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quarta-feira, 20 de abril de 2011

DESCONHECIDOS - 89 (Conto)

DESCONHECIDOS – 89

Rangel Alves da Costa*


O terrível incidente com o Frei Clarêncio provocou mal-estar generalizado. O coronel lamentava ter que retornar com o corpo do homem até Mormaço para fazer o encaminhamento para os seus superiores lá no convento.
Mas isso não poderia atrasar nem atrapalhar a inauguração da igrejinha. Fosse como fosse, arranjasse outro celebrante onde fosse, mas a missa teria que ser realizada no dia seguinte. Os seus planos não poderiam mais sofrer interrupções, principalmente quando os olhos e a boca do mundo pareciam que estavam enxergando tudo e querendo gritar todas as verdades.
Além do terrível acontecimento, Dona Doranice tinha encontrado outro sério para resolver. Eis que sentado embaixo da montanha tranquilamente, chorando por uma saudade escondida e sempre bebericando da mais pura aguardente nordestina, olhando para as águas do rio adiante, de repente o cozinheiro afrancesado ouve o barulho do corpo desabando e caindo todo estrebuchado bem diante dos seus pés.
Deu um terrível grito, jogou a garrafa para o alto e começou a correr enlouquecidamente, subindo e descendo pedras e montes, saltando por cima de moitas e paus, entrando em veredas, querendo a todo custo se jogar nas águas do São Pedrito. Foi preciso dois homens, com a ajuda do coronel, para amarrá-lo com sete cordas. Estava louco, totalmente embasbacado.
Na mesma canoa que o coronel ia levar o corpo do pobre religioso, a viúva decidiu enviar os dois únicos assessores homens que lhe restavam acompanhando o doente. Somente um certamente não conseguiria conduzir o transtornado até sua cidade de origem, que era Nova Paulo, e lá interná-lo em centro especializado.
Seguiram então os dois. E estes deram graças a Deus, pois já tencionavam fugir, como já fizera um noutro local, daquele lugar que logo lhes pareceu amedrontador e amaldiçoado em demasia. Nunca mais colocariam os pés ali, disso tinham certeza. E com sorte por terem saídos vivos.
O coitado do cozinheiro, todo amarrado para não pular no rio, foi gritando enquanto a embarcação se afastava das margens:
“Façam logo a cruz, façam logo a cruz. Abram a cova, abram a cova. Quem vai chorar por vocês? Ninguém vai chorar por vocês, pois uma pessoa só não vai ter tanto choro para chorar, nem por aqueles que merecem. Façam logo a cruz, façam logo a cruz. Abram a cova, abram a cova. Vocês pensam que não, pensam que ainda vivem, que ainda são alguma coisa. Exceto um, todos vocês estão num cemitério. Façam a cruz, abram a cova...”. E foi repetindo isso até o coronel mandar tapar a boca dela com um pano.
Dona Doranice estava angustiada. Havia chegado ali com outros planos, outras intenções, mas desde que colocou os pés no lugar aquela série de estranhos acontecimentos se sucediam e traziam muito mais preocupação do que bem-estar. Ora, estava ali para descansar, para se alegrar, para viver momentos de felicidade. Contudo, até mesmo a anfitriã, Sofie, agora parecia silenciosa demais, quieta demais, estranha demais.
Com os aborrecimentos se acumulando, silenciosamente implorava para que nenhum incidente ocorresse com os acompanhantes que lhe restavam. Talvez por isso, por estar com o pensamento parecendo um turbilhão, não fez qualquer objeção quando Yula e Carlinhos se aproximaram e disseram que iam atravessar para o outro lado, para a vila dos pescadores, vez que pretendiam conhecer um pouco aquele local que de longe parecia tão maravilhoso.
Ao ouvir os rapazinhos conversando com a protetora, tendo conhecimento do que eles pretendiam fazer, Sofie sentiu um estremecimento tomar todo o corpo. O sangue esquentou nas veias que parecia querer jorrar pelos poros. Tomou-se de um ódio tamanho que pensava mesmo em fazer uma besteira. Pura preocupação, medo, temor.
Tinha certeza que o menino sabia demais, que ele era muito perigoso para ir até o outro lado e tomar conhecimento de outros fatos que implicassem ainda mais a sua situação e do coronel. Se ele chegasse ao outro lado iria caminhar de cima a baixo, visitar os pescadores, conversar com eles e nessa caminhada chegar até a moradia da mocinha que ele dizia que morava lá. Exatamente porque sabia que ela estava lá é que procuraria desvendar tudo o que pudesse. E isso poderia ser o começo do fim.
Pensamentos diabólicos se apoderaram da cúmplice do coronel. Tomou algumas providências que achou imediatamente necessárias e antes que os rapazinhos subissem no barco para fazer a travessia, chamou carinhosamente Carlinhos até a cozinha. O copo de suco já estava preparado na geladeira movida a gás, geladinho, com um aspecto e cor deliciosos.
“Meu querido Carlinhos, venha aqui. Você sabe que eu não ia deixar você ir para o outro lado, sem saber a hora que vão retornar, sem antes lhe oferecer um copo de suco. Tome, está delicioso, é de mangaba”. E estendeu o copo.
Carlinhos segurou o copo, passou rapidamente os olhos sobre o suco, deu um leve sorriso pra ela e depois disse: “Veneno faz mal para crianças”. E devolveu o copo. Mas antes de sair ainda disse: “Se eu fosse a senhora não tomava não. A senhora não pode morrer envenenada, pois o destino lhe reserva uma bela valsa ali na beira do rio. Talvez um danúbio de sangue”. E saiu sem olhar pra trás.
“Volte aqui, volte aqui seu moleque atrevido, volte aqui, volte aqui...”. Quando o copo escorregou da mão, ela também escorregou sobre uma cadeira e começou a chorar desesperadamente. Tomada por ódio delirante, começou a esmurrar móveis e paredes, e tudo de forma tão abrupta que só não era ouvida pelas outras pessoas por causa da distância da cozinha para a sala da frente e a varanda.
A seguir enxugou as lágrimas, lavou o rosto e se encaminhou para o quarto do casal. Aí catou dentre a bagagem uma mala que há muito não abria e escolheu a roupa mais vistosa que tinha, um vestido longo, cheio de bordados e aplicações coloridas à mão, entre o vermelho e negro, e se vestiu novamente de Madame Sofie. E se pintou como Madame Sofie, e se revestiu inteiramente da senhora dona de cabaré, gerente de mocinhas prostitutas, amiga da vida impura.
Indescritível o espanto de Dona Doranice e das outras pessoas quando a companheira do coronel adentrou novamente na sala. De copo de uísque na mão, piteira com cigarro entre os dedos, esbanjava alegria, dava voltas pela varanda como se estivesse numa passarela. Depois sentou emudecida, os olhos vermelhos e tristes, traços estranhos pelo rosto. O que teria acontecido com a mulher? Todos ficaram se perguntando.
Lá no outro lado do rio, pensando em João pescador na porta da casa de Pureza, assim que o barco se aproximou mais da margem, a jornalista não mais duvidou de quem se tratava. Correu para a beirada e recebeu os dois amigos de braços abertos. “Mas que bom ter vocês aqui...”.
E nem prosseguiu para indagar como estava Dona Doranice, pois Carlinhos interrompeu e perguntou: “É ali que ela mora?”.


continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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