dizer que só vendia sua terrinha pelo que ela realmente valia. E mandou dizer o preço. O mesmo portador voltou e disse que dali a cinco dias o próprio Demundo Apogeu ia até ali para ver se ele saía por bem ou bem mal.
Dito e feito. O pequeno agricultor contou o fato à velha esposa, que começou a se pegar em promessas e preces. Ele mesmo não tinha nada o que fazer, pois uma só arma não possuía. Tinha somente que esperar para ver o que acontecia. E numa manhã ouviu um estampido e correu porta afora. Sua única vaquinha estava estendida no chão, morta a bala. Deu impulso para correr até lá, porém não chegou a três metros e o coração lhe faltou. Ficou estirado no chão.
Percebendo o barulho, a velha senhora apareceu na porta e constatou o ocorrido. Sertaneja firme, não se espantou, não gritou, não derramou uma lágrima sequer nesse momento. Apenas caminhou lentamente em direção a Demundo montado no seu cavalo, mirou bem nos olhos dele e disse:
“Seu fim será pior do que esse aqui. A partir de agora, em nome de todas as forças do bem e do mal, você é um homem amaldiçoado. Toda riqueza sua não poderá prender na gaiola de ferro nem matar o pássaro negro, de olhos de fogo e sanguinário que você será. O seu bico cheio de maldade não descansará enquanto não destruir você mesmo”.
E assim, desde esse dia que a maldição do pássaro negro acompanha o coronel. Não sai de si, continua a mesma pessoa, mas o pássaro sai do seu corpo e vai buscando dolorosamente suas vítimas. E a cada vez que isso acontece é como se um vulcão se apossasse do corpo do homem, mil facas e facões beliscassem sua pele, uma coisa infernal habitasse sua cabeça. Instintivamente, o pássaro invade e depois sai do homem, sem que este tenha qualquer tipo de comando sobre essa maldição.
Ainda nos fundos da casa, já buscando força e ânimo para retornarem ao convívio dos convidados, o coronel e sua companheira ainda davam as últimas pinceladas sobre o que haviam conversado. “Me diga o que vem agora em sua cabeça, pois preciso ficar mais calma e não passar para as pessoas nenhuma conotação que estou tão aperreada e preocupada”, pediu Sofie.
“Agora mesmo vou lá em cima procurar saber se anda tudo em ordem na igrejinha. Vou até junto com o padre, que é pra ver se ele acha tudo na conformidade pra fazer a inauguração amanhã, rezando missa. E quanto mais rápido essa igreja abrir suas portas e for rezada missa melhor, pois a construção dela foi também um meio de diminuir tantos pecados que tenho e de clemência pra que essa maldição desgraçada se afaste de mim. Se não houver jeito mesmo com a igreja, com a força que dizem que ela possui, então vou procurar quem saiba fazer magia, algum enfeitiçamento seguro que é pra ver se ao menos reverto essa maldição ao meu favor, domando esse pássaro assassino que surge e trazendo as forças do seu voo para o meu proveito. E quando eu puder fazer isso ninguém mais vai dizer que o coronel matou...”.
“Mas homem de Deus, isso é muito perigoso, pois você poderá perder todo o controle de si...”, disse a aflita Sofie. “Tudo já tá descontrolado. Agora só é salvar o que pode ser salvo. Vamos pensar logo no profeta e nessa menina, depois a gente vê o que faz esse menino”, afirmou o coronel, acendendo um charuto.
“Como está minha cabeça, Demundo. Nem tinha pensado naquele maldito estranho enlouquecido, dando uma de profeta e espalhando o que bem quer para que todos ouçam. O problema é que ele não erra no que diz...”. E o coronel completou:
“Mas vai errar, mas vai calar. Se o pássaro não der um jeito nele eu mesmo darei. Não com essas mãos, que não quero sujar com besteira, mas tenho quem faça bem feito e rápido. Agora, se for confirmado que aquela mocinha do outro lado é mesmo Soniele, até porque você sabe os motivos, não podemos mexer num só fio de cabelo dela, a não ser que ela já saiba de toda a verdade e dê com a língua nos dentes. Se ela abrir a boca pra dizer que é, que é... Deixe pra lá”. E enxugou os olhos com a mão.
Ao retornarem, tiveram de ouvir muitas perguntas sobre aqueles momentos de ausência, vez que parecia tê-los abandonado. Fazendo de tudo para se manter simpática e agradável, a anfitriã ficou contente por não perceber nenhuma suspeita sobre os motivos daquela ausência nem sobre os assuntos que tanto conversaram, a não ser no rosto de Carlinhos, que a olhava com brilho no olhar e um leve sorriso na boca como se tivesse dizendo que sabia de tudo.
Depois de um breve proseado, o coronel anunciou que subiria na montanha para dar uma olhadinha na igreja, apresentá-la ao celebrante da missa do dia seguinte e ver se estava tudo em ordem. As duas senhoras logo avisaram que não retornassem antes que fossem também até lá, vez que ficaram impossibilitadas de conhecê-la quando foram até o local.
Degrau a degrau, passo a passo, os dói foram alcançando o cruzeiro, portal de chegada. Sempre na frente, o coronel avisou que abriria as portas num instante. Enquanto o homem procurava as chaves pelos bolsos, o religioso foi caminhando ao redor para olhar as maravilhosas paisagens que descortinavam embaixo e mais longe, por todas as distâncias.
E após um terrível grito o Frei Clarêncio se jogou lá de cima. A visão ao lado do precipício foi realmente assustadora: O falecido padre Marchelort caminhava pelo ar em direção à igreja, trazendo pela mão uma encantadora, linda e jovial noiva, somente com uma coroa de flores brancas sobre os cabelos esvoaçantes e o corpo totalmente nu rodeado por um véu incolor.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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